São muitas as tentativas de descobrir o
que diferencia o humano dos outros animais. A história de que os
humanos são os únicos que pensam é balela. Já há tempos se
relativizou o conceito de pensamento, e sabe-se que ele não se
restringe mais à noção de lógica causal ou de raciocínios
encadeados. Portanto, o velho corolário de que os humanos são
superiores por serem racionais já pode ser descartado.
Dentro desse mesmo espírito da
racionalidade, há outros estudiosos que afirmam que os humanos sabem
representar, enquanto aos animais cabe apenas repetir aquilo que está
em seu código genético. Nesse sentido, haveria, da parte dos
hominídeos, uma capacidade inata de inventar, a partir de uma
herança biológica, formas infinitas de comunicação: as palavras,
os gestos, as carícias, a arte, os objetos, tudo como representação
simbólica de um desejo expressivo. Mas, contra essa hipótese, há
inúmeras pesquisas zoológicas que apontam variações inesperadas
em danças desempenhadas por abelhas; nos movimentos de alguns
pássaros, nos barulhos das baleias, nos saltos dos golfinhos, nas
tomadas de decisão de macacos quando dentro de uma cela, na
capacidade aparentemente interminável de aprendizado por parte dos
cachorros e dos cavalos. Ao mesmo tempo, nós humanos vamos, cada vez
mais, nos dando conta de nossa própria incapacidade em conhecer o
que significa a representação e quais são seus limites.
Já se falou muito que os humanos são os
únicos seres que guardam os restos mortais de seus parentes, mas
isso também é polêmico. Se os elefantes, como se sabe, se
encaminham para um local distante quando pressentem seu passamento e
o mesmo fazem os gatos; se várias espécies de macacos, quando
perdem um parceiro ou parceira, passam semanas enlutados, sem vontade
de comer ou de brincar, e se cenas parecidas se repetem com vários
outros animais, não se pode afirmar categoricamente que eles não se
importem com seus mortos ou que não tenham noção do que significa
o desaparecimento.
Mas, depois de muita reflexão, creio ter
chegado a uma diferença infalível e duvido que alguém retire de
mim a grandeza dessa descoberta.
O que definitivamente distingue o animal
humano dos outros animais é o beijo.
Não falo de uma simples aproximação
entre bocas, narizes, boca e bochecha, boca e alguma outra parte do
corpo. Tampouco quero considerar como beijo equivalentes toques
corpóreos, verificáveis em outros animais. Falo do beijo que faz
“smack”, que estala, que diz respeito a uma contração calculada
e minuciosa dos lábios, formando um pequeno bico que, ao encostar na
superfície epitelial de outra pessoa (boca, bochecha, testa, mão,
seio, perna etc.), contrai-se ainda mais, produzindo um som
pitoresco, resultado de uma aproximação projetada entre os lábios
superior e inferior. E o beijo agregado de complementos, como o beijo
de língua, que pode demorar, nos casos de paixões adolescentes, até
cerca de algumas horas. Ou o beijo roubado, uma categoria especial,
beirando o indescritível, porque é o
beijo-que-se-sente-vontade-de-dar-em-alguém-de-surpresa-sem-que-essa-pessoa-saiba-e-a-pessoa-fica-feliz-em-recebê-lo.
E as diferenças que foram se estabelecendo entre os tipos de beijos:
na testa, paternal, independente de quem o dê; na bochecha,
fraternal ou burocrático, variando conforme a circunstância, mas
sempre identificável; na boca, curto ou longo, comunicando amor,
paixão, amizade ou, em alguns lugares, lealdade eterna; nos seios,
expressão erótica por excelência; nos pés, índice fetichista ou
de promessa de fidelidade; na mão, servilismo. Entre mulheres, entre
homens, mulheres e homens, mães e filhos, amigos, crianças, velhos,
inimigos, chefes e empregados, amantes, o beijo da extrema-unção e
o do nascimento, nos olhos, o de chegada e o de despedida, o do
despertar e o de dormir. O beijo em português, que vem de suavis,
sinalizando agrado e maciez, ou de ósculo, que significa boca
pequena. O beijo em inglês, kiss, mais literal, tocar com os
lábios. Neshikah, em hebraico e outras línguas semíticas,
que é o mesmo que apertar, juntar com força. E as metáforas
baseadas no beijo, como o mar que beija a areia, o beijo suspenso
invisível na boca das meninas e o beijo que é a véspera do
escarro. O beijo esfregadinho, de japonês; de faxininha, limpando as
gengivas; de louco, quase encostando na garganta; o do beijoqueiro, o
do beija-flor, o beijo que só se manda soprando com a mão e a boca
e o imperdoável “bj”, que me
persegue as noites insones.
O
beijo, essa inutilidade, não nos salvará do irremediável, porque
ele não salva. Ele será somente nossa marca do demasiadamente
humano, quase encostando no bicho, tão perto que, por causa dele,
nos tornamos ainda mais humanos, porque o smack
e a língua prolongada sempre nos lembrarão do porquê de termos
vindo ao mundo: para beijar.
Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou
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