domingo, 19 de setembro de 2021

Os vivos e os mortos

Enquanto isso não acontece, arqueólogos e bioantropólogos têm conseguido pintar um retrato cada vez mais detalhado de como era a vida no interior de Minas entre o fim do Pleistoceno e o começo do Holoceno, e as surpresas não cessam de aparecer. Talvez a mais estranha delas tenha a ver com os mamíferos monstruosos da Era do Gelo que estrelaram o começo deste capítulo. Embora eles certamente tenham convivido com os paleoíndios de Lagoa Santa — há datações de ossos de preguiça-gigante e dente-de-sabre indicando que eles ainda estavam por aí há 9.500 anos, ou seja, dois milênios depois da época de Luzia —, há pouquíssimos sinais de que os primeiros brasileiros os caçassem ou devorassem.
Como dizia o saudoso astrônomo e divulgador de ciência Carl Sagan (1934-1996), ausência de evidência não é evidência de ausência. Pode até ser que os restos de um lauto churrasco de Eremotherium laurillardi tenham sido descartados na lagoa de uma caverna da Chapada Diamantina, à espera de algum paleontólogo de faro apurado que identifique marcas de descarnamento na descomunal coxa do bicho. Por enquanto, porém, os poucos achados que parecem apontar nessa direção são dúbios. Um dos mais recentes e intrigantes é justamente um fragmento de dente de preguiça-gigante, encontrado em Sergipe pelo paleontólogo Mário Dantas, que parece ter sido retrabalhado pela ação humana, embora alguns pesquisadores duvidem dessa interpretação.
Esse relativo silêncio sobre a interação entre megafauna e paleoíndios do Brasil soa especialmente estranho porque a imagem tradicional dos paleoíndios, forjada em escavações feitas na América do Norte, é a de caçadores de megafauna por excelência, gente que abatia mamutes-lanosos (Mammuthus primigenius) com as célebres lanças Clovis, dotadas de elegantes pontas de pedra, assim chamadas por causa do sítio arqueológico de Clovis, no Novo México, onde foram encontradas pela primeira vez. Todas as evidências obtidas em Lagoa Santa até agora, as quais, aliás, batem com as de outros sítios Brasil afora, é de uma gente com estratégias generalistas de sobrevivência, coletando muitos vegetais e dependendo da caça de médio e pequeno porte (veados, roedores, lagartos) para colocar carne na mesa. Especula-se que algum tipo de tabu alimentar mágico-religioso poderia ter mantido esse pessoal à distância da megafauna, mas obviamente é muito difícil substanciar de alguma maneira essa ideia. De qualquer modo, embora a maioria dos pesquisadores ainda defenda que o desaparecimento dos supermamíferos do Pleistoceno na América do Norte teve ligação direta com a chegada do homem ao cenário, a situação no nosso pedaço do continente parece ter sido bem mais complexa.
Os estudos mais recentes que têm tentado enfrentar o problema andam pintando um cenário mais cheio de nuances do que o antigo modelo do overkill (algo como “supercaça” ou “matança generalizada”, em inglês), segundo o qual os primeiros americanos abateram logo de cara uma quantidade desproporcional de grandes mamíferos, já que esses bichos, por nunca terem visto um ser humano antes, seriam especialmente vulneráveis diante de caçadores de nossa espécie. A questão é que, com a ajuda de datações com melhor resolução temporal (ou seja, que estimam a idade de um fóssil com menor margem de erro) e de dados de DNA dos bichos extintos, muitos pesquisadores têm apontado que as dezenas de espécies da megafauna não caíram mortas “de repente” (vá lá, em poucas centenas de anos) quando os paleoíndios apareceram. O processo foi relativamente gradual, estendendo-se ao longo de dezenas de milhares de anos, e parece ter tido relação com os picos de calor que pontuaram o fim do Pleistoceno, culminando com o aquecimento rápido e intenso que iniciou a nossa atual era geológica. Calor parece uma coisa boa quando o globo está todo enregelado, mas grande parte das espécies da megafauna eram bichos adaptados aos ambientes abertos e secos que se expandiram nas condições climáticas do Pleistoceno. No Brasil, por exemplo, mais calor e mais chuva teriam levado à expansão de florestas úmidas, nas quais bichos imensos como as preguiças-gigantes provavelmente não se virariam bem. Teríamos então um processo de contração populacional de supermamíferos, que teria ganhado um empurrãozinho dos caçadores humanos, os quais, nesse cenário, teriam apenas desferido o golpe de misericórdia. Esse, em suma, é o cenário que podemos traçar hoje. É óbvio que mais e melhores dados poderão alterá-lo no futuro.
Os artefatos recuperados na região de Lagoa Santa não impressionam. Em geral feitos de quartzo, material relativamente chato de trabalhar, nenhum deles é tão imponente ou bem-acabado quanto uma ponta de lança ao estilo Clovis. Não se deixe enganar por esse cenário aparentemente pouco imaginativo, no entanto. Se o povo de Luzia não era formado por caçadores formidáveis ou grandes artífices (a respeito desse segundo ponto ainda temos algumas dúvidas, já que os instrumentos mais complexos podem apenas ter se perdido, talvez por serem feitos de material perecível), sua vida cultural e seus rituais parecem ter sido riquíssimos, e pistas preciosas a esse respeito têm sido achadas no majestoso abrigo da Lapa do Santo.
Qualquer semelhança com uma catedral do século XIII não é mera coincidência. Do lado de fora, os paredões de rocha calcária se erguem dezenas de metros acima do chão da mata, e seu topo também é recoberto de árvores. Conforme o visitante se aproxima do salão principal da gruta, começam a aparecer estalactites, estalagmites e outras projeções barrocas da interação entre a rocha e a água ao longo dos milênios. O solo pulverulento do abrigo, ao ser escavado, revelou tanto artefatos quanto restos de animais e plantas — e sepulturas. Dei a sorte de estar presente quando identificaram o primeiro esqueleto humano, a começar pelos ossos do quadril. Mais de 30 outros corpos foram encontrados no lugar com o passar dos anos. O ponto central aqui é que, em muitos casos, estamos falando do que os especialistas costumam chamar de sepultamento secundário — ou seja, o que acontece quando, após um enterro inicial (ou “primário”), o cadáver é desenterrado e recebe outro destino.
Em alguns lugares do mundo, como a Judeia da época de Jesus, sepultamentos secundários são coisa simples: desenterram-se os ossos do defunto, os quais passam por uma sessão de limpeza, são acondicionados numa urna ou ossuário e levados de volta à sepultura da família. Os paleoíndios da Lapa do Santo eram muito mais imaginativos que os judeus do século I d.C., contudo. Ao examinar a variedade de disposições dos restos mortais do abrigo, catalogada pelo arqueólogo brasileiro André Strauss, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, na Alemanha, é difícil evitar a impressão de que eles estavam fazendo instalações artísticas pós-modernas com seus mortos.
Dentes de um indivíduo eram arrancados e colocados cuidadosamente na boca de outro. Virado de cabeça para baixo, um crânio servia como uma espécie de bacia dentro da qual eram depositados os ossos de diversos outros indivíduos. Crânios de adultos passavam a ser acompanhados por esqueletos pós-cranianos (ou seja, do pescoço para baixo) de crianças e vice-versa (crânios infantis, corpo de adulto). Corante ocre e carvão eram empregados para dar um colorido especial aos conjuntos. Uma das descobertas recentes de Strauss e seus colegas é a da mais antiga decapitação do continente americano, provavelmente realizada depois da morte, para alívio do dono da cabeça. O crânio foi encontrado numa delicada composição com os ossos das mãos: a direita foi colocada do lado esquerdo do crânio, com os dedos apontando para baixo, e a mão esquerda foi disposta do lado direito, com os dedos voltados para cima.
Não há como saber que significados os moradores de Lagoa Santa atribuíam a esses sepultamentos requintados. O certo, conforme aponta Strauss, é que algumas regras de simetria simbólica parecem ter influenciado a disposição dos mortos (como o par infância/velhice, por exemplo). Seria uma forma de ressaltar a profunda unidade entre ancestrais e seus descendentes, uma “dança da morte” que unia a todos?
Colocando as coisas nesses termos, parece que o povo de Luzia era formado por sisudos filósofos da Idade da Pedra. Talvez isso seja verdade, em parte, mas outra descoberta surpreendente, debaixo do mesmo solo poeirento que recobria os bizarros sepultamentos secundários, ajudou os arqueólogos a enxergar os frequentadores da Lapa do Santo por um ângulo totalmente diferente. E a culpa é toda do Taradinho.
Taradinho” é o apelido dado por Walter Neves e seus colegas à estranha figura gravada na rocha do abrigo que é um dos mais antigos exemplares de arte rupestre do nosso continente (a datação indireta sugere uma idade de 10,5 mil anos). O que falta ao Taradinho em apuro artístico, ele compensa com (como direi?) empolgação: o pênis ereto desenhado na gravura é quase do tamanho das pernas do sujeito. A cabeça em forma de letra C, as mãos com três dedos e a postura arreganhada sugerem que não se trata de nenhuma forma ritualizada de arte, dedicada a celebrar as glórias da fertilidade humana (hipótese sacada de modo quase automático por arqueólogos quando qualquer alusão ao sexo aparece em pinturas, gravuras ou esculturas primitivas). Não, gentil leitor, é difícil tirar da cabeça a impressão de que o Taradinho é fruto de alguma irreverência adolescente, de uma hora crepuscular sem fazer nada, de alguém espremido entre a caverna e a mata.

Reinaldo José Lopes, in 1499: O Brasil antes de Cabral

Nenhum comentário:

Postar um comentário