As regras não eram ditas. Todos as
sabiam, embora ninguém as tivesse enunciado. Os horários eram
rígidos. Às 7h:25, café com pão e manteiga. Às 11h:10, almoço.
Às 13 horas, cafezinho. Às 15 horas, frutas da ocasião: mangas,
jabuticabas, laranjas. Às 17h:15, jantar. Às 20h:45, chá.
Ao almoço havia um costume curioso para
o qual não tenho explicação, posto que não pertence às tradições
mineiras. Terminado o almoço com sobremesa, colocavam-se na mesa
xícaras de chá. Vinham então café, leite quente, chocolate, pão,
manteiga, bolachas e todo mundo se servia. Procurei, mas ninguém
soube me dizer as origens de tão estranho costume. Tive, então, de
inventar minha própria explicação.
A Gigi, tia mais velha por nome Georgina,
desde menina sofria de um problema na coluna. Pois ela aprendeu
inglês e aos dezoito anos viajou sozinha para se tratar nos Estados
Unidos, em Willmington. A viagem era de vapor. Levava quase um mês.
Ela contava que uma peça do navio se quebrou em meio à viagem e
tiveram de ficar parados em alto-mar, esperando que as oficinas do
navio fizessem uma outra. O tédio era imenso, naquela solidão azul.
Os tubarões se aproximaram do navio e ficavam rodando, à espera...
Pois os cozinheiros, para se divertirem sadicamente, cozinhavam
abóboras que jogavam ao mar, sendo abocanhadas inteiras pelos
tubarões. A abóbora fervente se abria no estômago de peixe, que
saía saltando como um louco...
A Gigi passou um ano nos Estados Unidos e
voltou de lá com vários aparelhos de fisioterapia que ficavam no
seu quarto.
Os americanos têm o costume de
acompanhar suas refeições com canecas de café ralo.
Vão bebendo enquanto comem... Imaginei
que a Gigi tivesse aderido ao costume e o implantado no sobrado, como
um sinal a mais de sua diferença. Os mineiros pensaram logo em
melhorar o café ralo americano, e acrescentaram chocolate, leite,
bolachas e manteiga. Foi a única explicação que me apareceu.
Note-se que as laranjas das 15 horas eram
chupadas de gomo, segundo o ritual já descrito. Contaram-me que as
pessoas realmente cerimoniosas, especialmente as senhoras, achavam
impróprio que se colocasse uma jabuticaba inteira na boca para
estourá-la com uma mordida, como os homens faziam. Delicadas, elas
abriam-nas, uma a uma, cortando-as com uma faca.
Por que a rigidez dos horários? O Ismael
me contou que certa vez houve um atraso de quinze minutos na hora do
jantar, o que provocou uma pequena comoção doméstica. Acho que a
rigidez dos horários tem a mesma função que a rigidez das batidas
do coração. Quando o coração bate no tempo certo, a gente tem a
certeza de que tudo está bem. Mas, se ele começa a bater fora de
hora, algo não está bem. Os horários rígidos eram o bater do
coração do sobrado, dizendo que tudo era como sempre tinha sido.
Cada pessoa sabia precisamente o que
deveria fazer e não se permitiam trocas de papéis.
A atividade mais importante da vida do
Geninho era dar corda ao carrilhão da sala. Ninguém se atrevia.
Todo mundo sabia que só ele sabia. Normalmente o pêndulo ia ao
ritmo de metrônomo. Aí ele começava a tocar arrastado, pastoso,
como fala de bêbado. Era a hora de dar corda.
Sua segunda atividade consistia em
lustrar os sapatos. Para isso apoiava o sapato na canastra do seu
quarto, perto da porta. O lugar onde ele apoiava o sapato estava
afundado pelas centenas de vezes que ali havia raspado os sapatos,
para o lustro das escovas.
Seu outro momento com o relógio
acontecia precisamente às cinco para as nove da noite. Ele entrava
no seu quarto, tirava seu relógio de ouro, guardado numa caixa,
trazia-o para junto do rádio ligado na BBC, e aguardava as batidas
do Big Ben. Quando soavam as doze badaladas vindas de Londres o seu
relógio marcava nove horas. Ele sorria triunfante. O seu relógio
estava certo...
Curioso que sua vida girasse em torno dos
relógios. O tempo é uma taça vazia que pode ser cheia de vida. Mas
a sua vida era uma taça vazia, todos os dias as mesmas coisas.
Assim, dez minutos a mais, dez minutos a menos, não faziam
diferença. Para ele, o objetivo dos relógios eram eles mesmos. Ele
era um colecionador de taças vazias. Nunca se atreveu a amar por
medo de sofrer.
Todas as atividades estavam determinadas,
de quem trocaria o sabão de bola do lavatório, pendurado numa
correntinha, a quem cortaria com uma faca o jornal que serviria de
papel higiênico. Só vim a conhecer papel higiênico em rolo que se
compra no mercado na minha adolescência. A despeito disso gozo de
boa saúde.
Cada morador levava o seu urinol cheio,
pelas manhãs, do quarto para o banheiro. Era uma longa caminhada que
atravessava o sobrado inteiro. Era regra que não era dever dos
mijões e das mijonas esvaziar os urinóis diretamente no vaso da
privada, embora fosse o mais lógico. Os urinóis eram colocados
juntos, em fila, encostados à parede logo antes da porta do
banheiro. Esvaziar os urinóis no vaso, isso era dever da empregada.
Revelar sentimentos era estritamente
proibido. A revelação de sentimentos tem um potencial perturbador,
podendo causar mal-estar nos circunstantes. Cada um deveria guardar
seus sentimentos dentro de si, protegidos por máscaras. Seria uma
quebra insuportável da etiqueta familiar perguntar a um irmão ou
irmã sobre os seus sentimentos. Uma casa sem sentimentos é uma casa
onde não há brigas. Nunca ouvi uma única palavra mais áspera
pronunciada no sobrado.
A regra de ouro a ser obedecida era:
“Jamais ofender”. Muitos sapos eram engolidos para não ofender.
Uma de minhas tias, a mais jovem, tomou emprestada de uma irmã mais
velha uma pulseira de ouro e brilhantes para ir a um baile de
carnaval. A irmã mais velha sabia que não se deve ir com pulseiras
de ouro e brilhante a bailes de carnaval. O certo teria sido que ela
dissesse “não”. Mas é preciso não ofender. No baile ela perdeu
a pulseira. Ela nunca comentou o fato com a irmã que a emprestara e
a irmã nunca lhe perguntou pela pulseira. É preciso não ofender.
A maneira mais segura para não ofender é
manter distância: distância afetiva e distância física. Assim,
não havia abraços apertados que revelassem sentimentos, mesmo
depois de uma longa ausência. Quando visitávamos o sobrado, minha
mãe e eu, o encontro das irmãs era celebrado com apertos de mão.
Um cumprimento de mão, um tapinha no ombro, um sorriso sem graça.
Beijos, jamais. Não se sabia o que era um beijo.
Raro, mas acontecia entre os homens, o
cumprimento ser com o braço esticado, braço e antebraço em linha
reta, sem fazer ângulo no cotovelo. As mãos se apertavam fortemente
enquanto o braço duro mantinha a distância, impedindo a
aproximação. O que não era mau, em casos de mau hálito...
Quando, por algum acidente, alguém
ficava ofendido, dizia-se que “deu o cavaco”. De uma pessoa que
ficava ofendida à toa dizia-se que era “cavaquista”. Não me
perguntem sobre as origens dessa expressão. Ignoro se esse “cavaco”
refere-se a uma lasca de lenha ou a um cavaquinho, instrumento
musical. Não importa. A compreensão das expressões não depende da
compreensão do sentido de cada uma de suas palavras.
É curioso como as famílias criam o seu
próprio léxico, expressões que só elas entendem. Como é a caso
da expressão “vou dar o coque”, compreendida apenas pelos
membros mais velhos da minha família. “Coque” é uma pancada na
cabeça de alguém, especialmente das crianças, com a articulação
dos dedos da mão fechada. Justificavam-se os coques como medidas
educacionais corretivas. A origem da expressão “dar um coque” é
a seguinte. Havia uma família aparentada que tinha uma filha que não
batia bem. (Qual a origem dessa expressão “bater bem”?) Dentre
suas manias, a mais curiosa era essa: ela tinha de dar um coque na
sua mãe, todo dia. Um psicanalista logo invocaria o complexo de
Édipo: o que a moça desejava era matar a mãe para ficar com o pai.
Mas naquele tempo não havia psicanalistas. Foram feitos todos os
esforços possíveis de razão e persuasão para pôr um fim ao
castigo diário da mãe, um suplício de Sísifo. Inutilmente. Por
fim, a mãe desistiu e achou melhor se conformar. Aceitava o coque
diário sem reclamar. Mas havia uma coisa que ela não suportava: o
“suspense”. O coque não tinha hora certa, vinha em momentos
imprevisíveis. Para pôr fim ao suspense, a mãe ia até a filha,
abaixava a cabeça e dizia: “Filha, dá o coque logo...” . Dadas
essas explicações sobre a gênese do coque compreende-se o seu
sentido.
Era regra também que só se davam
presentes úteis. Brinquedos, nem pensar. Seria perda de dinheiro e
deseducativo. As crianças eram adultos pequenos. Ganhei muitos
sabonetes, muitos lenços, muitas meias…
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
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