Madame Hortência fora prevenida e nos
esperava à porta, pintada, rebocada de pó, inquieta. Paramentada
com para um baile de sábado. A mula estava em frente à porta; Zorba
montou-a e segurou as rédeas.
Nossa velha sereia aproximou-se
timidamente, apoiando a mão gorducha no peito do animal, como se
quisesse impedir a partida do bem-amado.
— Zorba... — sussurrou, pondo-se na
ponta dos pés, — Zorba...
Ele virou a cabeça para o outro lado.
Não gostava dessas tolices amorosas em plena rua. A pobre mulher
assustou-se com o olhar de Zorba. Mas conservou a mão apoiada, cheia
de terna suplica, no peito da mula.
— Que quer você? — disse Zorba
irritado.
— Zorba — murmurou suplicante, —
tenha juízo... Não se esqueça de mim, Zorba, tenha juízo...
Zorba sacudiu a rédea, sem responder. A
mula se pôs em marcha.
— Boa viagem, Zorba! — gritei. —
três dias, ouviu? Nem um a mais.
Voltou-se, agitando a mão rude. A velha
sereia chorava e as lágrimas abriam sulcos no pó-de-arroz.
— Você tem a minha palavra, patrão,
isto basta! — gritou Zorba. — até a volta.
E desapareceu nas oliveiras. Madame
Hortência chorava e, através das folhagens prateadas, via ora
brilhar ora se apagara a coberta vermelha que a coitada pusera na
montaria, para que seu bem-amado se sentasse confortavelmente. Em
dado momento, também esta se desapareceu. Madame Hortência olhou à
sua volta: o mundo estava vazio.
Não voltei à praia; fui para a
montanha. Quando me aproximava da subida, ouvi uma corneta. O
carteiro rural anunciava sua chegada à aldeia.
— Patrão — gritou, agitando a mão.
Aproximando-se, deu um maço de jornais,
revistas literárias e duas cartas. Guardei logo uma delas no bolso,
para lê-la à noite, quando termina o dia e o espírito se
aquieta. Sabia de quem era e queria prolongar minha alegria, para que
durasse mais.
A outra carta reconheci pela letra brusca
e decidida e pelos selos exóticos. Vinha da África, de uma montanha
selvagem próxima ao Tanganica. Era de um velho colega de escola:
Karayanis. Rapaz bizarro, violento, moreno, dentes muito brancos, um
dos caninos apontado como os de um javali. Nunca falava: berrava. Nem
discutia, mas brigava. Muito jovem, deixara sua pátria, Creta, onde,
de batina, ensinava Teologia. Andou de namoro com uma aluna; foram
surpreendidos e vaiados quando se beijavam, no campo. No mesmo dia,
mandando a batina às urtigas, tomou o navio. Foi para a África,
morar com um tio. Aí se dedicou com dedicação ao trabalho, abriu
uma fábrica de cordas e ganhou bom dinheiro. Escrevia-me de vez em
quando, convidando-me a passar com ele seis meses. Quando abria suas
cartas, antes mesmo de as ler, sentia-se desprender-se das páginas —
sempre abundantes e cosidas com um fio — um vento impetuoso que me
arrepiava os cabelos. Tomava sempre à decisão de ir a África, mas
nunca o fazia.
Saí do caminho, sentei-me numa pedra,
abri a carta e comecei a ler:
“Quando será que você, sua ostra
colada ao rochedo grego, vai se resolver a vir? Também você, como
todos os gregos, se tornou gato de botequim. Você se espoja nos
cafés como em seus livros, seus hábitos e suas famosas ideologias.
Hoje é domingo, nada tenho para fazer; estou em casa, em minha
propriedade, e penso em você.
O sol queima como fornalha. Nem sinal de
chuva. Aqui, quando ela cai em abril, maio e junho, é um verdadeiro
dilúvio.
Estou só e gosto disso. Há bastantes
gregos aqui, mas nem quero vê-los. Eles me desagradam, pois,
queridos metropolitanos, o Diabo os carregue, que mesmo aqui vocês
trazem a sua lepra, suas paixões políticas. A política é a
perdição dos gregos. Há também as cartas, a falta de instrução
e a carne.
Odeio os europeus e por isso vagueio por
aqui, nas montanhas de Vassambra. Odeio os europeus, mas acima de
tudo, os gregos e tudo o que é grego. Nunca mais porei os pés na
sua Grécia. Aqui morrerei; já mandei fazer meu túmulo, em frente à
minha casa, na montanha deserta. Coloquei até a laje onde gravei eu
próprio em maiúsculas:
AQUI JAZ UM GREGO QUE DETESTA OS GREGOS
Quando penso na Grécia, desato a rir,
cuspo, praguejo, choro.
Foi para não ver a Grécia e tudo o que
é grego que deixei sempre a minha pátria. Vim para cá, trouxe meu
destino — não foi o destino que me trouxe: o homem faz o que quer!
Trouxe aqui o meu destino, trabalhei e trabalho como um negro. Verti
e continuo vertendo correntes de suor. Luto com a terra, com o vento,
com a chuva, com os operários, pretos e vermelhos.
Não tenho nenhuma alegria. Sim, uma:
trabalhar. Com meu corpo e meu espírito, mas sobretudo com o corpo.
Gosto de me cansar, suar, escutar os ossos rangendo. A metade do meu
dinheiro eu esbanjo, onde e como bem me apraz. Não sou escravo do
dinheiro: o dinheiro é que é meu escravo. Eu sou, e disso me gabo,
escravo do trabalho. Corto árvores: tenho um contrato com os
ingleses. Fabrico cordas; agora planto também algodão. Ontem à
noite, duas tribos dos meus negros — os vaivai e os vangnoni —
brigaram por uma mulher: uma prostituta. Amor-próprio, veja você.
Igual como na sua terra, ó gregos! Injúrias, algazarra, pauladas,
correu sangue. As mulheres saíram em plena noite e me acordaram,
esgoelando-se, para que eu fosse julgá-los. Aborreci-me, mandei
todos ao Diabo e depois à polícia inglesa. Mas ficaram a noite
inteira à minha porta, berrando. De madrugada, sai e julguei-os.
Amanhã, segunda-feira, vou cedo subir as
montanhas de Vassambra, de florestas densas, águas frescas e verdura
eterna.
Então, meu grego, quando você se
libertará desta moderna Babilônia, da “Prostituta sentada nas
grandes águas e com quem dormiram todos os reis da terra”: a
Europa? Quando virá, para juntos escalarmos estas montanhas desertas
e puras?
Tenho um filho com uma negra: é uma
menina. Sua mãe mandei-a embora: ela me enganava em público, em
pleno dia, debaixo de cada árvore verde. Então, achei demais e a
botei porta afora. Mas fiquei com a garota: tem dois anos. Anda, está
começando a falar e eu lhe ensino grego; a primeira frase que
aprendeu foi:
“Cuspo-te em cima, grego sujo!”
Ela se parece comigo, a marota. Só o
nariz é da mãe, grande e achatado. Gosto dela, mas como se gosta de
um cão ou de um gato.
Venha, você também fará um filho numa
vassambra e um dia casaremos os dois.”
Larguei a carta aberta nos joelhos. De
novo despertava em mim o ardente desejo de partir. Não por
necessidade. Sentia-me bem, nessa praia cretense, estava à vontade,
feliz e livre. Nada me faltava.
Mas sempre me roera um desejo ardente:
ver e tocar o mais possível a terra e o mar, antes de morrer.
Levantei-me, mudei de ideia e em vez de
subir a montanha desci a passos apertados para a minha praia. Sentia
a outra carta, no bolso superior do casaco, e não aguentava mais. Já
durou muito, dizia comigo, o antegozo da alegria, tão doce e tão
angustiante.
Cheguei ao barracão, acendi o fogo, fiz
o chá, comi pão com manteiga, mel e laranjas. Despi-me, deitei na
cama e abri a carta: “Meu mestre e discípulo neófito, salve!
Tenho aqui um trabalho grande e difícil,
“Deus” seja louvado — ponho entre aspas a palavra perigosa
(como uma fera nas grades), para que você não se enerve a abrir a
carta. Um trabalho difícil, mesmo “Deus” seja louvado. Há meio
milhão de gregos em dificuldades no sul da Rússia e no Cáucaso.
Muitos deles só falam turco ou russo, mas seu coração fala grego
com fanatismo. São do nosso sangue. Basta vê-los — o modo como
seus olhos brilham, esquivos e gulosos, o modo como os lábios
sorriem maliciosos e sensuais, e como conseguiram se tornar patrão
aqui, na imensa terra russa, tendo a serviço mujiques — para
compreender que são legítimos descendentes de seu bem-amado
Ulisses. Então a gente gosta deles e não os deixa morrer.
Pois eles correm o risco de perecer.
Perderam tudo o que tinham, tem fome, estão nus. De um lado,
perseguidos pelos bolcheviques; de outro pelos curdos. De toda parte
chegam refugiados que se amontoam em algumas cidades da Geórgia e da
Armênia. Não há comida, nem roupas, nem medicamentos. Juntam-se
nos portos e perscrutam angustiados o horizonte na esperança em que
barcos gregos venham buscá-los para levá-los de volta à sua mãe,
a Grécia. Um pedaço de nossa raça, isto é, um pedaço de nossa
alma está em pânico.
Se os abandonarmos à sua sorte,
morrerão. É preciso muito amor e compreensão, entusiasmo e
espírito prático — estas duas qualidades que você tanto gosta de
ver reunidas — para conseguir salvá-los e transplantarmos para o
nosso solo livre, onde serão mais úteis à nossa raça — lá em
cima, nas fronteiras da Macedônia, e mais longe, nas fronteiras da
Trácia. Só assim serão salvos centenas de milhares de gregos, e
nós nos salvaremos com eles. Pois desde o minuto em que cheguei
aqui, tracei um círculo, seguindo seus ensinamentos; a este círculo
chamei “meu dever”. E disse: se eu salvar este círculo inteiro,
estarei salvo; se não o salvar, estarei perdido. Ora, neste círculo
se acham os quinhentos mil gregos.
Percorro cidades e aldeias, reúno os
gregos, redijo relatórios e telegramas, esforço-me para convencer
nossos administradores de Atenas de que devem enviar navios, víveres,
roupas e medicamentos e fazer voltar à Grécia essas criaturas. Se
lutar com fervor e obstinação é uma sorte, então sou feliz. Não
sei se, como diz você, eu “talhei” em minha felicidade de acordo
com a minha estatura; graças aos céus pois, então, serei de
estatura elevada. Prefiro mesmo assim estender minha estatura até as
fronteiras mais recuadas da Grécia que são também os limites de
minha felicidade. Mas chega de teorias! Você se deita em sua praia
cretense, escuta o mar e o santuri, tem tempo; eu não. A atividade
me devora e com isso me regozijo. Agir: não há outra salvação.
O assunto de minhas meditações é agora
muito simples, como um bloco. Digo para mim: esses habitantes do
Ponto e Cáucaso, estes camponeses de Kars, os grandes e pequenos
comerciantes de Tiflis, Batum, Novorossisk, Rostov, Odessa, Crimeia,
são dos nossos, do nosso sangue. Para eles — como para nós — a
Capital da Grécia é Constantinopla. Temos todos o mesmo chefe. Você
o chama de Ulisses, outros de Constantino Paleólogo, não o que foi
morto sob os muros de Bizâncio, mas o outro, o da lenda, aquele que
se transformou em mármore e aguarda, de pé, o Anjo da liberdade.
Eu, com sua permissão, a este chefe de nossa raça dou o nome de
Akritas (Digenis Akritas: herói lendário de uma epopeia grega.
Corresponde a nossa palavra Marques, governador de marcos. Digenis:
de duas raças, grega e oriental). Prefiro este nome, mais austero e
menos guerreiro. Quando o ouço, ergue-se em mim, todo armado, o
heleno eterno, que combate sem tréguas nem descanso, nos confins e
nas fronteiras. Em todas as fronteiras: nacionais, intelectuais,
espirituais. E se lhe acrescentamos Digenis, retratamos ainda mais
profundamente a nossa raça, esta maravilhosa síntese do Oriente com
o Ocidente.
Encontro-me agora em Kars, onde vim
reunir os gregos de todas as aldeias vizinhas. No dia de minha
chegada, os curdos seqüestraram nas redondezas de Kars um padre e um
professor grego e os ferraram como mulas. Apavorados, os notáveis
refugiaram-se na casa em que me hospedo. Ouvimos, cada vez mais
perto, os canhões dos curdos. Todos tem os olhos fixos em mim como
se só eu tivesse o poder de salva-los.
Contava voltar para Tíflis amanhã, mas
agora, diante do perigo, envergonho-me de partir. Fico, pois. Não
digo que não tenha medo. O guerreiro de Rembrandt, o meu guerreiro,
não faria o mesmo? Ele teria ficado; eu, portanto também fico. Se
os curdos entrarem na cidade, é natural e justo que me ferrem em
primeiro lugar.
Certamente, mestre, você não esperava
que seu aluno tivesse este fim de mula.
Após interminável discussão à regra,
decidimos que todos se encontrariam essa noite, com sua mulas,
cavalos, bois, carneiros, mulheres e filhos e que de madrugada nos
poríamos a caminho do Norte. Irei à frente, como carneiro, guia do
rebanho.
Patriarcal emigração de um povo através
das cadeias de montanhas e das planícies de nomes lendários! E eu
serei um espécie de Moisés — Pseudo Moisés — conduzindo o povo
eleito para a Terra Prometida, como esses ingênuos chamam a Grécia.
Na verdade, para estar à altura de minha missão mosaica e para não
lhe causar vergonha, era conveniente que eu suprisse minhas elegantes
perneiras, objetos de suas caçoadas, e envolvesse as pernas em
faixas de pele de carneiro. Que tivesse, também, longas barbas
frisadas e gordurosas e, mais importante, dois cornos. Mas,
desculpe-me, não lhe darei este prazer. É mais fácil para mim
trocar de alma que de roupa. Uso perneiras, estou escanhoado como um
talo de couve e não sou casado.
Caro mestre, espero que receba esta
carta, talvez a última.
Ninguém o sabe. Não confio nas forças
secretas que protegem os homens, como se presume. Creio em forças
cegas que ferem à direita e à esquerda, sem maldade, sem intuito, e
matem quem estiver ao seu alcance. Se eu deixar a terra (digo deixar
para não nos assustar a ambos com a palavra exata), portanto, se eu
deixar a terra, passe bem, seja feliz, querido mestre! Tenho vergonha
de dizê-lo, mas é preciso, desculpe; eu também o amei muito.”
E embaixo, a lápis, escrito às pressas,
o post-scriptum:
P.S. — não me esqueço do que
combinamos no navio, quando parti. Fique sabendo que, se eu tiver de
deixar a terra, hei de preveni-lo, onde você estiver; não se
assuste.
Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego
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