terça-feira, 7 de setembro de 2021

Quando a Natureza nos ensina a sermos mais humanos

Todo mundo já teve alguma experiência assustadora com o clima: uma tempestade devastadora, rios em cheia, desabamentos, ressacas violentas... No Brasil, até que temos sorte, já que não precisamos nos preocupar com terremotos, furacões ou vulcões. Mesmo assim, por experiência própria ou por notícias de outros países, cansamos de ver que, quando a Natureza resolve demonstrar seus poderes, nossos recursos e ingenuidade, mesmo que úteis, raramente são suficientes.
Claro, estamos longe da situação precária de nossos ancestrais das cavernas, estes sim completamente à mercê dos elementos. Mas é só chegar a tempestade, o furacão, o maremoto, o terremoto ou a erupção vulcânica para nos sentirmos como formigas pisoteadas por uma criança de 3 anos. A ordem natural obedece a uma hierarquia rígida, e quem acha que estamos no seu ápice comete um grave erro. Seres humanos são produto de circunstâncias específicas, que combinam a aleatoriedade das mutações genéticas e o ambiente em que nossos antepassados evoluíram.
Após milhões de anos, uma série de transformações em nossos primos hominídeos acabaram por gerar a nossa espécie, não muito mais do que cerca de 200 mil anos atrás. O que é praticamente nada, quando comparados aos 4,5 bilhões de anos da Terra. Em termos de história planetária, acabamos de chegar. A operação dos nossos sentidos (por exemplo, nossos olhos, que enxergam do vermelho ao violeta e não radiação infravermelha ou ondas de rádio), nossos músculos e ossos, a funcionalidade dos nossos corpos são otimizados para este planeta, dentro de condições climáticas que, apesar de flutuações de temperatura, não mudaram tanto nos últimos 20 mil anos.
Casacos e aparelhos de ar-condicionado ajudam, mas têm seus limites. Se saímos do nosso ambiente normal, logo nos deparamos com sérias limitações. Basta subir uma montanha de mais de 2.500 metros para ver como fica difícil respirar. No topo do Monte Everest, nossa funcionalidade metabólica cai para 30%. Ondas de calor ou frio afetam nosso comportamento e podem ser fatais. Não temos pelos espessos ou grandes reservas de gordura, nem chifres, garras e dentes afiados, ferrões venenosos ou um exoesqueleto para nos proteger.
Nossas vantagens evolucionárias são outras: a oposição do polegar, glândulas que nos permitem suar (e, portanto, correr por muito tempo) e um córtex frontal de tamanho desproporcional ao volume do nosso cérebro. Graças a essas vantagens, conseguimos transformar o planeta, ou, ao menos, parte de sua superfície e atmosfera. Infelizmente, nossos pequenos sucessos em adaptabilidade e controle da Natureza nos cegaram, criando a ilusão de que podemos dominar o planeta que habitamos com impunidade. No entanto, basta ocorrer um desastre natural para nos remeter às nossas condições primordiais: sem abrigo, eletricidade, comida ou água potável, uma longa lista de confortos da vida moderna, que achamos que estarão sempre aqui para nós, acessíveis. E agora?
Nessas situações, doenças se espalham com facilidade e temos poucas estratégias para nos proteger ou nos medicar. O que podemos – e devemos – fazer é criar um espírito de cooperação mútua para nos reagrupar e reconstruir, usando recursos disponíveis para restabelecer um senso de comunidade. Como sabemos bem, existirão sempre aqueles que usarão o caos da situação para se beneficiar individualmente, sem qualquer preocupação com os que estão ao lado. (Infelizmente, essas pessoas existem mesmo sem crises naturais).
Por outro lado, é, também, nesse tipo de situação, quando atingimos o fundo do poço, que o que temos de melhor vem à tona, indivíduos que se transformam em heróis, muitas vezes arriscando suas vidas por pessoas que nem conhecem. Nessa hora, a Natureza nos dá uma lição de vida, e somos obrigados a resgatar nossa humanidade, quando a sobrevivência do grupo é mais importante do que a do indivíduo, e o espírito social triunfa sobre a ganância pessoal. Nas próximas décadas, à medida que o aquecimento global mudar cada vez mais o planeta, vivenciaremos eventos climáticos com severidade crescente, no Brasil e no resto do mundo. Essas crises irão desafiar nossa capacidade de se adaptar a condições ambientais extremas.
Se iremos ou não sobrepujá-las, dependerá, em grande parte, da habilidade que temos de preservar o nosso senso de comunidade e de resgatar nossas melhores qualidades, passando por cima das tantas diferenças culturais que nos separam. Os testes serão difíceis, especialmente hoje, quando nosso equilíbrio social é já precário. Sendo um otimista, acredito que, quando as várias crises futuras desafiarem a nossa sobrevivência, teremos mais heróis do que oportunistas definindo nosso futuro.

Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul

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