sábado, 18 de setembro de 2021

Quando o Estado naufraga, a ciência é a âncora

Quando a tempestade irrompe em fúria e o Estado ameaça naufragar, só nos resta lançar a âncora de nossos estudos nas profundezas da eternidade.” Assim escreveu o grande astrônomo alemão Johannes Kepler no início do século XVII, quando a Europa passava por terríveis conflitos entre católicos e protestantes, as disputas que culminariam na devastadora Guerra dos Trinta Anos em 1618.
O Estado a que Kepler se referia, o Sacro Império Romano-Germânico com sede em Praga, naufragava sob o comando caótico do imperador Rodolfo II, mentalmente instável. Nos bastidores da corte e pelos centros urbanos, diferentes facções religiosas disputavam o poder. As instituições colapsavam, e ninguém confiava em ninguém. Na Itália, a Igreja intensificava a repressão ideológica na luta contra a Reforma Protestante. Em 1616, Galileu Galilei foi caucionado pelo cardeal Bellarmine, mestre das questões controversas do Colégio Romano, que o desafiou a provar de forma convincente que a Terra gira em torno do Sol ou calar-se por completo.
Embora Kepler e Galileu temessem por suas vidas, não renunciaram à liberdade de cogitar sobre os mecanismos do mundo natural. Ignorando a repressão, avançaram suas pesquisas, que culminaram, ainda no mesmo século, no abandono das ideias de Aristóteles, que haviam dominado o pensamento ocidental e eclesiástico por dezoito séculos. A coragem intelectual deles abriu as portas para o mundo moderno. A repressão religiosa e as guerras passam, mas o conhecimento científico permanece. Não vivemos no século XVII, mas seria inocente – especialmente dada a atitude do governo atual – achar que a ciência e sua credibilidade não estão sendo atacadas.
Vemos isso todos os dias, quando muitos políticos e amadores criticam, sem a menor autoridade ou conhecimento, as conclusões de milhares de cientistas em assuntos que vão da validade das vacinas ao aquecimento global. Não acredito que tenhamos um único cientista no Congresso ou no Senado Federal. Nos EUA, a situação não é muito diferente. É paradoxal e trágico que isto esteja ocorrendo em pleno século XXI, quando dependemos tão diretamente das tecnologias resultantes da aplicação da pesquisa em ciência básica.
O vídeo SOS Ciência, produzido por cientistas brasileiros, é extremamente importante e deveria ser visto por todos. Sem a ciência brasileira, não existe a agricultura de ponta que transformou o Brasil numa grande potência agropecuária internacional, fornecendo alimentação para centenas de milhões de pessoas. Sem a ciência brasileira, não existem carros movidos a álcool ou gás natural, com flexibilidade no uso do combustível. Sem a ciência brasileira, não temos liderança na exploração de águas profundas, ou no controle e erradicação de várias doenças tropicais.
Como então, me pergunto, nos encontramos na situação absurda de termos governos que parecem declarar guerra ao conhecimento científico? Essa é uma questão crucial, que pertence a todos nós, e não só aos cientistas. Existe um abismo imenso entre o mundo da ciência e o mundo da política. A maioria dos líderes políticos pouco sabem sobre ciência (com louváveis exceções) e não parecem ter o menor interesse pelo assunto. Tendo ensinado ciência numa universidade por 27 anos, vejo uma divisão clara entre os alunos que gostam ou não de matemática e de ciências. Existem, como disse, exceções importantes, mas tirando os alunos interessados em legislação de patentes ou ambiental, a maioria que decide cursar advocacia e seguir carreira política não é composta de interessados nas disciplinas CTEM (Ciência, Tecnologia, Engenharia, Matemática).
Seria interessante ter um estudo quantitativo para saber como esse déficit afeta posições políticas relacionadas à ciência e sua importância, especialmente quando o governo atua sem uma consultoria científica. O resultado é que, sob a pressão de grupos de interesse diversos, questões de natureza científica viram assuntos “abertos ao debate público”: pessoas que pouco sabem sobre o uso da metodologia científica utilizada para se chegar a certa conclusão se acham no direito de opinar e criticar, baseadas em... Baseadas em quê, exatamente? Informações incompletas e propaganda de grupos de interesse que manipulam a opinião pública para servir aos seus propósitos, em geral para garantir os ganhos de seus investidores.
Com isso, a ciência e seus resultados – obtidos após anos de trabalho meticuloso realizado por profissionais treinados – se transformam em mera opinião, como se fossem futebol, moda ou filmes. É como se o cirurgião virasse advogado e o juiz virasse engenheiro. As pessoas tendem a confundir o processo de como a ciência é feita – por meio de autocorreção e constante melhora de resultados – com imprecisão e incerteza. Este é um erro grave.
A ciência avança em estágios, mas avança, e vemos os resultados disso por toda parte. Basta comparar a qualidade das TVs ou dos computadores de dez anos atrás com os de hoje. Celulares? GPSs? TVs de ultradefinição? Bluetooth? De onde vieram essas invenções e tecnologias? Quem são esses inventores? Certamente, não os políticos que querem cortar o orçamento da ciência. Eles apenas usam os frutos da pesquisa, aparentemente achando que surgem do nada, como se fosse mágica. Kepler viu o Estado colapsar à sua volta, e pouco pôde fazer a respeito. Não podia pegar uma espada para lutar, pois não era um herói dos campos de batalha e sim do mundo das ideias. O que ele e Galileu fizeram foi olhar para os céus, buscando verdades eternas, além da fragilidade e confusão dos homens.
O que fizeram permanece vivo, enquanto as guerras e repressões ideológicas ficaram no passado. Penso nas crianças e jovens espalhados pelo Brasil, nos potenciais Galileus e Keplers, que não terão a oportunidade de expandir seus horizontes, que viverão num país onde a carreira científica será cada vez mais vista como um tabu, como uma opção profissional inviável. É triste ver nosso país tomar esse rumo, controlado por pessoas que parecem não entender as consequências desastrosas de suas ações.

Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul

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