segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Torto Arado | 17

Se soubesse que tudo que se passa em meus pensamentos, essa procissão de lembranças enquanto meu cabelo vai se tornando branco, serviria de coisa valiosa para quem quer que fosse, teria me empenhado em escrever da melhor forma que pudesse. Teria comprado cadernos com o dinheiro das coisas que vendia na feira, e os teria enchido das palavras que não me saem da cabeça. Teria deixado a curiosidade que tive ao ver a faca com cabo de marfim se transformar na curiosidade pelo que poderia me tornar, porque de minha boca poderiam sair muitas histórias que serviriam de motivação para nosso povo, para nossas crianças, para que mudassem suas vidas de servidão aos donos da terra, aos donos das casas na cidade.
Quando Bibiana já morava novamente entre nós, passei a ler tudo o que visse em suas mãos ou nas de Severo. Passei a sentir fome de leitura, levava livro até para a sombra do descanso na roça. Essas histórias que encontrava nos livros e ouvia da boca do povo vão se desenrolando em minha cabeça como um novelo de malha de apanhar peixe. Quando sento quieta para costurar uma roupa velha ou levanto a enxada para devolvê-la de novo ao chão, abrindo covas, arrancando as raízes das plantas, é que esse fio, que tem sido meu pensamento, vai se fazendo trama. Nessas horas eu, que tomei raiva de homem, que nunca mais quis deitar ou casar com homem, talvez deitasse de novo só para ter filhos, para ter com quem sentar para desfiar essas histórias que não me abandonam. Talvez lhes desse uma pilha de cadernos velhos, manchados de umidade da chuva, ou roídos de traças, para que lessem e pudessem entender do que somos feitos.
O enterro do meu pai aconteceu depois de um dia de velório, quando os aflitos que tinham passado por suas mãos para cura vieram prestar homenagem ao curador. Zeca Chapéu Grande havia colocado sua mão sobre as cabeças dos que agora se abaixavam e rezavam por sua alma, em reverência. Cada um tinha uma história de loucura, de bebida, de quebranto e mau-olhado, e todas as coisas que contavam se encontravam no enxame de sentimentos que se abateu sobre a fazenda naquele dia. Era uma manhã morna, eu revezava com minha mãe e irmãs na cozinha preparando chá de capim-cidreira para acalmar o choro do povo. A casa que se desfazia, a sala onde meu pai emprestou seu corpo para que os encantados dançassem, curassem quem precisava, impusessem respeito e tolerância, organizassem os vizinhos, agora abrigava os que acolheu durante sua vida. Ouvia o som das conversas, cada um contando sua história com Zeca, cada um lembrando porque ele faria falta à Água Negra. As mulheres mais próximas chegavam à cozinha, perguntavam se comadre Salu precisava de ajuda. Deixavam por ali um pacote de café pilado, outro de açúcar, as garrafas térmicas de suas casas, e levavam a bebida para servir na sala. Quanto mais a hora passava, chegava gente de cada vez mais longe. Vinham de automóvel, de cavalo, de carro de boi, a grande maioria a pé, com suas sombrinhas para proteger do sol. “Esse sol ainda me come o juízo”, bradou dona Miúda enquanto entrava em nossa casa, “Bença, minha comadre, que Deus lhe conforte”.
Entre sussurros e conversas mais acaloradas ouvi, como uma constante companhia, o zumbido das moscas. Eu mesma espantava os insetos enquanto estava ao lado do caixão. Aquele som de insetos e vozes misturadas sempre me vem à mente quando me recordo daquele dia. O mesmo som que escutei no dia do velório de Tobias. Os vizinhos e parentes se guardavam em seus silêncios, tiravam seus chapéus e os baixavam à altura de seus umbigos, e só de vez em quando sussurravam coisas que não conseguia escutar.
Como se aguardasse uma boa notícia me aproximava do caixão, juntava as flores miúdas sobre seu corpo, uma manta alva da terra que pudesse cobri-lo. Olhava suas mãos antigas e grossas de trabalho, como se tivesse muitas luvas de pele e de calos as calçando. Mãos grandes e desproporcionais, quando olhava para o braço seco como um graveto. Senti Maria Cabocla me amparar, segurando meus braços, sem conseguir dizer palavra que pudesse me consolar. Depois de uma madrugada em vigília, depois de coarmos cafés e cobrirmos nossas cabeças, rumamos num cortejo para Viração, o cemitério da fazenda, onde estavam Donana e Tobias. Onde estavam as crianças que não vingaram no parto. Onde estavam as dores e as lembranças de muitas famílias que nos acompanhavam. Onde estavam os que morreram de doença e do esgotamento que advinha da labuta. Os que morreram de feitiço ou porque Deus assim o quis, como ouvia. A cova estava pronta, havia um monte de terra acumulada em sua borda para depois das rezas ser lançada sobre o caixão.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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