quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Um conto se faz ao largo

... e essa história só não é rápida porque as palavras não são rápidas. Trata-se de uma pessoa. Morava num quarto alugado na casa de uma família. Era uma família ocupada, embaraçada em seus inúmeros deveres e pouco tomavam conhecimento da mulher do quarto alugado. Às vezes o pai ou um dos filhos passava para o banheiro e havia frases curtas trocadas. Depois de algum tempo nem mesmo essa conversa se fazia senão como um murmúrio, e depois incorporou-se ao silêncio. Quanto à pessoa, era uma mulher de meia-idade. Tratava-se de pessoa cuidadosa com os seus pertences, ciosa da própria limpeza. Seu quarto, aliás, a refletia bastante: era limpo e quase vazio. Pois foi essa mulher – inclassificável a menos que se descesse com interesse às profundezas de seu pensamento, o que não ocorreria a ninguém, tão desinteressante ela era –, pois foi essa mulher que viveu silenciosamente uma aventura. E, por mais estranho, uma aventura espiritual...”
Simplesmente não me lembro que história eu estava pretendendo contar, ao escrever essas linhas. Sei que era para ser um conto, mas que aventura espiritual seria? Não me lembro mais, e deixo aos leitores menos experientes, que escrevem ainda como exercício, o trabalho de continuar... Apenas enfunei uma vela e esta se fez ao mar. Mas e o rumo? Perdi a bússola.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

Nenhum comentário:

Postar um comentário