sexta-feira, 10 de setembro de 2021

A verdade sobre a guerra

A fórmula Conhecimento = Experiências × Sensibilidade não mudou apenas nossa cultura popular, mas também nossa percepção de questões de peso, como a guerra. No decorrer da maior parte da História, quando as pessoas queriam saber se determinada guerra era justa, elas perguntavam a Deus, às Escrituras, a reis, nobres e sacerdotes. Poucos davam importância às opiniões e experiências de um soldado comum ou de um civil ordinário. As narrativas de guerra, como as de Homero, Virgílio e Shakespeare, focavam nas ações de imperadores, generais e heróis extraordinários, e, embora não escondessem a malignidade da guerra, isso era mais do que compensado por um cardápio completo de glória e heroísmo. Soldados comuns apareciam ou como pilhas de corpos massacrados por algum Golias, ou como uma multidão que aclamava, carregando nos ombros um triunfante Davi.




Olhem, por exemplo, o quadro sobre a Batalha de Breitenfeld, que aconteceu em 17 de setembro de 1631. O pintor, Jean-Jacques Walter, glorifica o rei Gustavo Adolfo da Suécia, que naquele dia conduziu seu exército a uma vitória decisiva. Gustavo Adolfo eleva-se acima do campo de batalha como se fosse um deus da guerra, e tem-se a impressão de que o rei controla a batalha como se fosse um jogador de xadrez movimentando seus peões. Os próprios peões são mais figuras genéricas, ou minúsculos pontos ao fundo. Walter não está interessado em como eles se sentiam quando atacavam, fugiam, matavam ou morriam. São um coletivo desprovido de rosto.

Mesmo quando os pintores focalizavam a batalha em si, e não o comandante, ainda assim as olhavam de cima, muito mais preocupados com as manobras coletivas do que com os sentimentos pessoais. Tome-se, por exemplo, o quadro de Pieter Snayers sobre a Batalha da Montanha Branca, em novembro de 1620.



O quadro descreve uma célebre vitória católica na Guerra dos Trinta Anos sobre os heréticos rebeldes protestantes. Snayers quis comemorar essa vitória registrando meticulosamente as várias formações, manobras e movimentos de tropas. Podem-se identificar facilmente as diferentes unidades, seus armamentos e sua posição na organização da batalha. O artista deu muito menos importância às experiências e aos sentimentos dos soldados comuns. Assim como Jean-Jacques Walter, ele nos faz observar a batalha do privilegiado ponto de vista olímpico de deuses e reis e nos dá a impressão de que a guerra é um gigantesco jogo de xadrez.

Se você olhar mais de perto — para isso será necessária uma lente de aumento —, vai perceber que A Batalha da Montanha Branca é um pouco mais complexa que um jogo de xadrez. O que à primeira vista pareciam ser abstrações geométricas torna-se, a um exame mais aproximado, cenas sangrentas de carnificina. Aqui e ali avistam-se os rostos de soldados correndo ou fugindo, atirando com seus fuzis ou empalando um inimigo com suas baionetas. Contudo, essas cenas adquirem significado em razão do lugar que ocupam dentro da pintura como um todo. Quando vemos um obus de canhão fazendo um soldado em pedaços, entendemos isso como parte da grande vitória católica. Se o soldado está lutando no lado protestante, sua morte é a justa retribuição à rebelião e à heresia. Se está com o exército católico, sua morte é um nobre sacrifício por uma causa justa. Olhando para cima, veem-se anjos pairando sobre o campo de batalha. Estão segurando um cartaz que explica em latim o que aconteceu nessa batalha e por que ela foi tão importante. A mensagem é que Deus ajudou o imperador Fernando II a derrotar seus inimigos em 8 de novembro de 1620.

Durante milhares de anos, quando olhavam para a guerra, as pessoas viam deuses, imperadores, generais e grandes heróis. Mas, nos últimos dois séculos, reis e generais foram empurrados para um lado, e as luzes da ribalta passaram a destacar o soldado comum e suas experiências. Romances de guerra, como Nada de novo no front, e filmes de guerra, como Platoon, começam com um jovem e ingênuo recruta, que pouco sabe sobre si mesmo e sobre o mundo, mas carrega uma pesada carga de esperanças e ilusões. Acredita que a guerra é gloriosa, que nossa causa é justa, que o general é um gênio. Algumas semanas de uma guerra real — de lama, sangue e cheiro de morte — despedaçam suas ilusões, sucessivamente. Se sobreviver, o ingênuo recruta sairá da guerra como um homem muito mais sensato, que não acredita mais em clichês e em ideais propagados por professores, cineastas e políticos eloquentes.

Paradoxalmente, essa narrativa tornou-se tão influente que hoje em dia ela é repetida com regularidade por professores, cineastas e políticos eloquentes. “A guerra não é o que você vê nos filmes!”, advertem sucessos de bilheteria como Apocalypse Now, Nascido para matar e Falcão Negro em perigo. Preservados em celuloide, prosa ou poesia, os sentimentos do soldado comum tornaram-se a autoridade definitiva na guerra, que todos aprenderam a respeitar. Como nesta anedota: “Quantos veteranos do Vietnã são necessários para trocar uma lâmpada?”. “Você não ia saber, você não esteve lá.”

Os pintores também perderam o interesse em generais montados em seus cavalos e em manobras táticas. Em seu lugar, empenham-se em retratar como se sente o soldado comum. Olhe mais uma vez para A Batalha de Breitenfeld e A Batalha da Montanha Branca. Agora olhe para os dois quadros a seguir, que são considerados obras-primas sobre o tema da guerra no século XX: A guerra (Der Krieg), de Otto Dix, e Aquele olhar de 2 mil jardas, de Thomas Lea.

Dix serviu como sargento no Exército alemão durante a Primeira Guerra Mundial. Lea cobriu a Batalha de Peleliu, em 1944, para a revista Life. Enquanto Walter e Snayers viam a guerra como um fenômeno militar e político e queriam que soubéssemos o que acontecia em determinadas batalhas, Dix e Lea a viram como um fenômeno emocional e queriam que soubéssemos como ela é sentida. Eles não se importam com a genialidade dos generais ou com os detalhes táticos desta ou daquela batalha. O soldado de Dix pode estar em Verdun, em Ypres ou no Somme, não interessa, porque a guerra é um inferno em toda parte. O soldado de Lea pode calhar de ser apenas um soldado de infantaria americano em Peleliu, mas o mesmo olhar de 2 mil jardas pode ser visto no rosto de um soldado japonês em Iwo Jima, de um soldado alemão em Stalingrado, ou no de um soldado inglês em Dunquerque.

Nos quadros de Dix e de Lea, o significado da guerra não emana de movimentos táticos ou de proclamações divinas. Se você quer compreender a guerra, não olhe para o general no topo da colina nem para os anjos no céu. Olhe diretamente para os olhos dos soldados comuns. No quadro de Lea, os olhos escancarados de um soldado traumatizado abrem uma janela para a terrível verdade da guerra. No de Dix, a verdade é tão insuportável que é preciso ocultá-la parcialmente atrás de uma máscara antigás. Nenhum anjo sobrevoa o campo de batalha — só há um corpo em decomposição, pendurado numa viga destruída e apontando um dedo acusador.





Artistas como Dix e Lea reviraram a tradicional hierarquia da guerra. Em tempos antigos, a guerra pode ter sido tão horrenda quanto no século XX. Contudo, mesmo experiências atrozes eram inseridas num contexto mais amplo, que lhes dava um significado positivo. A guerra pode ser um inferno, mas era também a entrada para o céu. Um soldado católico lutando na Batalha da Montanha Branca poderia dizer a si mesmo: “É verdade, estou sofrendo. Mas o papa e o imperador dizem que estamos lutando por uma boa causa, e assim meu sofrimento é pleno de significado”. Otto Dix empregou um tipo oposto de lógica. Ele via na experiência pessoal a fonte de todo significado, o que explica sua linha de pensamento: “Estou sofrendo — e isso é ruim —, daí que a guerra toda é ruim. E, se o kaiser e o clérigo assim mesmo a apoiam, então eles devem estar enganados”.

Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

Nenhum comentário:

Postar um comentário