quinta-feira, 1 de abril de 2021

O beijo

 



São muitas as tentativas de descobrir o que diferencia o humano dos outros animais. A história de que os humanos são os únicos que pensam é balela. Já há tempos se relativizou o conceito de pensamento, e sabe-se que ele não se restringe mais à noção de lógica causal ou de raciocínios encadeados. Portanto, o velho corolário de que os humanos são superiores por serem racionais já pode ser descartado.
Dentro desse mesmo espírito da racionalidade, há outros estudiosos que afirmam que os humanos sabem representar, enquanto aos animais cabe apenas repetir aquilo que está em seu código genético. Nesse sentido, haveria, da parte dos hominídeos, uma capacidade inata de inventar, a partir de uma herança biológica, formas infinitas de comunicação: as palavras, os gestos, as carícias, a arte, os objetos, tudo como representação simbólica de um desejo expressivo. Mas, contra essa hipótese, há inúmeras pesquisas zoológicas que apontam variações inesperadas em danças desempenhadas por abelhas; nos movimentos de alguns pássaros, nos barulhos das baleias, nos saltos dos golfinhos, nas tomadas de decisão de macacos quando dentro de uma cela, na capacidade aparentemente interminável de aprendizado por parte dos cachorros e dos cavalos. Ao mesmo tempo, nós humanos vamos, cada vez mais, nos dando conta de nossa própria incapacidade em conhecer o que significa a representação e quais são seus limites.
Já se falou muito que os humanos são os únicos seres que guardam os restos mortais de seus parentes, mas isso também é polêmico. Se os elefantes, como se sabe, se encaminham para um local distante quando pressentem seu passamento e o mesmo fazem os gatos; se várias espécies de macacos, quando perdem um parceiro ou parceira, passam semanas enlutados, sem vontade de comer ou de brincar, e se cenas parecidas se repetem com vários outros animais, não se pode afirmar categoricamente que eles não se importem com seus mortos ou que não tenham noção do que significa o desaparecimento.
Mas, depois de muita reflexão, creio ter chegado a uma diferença infalível e duvido que alguém retire de mim a grandeza dessa descoberta.
O que definitivamente distingue o animal humano dos outros animais é o beijo.
Não falo de uma simples aproximação entre bocas, narizes, boca e bochecha, boca e alguma outra parte do corpo. Tampouco quero considerar como beijo equivalentes toques corpóreos, verificáveis em outros animais. Falo do beijo que faz “smack”, que estala, que diz respeito a uma contração calculada e minuciosa dos lábios, formando um pequeno bico que, ao encostar na superfície epitelial de outra pessoa (boca, bochecha, testa, mão, seio, perna etc.), contrai-se ainda mais, produzindo um som pitoresco, resultado de uma aproximação projetada entre os lábios superior e inferior. E o beijo agregado de complementos, como o beijo de língua, que pode demorar, nos casos de paixões adolescentes, até cerca de algumas horas. Ou o beijo roubado, uma categoria especial, beirando o indescritível, porque é o beijo-que-se-sente-vontade-de-dar-em-alguém-de-surpresa-sem-que-essa-pessoa-saiba-e-a-pessoa-fica-feliz-em-recebê-lo. E as diferenças que foram se estabelecendo entre os tipos de beijos: na testa, paternal, independente de quem o dê; na bochecha, fraternal ou burocrático, variando conforme a circunstância, mas sempre identificável; na boca, curto ou longo, comunicando amor, paixão, amizade ou, em alguns lugares, lealdade eterna; nos seios, expressão erótica por excelência; nos pés, índice fetichista ou de promessa de fidelidade; na mão, servilismo. Entre mulheres, entre homens, mulheres e homens, mães e filhos, amigos, crianças, velhos, inimigos, chefes e empregados, amantes, o beijo da extrema-unção e o do nascimento, nos olhos, o de chegada e o de despedida, o do despertar e o de dormir. O beijo em português, que vem de suavis, sinalizando agrado e maciez, ou de ósculo, que significa boca pequena. O beijo em inglês, kiss, mais literal, tocar com os lábios. Neshikah, em hebraico e outras línguas semíticas, que é o mesmo que apertar, juntar com força. E as metáforas baseadas no beijo, como o mar que beija a areia, o beijo suspenso invisível na boca das meninas e o beijo que é a véspera do escarro. O beijo esfregadinho, de japonês; de faxininha, limpando as gengivas; de louco, quase encostando na garganta; o do beijoqueiro, o do beija-flor, o beijo que só se manda soprando com a mão e a boca e o imperdoável “bj”, que me persegue as noites insones.
O beijo, essa inutilidade, não nos salvará do irremediável, porque ele não salva. Ele será somente nossa marca do demasiadamente humano, quase encostando no bicho, tão perto que, por causa dele, nos tornamos ainda mais humanos, porque o smack e a língua prolongada sempre nos lembrarão do porquê de termos vindo ao mundo: para beijar.

Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou

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