quinta-feira, 5 de agosto de 2021

O arbítrio criador

Muita religião, seu moço!” — dizia ainda Riobaldo. — “Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo agora de todo rio...”
Ponha-se “língua” em lugar de religião, e aí temos uma definição estilística da obra de Guimarães Rosa. Nela estará acenada a hibridez de um sistema expressivo cujos elementos provêm de origens as mais variadas, em que termos de gíria (“o meu esmarte Patrão”, “Moço esporte de forte”) e latinismos (“assim vocado e ordenado”; “as infernas grotas”; “O padre Prefeito, solene modo, fez-nos a comunicação”) se misturam aos rodeios de acentuado sabor popular e a preciosismos rebuscados.
Ao relacionar os componentes desse estilo, em seu estudo nunca assaz citado, Manuel Cavalcanti Proença afirma que, contudo, ele não constitui uma nova língua: “O que ocorreu foi ampla utilização das virtualidades da nossa língua, tendo a analogia, principalmente, fornecido os recursos de que ele [= o autor] se serviu.” E para neles basear a analogia, Oswaldino Marques, em seu estudo igualmente fundamental, cita em apoio das inovações mais ousadas outros tantos “parâmetros”, termos vernáculos tomados ao acaso.
Deve-se admitir, porém, a existência de praxes não apoiadas em analogias. Estão neste caso as amálgamas de dois vocábulos cuja fusão é provocada não por associação intelectual, mas pela coincidência sonora de uma sílaba. Duas palavras — fúnebre e brilho — fundem-se na parcela sonora comum em funebrilho, para designar uma noção (enfeite de caixão) até então não denominada com termo específico. Ou então diligente e gentil fundem-se para indicar a função momentânea de dois atributos em diligentil. Outros exemplos: personagente (já citado), perséquito, sussurruído, delirido, tumultroada, engenhingonça, afobafo, malandrajo, excelentriste, dançandoar-se, descreviver. De momento não me ocorre outro parâmetro a não ser tranquilômetro, tranquilometragem, pertencentes à pseudolíngua publicitária. Em tais casos a fantasia do autor substitui-se às tendências da língua entregando-se à criação arbitrária de neologismos com a mesma deleitação que inspira as bizarrices da linguagem infantil na boca de sua personagem Brejeirinha.
Nem sempre o significado dessas inovações é óbvio: mais de uma constitui enigma de decifração nada fácil, capaz de suscitar as interpretações mais desencontradas. Veja-se este exemplo, encontrado em “Nada e a nossa condição”: “Ante e perante, à distância, em roda, mulheres se ajoelhavam, e homens que pulando gritavam, sebestos, diabruros”. O leitor fica intrigado com o adjetivo não dicionarizado sebesto. Deverá ligá-lo a sebesta (nome de árvore) ou a sebo (especialmente das locuções: metido a sebo; ora, sebo!), tomá-lo por uma corruptela de sebento ou considerá-lo uma amálgama audaciosa de sebo + besta ou de se (pronome) + besta? Todas essas conjeturas, embora desencorajadas pelo contexto, hão de se apresentar ao espírito do leitor mais prontamente do que o verdadeiro radical, pedido emprestado ao substantivo grego sébas (“temor religioso”, “veneração”) e ao correspondente verbo sebo.
Outro exemplo, constante da “Pequena palavra” já citada, mostra também como seria ilusório pretender a uma compreensão integral de uma página de Guimarães Rosa. Ao caracterizar o divertimento dos pastores húngaros diz que “se alargam nas tabernas rurais, onde o país canta e dansa suas csardas, que em ritmo alternam: a lentidão melancólica e lassa — e — o ferver tenso agilíssimo de alegria doidada que alucina com um inaudito frisson”. À primeira leitura o trecho não oferece dificuldades: mas se matiza de engenhosa musicalidade aos olhos de quem notar (mas quem notará?) que o autor, num enlevo de virtuoso, encontrou jeito de encerrar nele os próprios termos que, em magiar, designam as duas variantes do csárdás: lassu (“lento”) e friss (“rápido”). Não é difícil prever a perplexidade dos autores de teses de doutoramento sobre a linguagem de João Guimarães Rosa (teses que já começam a aparecer, dentro e fora do país) dando tratos à bola para desvendarem os mistérios adrede espalhados pelo autor ao longo de suas páginas, enquanto este, de longe, os observa com discreta malícia e aquelas suas risadinhas cordiais de esfinge bem-educada.
Embora com raízes na língua, que não desconhece palavras de polivalência funcional (como longe, advérbio, adjetivo e substantivo), nas páginas de Guimarães Rosa os vocábulos ganham elasticidade quase ilimitada. Não somente substantivos, adjetivos e advérbios, mas conjunções e interjeições trocam de categoria funcional com grande facilidade: “Mas a Moça estava devagar.”; “a gente (...) pensava num logo luar”; “Desço em pulos passos”; “outroras coisas”; “o que fácil não fiz”; “os futuros antanhos”; “mal dava para se ver, no escurecendo”; “a de nunca naturalidade”; “Sou de nem palavras.”; “Aquilo na noite do nosso teatrinho foi de Oh.”; “Disse de não, conquanto os costumes”, etc.
Assim como nas enálages supracitadas o advérbio se disfarça em adjetivo ou substantivo, toda e qualquer locução adverbial pode-se revestir de função nominal: “Noutro de-repente”; “do meu mais-longe”; “os às-nuvens pináculos dos montes”; “aquela a-pique difícil fazenda”; “no entre algumas flores”; “o em-diabo pretinho Alfeu”, passando até a se flexionar: “em-diabas confusões”; “ela batia com a cabeça, nos docementes”. Mais ainda, uma frase qualquer se transforma em epíteto ou substantivo: “um narizinho que-carícia”; “no se é o que é que é”; “o em que me tive”.
Quer dizer os materiais da língua estão em fusibilidade permanente, lavas que só criam forma ao derramar-se. Nem todos os produtos dessa criação vulcânica saem graciosos ou eufônicos: há os que irritam e provocam; mas o conjunto da erupção é um espetáculo que subjuga.
Por enquanto só se pode conjeturar a profundeza da revolução operada nas letras brasileiras por Guimarães Rosa. Quem assina esta introdução pôde, como árbitro de vários concursos de conto, observar a sedução exercida pelo seu estilo nos novos prosadores de todas as regiões do Brasil. Inimitável na intuição das correntes fundas do inentendível mundo íntimo, assim como na transferência de episódios locais para horizontes universais, sua obra, por enquanto, está agindo sobretudo pelo aspecto epidérmico. É de se esperar que nos talentos bastante fortes para se subtraírem ao perigo do arremedo servirá de estímulo para o desapego de todos os padrões tradicionais. Mas parece pouco provável que suas invenções e liberdades em sua totalidade venham a se enquadrar no corpus do idioma, precisamente porque seu poder está no vislumbre fugaz da instantaneidade.
Evidentemente há coisas que só entenderá em Grande sertão: veredas o sertanejo, precisamente o menos provável de seus leitores” — pondera com espírito Adolfo Casais Monteiro. Estendendo a observação a Primeiras estórias, acrescentaria eu que há outras coisas que só o dialetologista, outras que só o filósofo, outras ainda que só o psicanalista entenderá — o que equivale a dizer que nenhum leitor entenderá a obra na íntegra. Tenho que esse entendimento nem sequer é visado pelo escritor. Trabalhando como o cineasta, sabe que os detalhes de seus flagrantes só parcialmente serão percebidos pelo público na rápida sucessão das imagens e nem por isso deixa de calcular e apurar os seus menores efeitos. Por menos que pegue dessa profusão barroca, o leitor médio ainda pegará bastante para ceder ao encantamento.
Dessa própria riqueza surge a possibilidade de se encontrarem intenções e subentendidos mesmo onde não os há, de surgirem interpretações de surpreender o único detentor de todas as chaves da obra, o próprio autor. Até agora não me consta que ele tenha posto em dúvida a validez de qualquer explanação, nem creio que venha a fazê-lo. Mas tampouco fornece as chaves a ninguém. “Rosa não entrega nem a pau o mapa da mina” — segundo uma expressão feliz de Afonso Arinos de Melo Franco. Solta pelo seu criador, a obra passa a ter a sua própria vida, que a este não é dado nem retificar nem influenciar. Tudo leva a crer que os livros de Guimarães Rosa suscitem mais tentativas de decifração que os de qualquer outro escritor brasileiro, e que estas os tornem ainda mais densos e mais cheios de significados.
Conta-me Guimarães Rosa que os compositores de tipografia, não entendendo uma de suas palavras ou frases, têm-nas modificado involuntariamente; e que, ao rever as provas, tem-lhe acontecido não emendar o erro por decorrer de uma compreensão aceitável dos antecedentes, e por se ajustar bem ao contexto.
O grande tradutor de Grande sertão: veredas, Meyer-Clason (que neste momento está transplantando para o alemão estas Primeiras estórias), resolvera a maior percentagem possível dos enigmas verbais que formam o tecido desse romance gigantesco. Enganou-se, porém, ao tomar “lagarta-de-fogo” (equivalente de tatarana, alcunha de Riobaldo) por “lagartixa de fogo” e ao traduzir esse misterioso nome de bicho por Feuersalamander. Foi assim agregada à variante alemã do livro uma conotação alquimística e medieval inexistente no original, mas que o autor, depois de estranhá-la no princípio, acabou por admitir como perfeitamente compatível com o destino da personagem, que ganhava assim uma nova dimensão.
Espero ter dado ao leitor, nestas considerações prévias demasiadamente difusas, uma ideia pelo menos da extensão do mundo em que se vai embrenhar, com o risco certo de perder-se mais de uma vez e com a recompensa não menos certa de se reencontrar seguidamente a si mesmo nos muitos atalhos de Guimarães Rosa.

Paulo Rónai, in Os vastos espaços (introdução à Primeiras Estórias, de G. Rosa)

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