segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Esquece

Todo camburão tem um pouco de navio negreiro.
Marcelo Yuka

Violência é o carrão parar em cima do pé da gente e fechar a janela de vidro fumê e a gente nem ter a chance de ver a cara do palhaço de gravata para não perder a hora ele olha o tempo perdido no rolex dourado.
Violência é a gente naquele sol e o cara dentro do ar condicionado uma duas três horas quatro esperando uma melhor oportunidade de a gente enfiar o revólver na cara do cara plac.
Violência é ele ficar assustado porque a gente é negro ou porque a gente chega assim nervoso a ponto de bala cuspindo gritando que ele passe a carteira e passe o relógio enquanto as bocas buzinam desesperadas.
Violência são essas buzinadas e essa fumaça e o trânsito parado e o outro carro que não entende que se dependesse da gente o roubo não demoraria essa eternidade atrapalhando o movimento da cidade.
Violência é você pensar que tudo deu certo e nada deu certo porque quando você vê tem um policial ali perto e outro policial ali perto querendo salvar o patrimônio do bacana apontando para a nossa cabeça um 38 e outro 38 à paisana.
Violência é acabarem com a nossa esperança de chegar lá no barraco e beijar as crianças e ligar a televisão e ver aquela mesma discussão ladrão que rouba ladrão a aprovação do mínimo ficou para a próxima semana.
Violência é a gente ficar com a mão levantada cabeça baixa em frente à multidão e depois entrar no camburão roxo de humilhação e pancada e chegar na delegacia e o cara puxar a nossa ficha corrida e dizer que vai acabar outra vez com a nossa vida.
Violência é a gente receber tapa na cara e na bunda quando socam a gente naquela cela imunda cheia de gente e mais gente e mais gente e mais gente pensando como seria bom ter um carrão do ano e aquele relógio rolex mas isso fica para depois uma outra hora.
Esquece.

Marcelino Freire, in Contos negreiros

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