O bonde se arrastava, em seguida
estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que
olhou para o homem parado no ponto.
A diferença entre ele e os outros é que
ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham
avançadas. Era um cego.
O que havia mais que fizesse Ana se
aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranquila estava sucedendo.
Então ela viu: o cego mascava chicles… Um homem cego mascava
chicles.
Ana ainda teve tempo de pensar por um
segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe
violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se
olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem
sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o
parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de
sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a
visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a
olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada
súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô
despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor
deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde
estacou, os passageiros olharam assustados.
Tudo isso Clarice Lispector nos conta, no
tão conhecido conto “Amor”, de onde esse trecho foi extraído.
Mas, seja por razões de natureza literária, seja por razões
pessoais — não há como saber —, Clarice deixa de mencionar uma
parte muito importante dessa história, que acontece justamente em
seguida.
E o caso se deu de modo que, logo após o
pesado saco de tricô ter despencado no chão do ônibus, deixando
espalhar as gemas dos ovos que Ana carregava, ela resolutamente
acenou ao motorista, pedindo que parasse o bonde, na verdade
instando-o a fazê-lo, e desceu correndo, afobada, quase pulando em
cima do cego que mascava chicletes.
(Pode mesmo ser que Clarice tenha saltado
essa parte em nome da economia narrativa, a fim de guardar a
verdadeira epifania do conto para uma passagem posterior, que ocorre
dentro do Jardim Botânico, quando Ana depara com visões luxuriantes
da vegetação do parque. O efeito de estranhamento certamente não
seria o mesmo, caso ela optasse por duas grandes epifanias numa mesma
história. Eu mesma só sei de tudo isso porque, casualmente, me
encontrava no mesmo ônibus que Ana e, por mera curiosidade, acabei
seguindo-a.)
É claro que o cego, nisso, não
continuou parado e, assustado, recuou um bocado, avançou um pouco
para a frente e, tentando recompor-se, balbuciou um “ah, hã, o que
foi isso?”, desequilibrando-se um pouco, até estacar novamente.
Ana, é claro, gritou ainda uma vez, tentando desculpar-se, enquanto
se refazia dos dois sustos anteriores — o dos ovos e o da visão de
alguém que não vê e ao mesmo tempo masca chicletes. Disse:
“Desculpe, sou eu, quer dizer, o senhor não me conhece, não quis
assustá-lo, desci esbaforida, esbarrei, não queria”. “Imagine,
minha senhora, não foi nada, por um instante pensei que era um
atropelamento, algo assim, mas isso acontece. É que eu não enxergo,
a senhora está vendo.” “Sim, claro, desculpe mais uma vez. Posso
fazer alguma coisa?” “Não, está tudo bem. Fique tranquila.” E
continuou mascando o chiclete.
Ana tinha envelhecido. Estava cansada, as
roupas pendiam quase como trapos em seu corpo que, como os ovos,
também parecia ter despencado; ela ainda olhou para o ônibus à
distância, pensando nas gemas derramadas e levemente no jantar que
teria de fazer à noite. Andou alguns passos, parou, voltou para o
ponto, pensando em pegar o ônibus seguinte, mas olhando para o cego
outra vez, de repente aprumou as costas, ergueu a cabeça,
aproximou-se e, decidida, lançou: “Por que o senhor masca
chicletes, se é cego? Um cego não deveria abster-se de algo tão
divertido? Um cego não é uma pessoa séria, recolhido à sua
entrega de não ver? Pode um cego, ao mascar chicletes, voltar, de
alguma forma, a ver? O senhor por acaso sabe como tudo é fácil,
para nós que enxergamos? Peço, por favor, que o senhor cuspa esse
chiclete agora. Se a vida para um cego não for triste como eu
pensava, o que vou fazer eu, com minha felicidade?”.
Tudo soava por demais estranho. Eu achava
que essas coisas só pudessem ser pronunciadas pela própria Clarice
Lispector, jamais por Ana, sua personagem. Achava que Ana, como todas
elas, era alguém que demonstrasse na prática as especulações da
autora e não alguém que as expressasse. Mas foi isso mesmo o que
ela disse e daí cheguei a pensar que talvez Clarice se inspirasse
também em Ana para arrazoar sobre a vida. Não sei o que foi, mas
fiquei bem perturbada. Enfim, não sou eu que estou em jogo aqui e
sim Ana e o cego.
Não pude ouvir a resposta do cego, que
falou pouco e bem baixo. Mas vi que Ana sorria, já bem mais corada
agora, com o semblante apaziguado.
Eles apertaram as mãos, afastaram-se um
pouco e Ana endireitou-se na decisão aparente de espera do próximo
ônibus.
O que o cego teria dito a ela?
Como ele teria respondido ao apelo de Ana
para que ele, por favor, não mascasse chicletes?
Aguardei ansiosa que Ana entrasse no
carro seguinte e, entre temerosa e ousada, me aproximei do cego, a
quem nada parecia incomodar. Nem as perguntas de Ana, nem os carros
que iam e vinham. Será que ele não aguardava a vinda de algum
ônibus? Como será que saberia em qual deles entrar?
“Desculpe, senhor. Sei que o senhor
acaba de ser abordado por outra senhora e que talvez suas perguntas
incisivas não tenham sido muito agradáveis. Mas não posso
resistir. Sou leitora desta história há vários anos — quero
dizer, a história de Ana, da qual o senhor casualmente veio a fazer
parte e da qual, neste momento, talvez venha a se tornar um novo
protagonista — e, por pura curiosidade, acabei seguindo-a e ouvi as
questões que ela tão deselegantemente lhe formulou. Desculpe, não
pude deixar de ouvi-las. Mas vi que ela rapidamente se satisfez e que
parecia até algo aliviada. Será que o senhor poderia me dizer a
resposta que lhe deu ao ouvi-la pedindo que cuspisse seu chiclete? E
o que foi que lhe disse sobre ela aguentar a felicidade?”
“Não, imagine. Não se trata de
incômodo algum. Ouvi como ela estava exaltada e é natural que
outras pessoas tenham escutado o que ela dizia. Mas não foi nada
demais. Eu disse somente que, quando masco chicletes, sinto que a
terra é redonda, consigo realmente perceber os contornos esféricos
das coisas, o tempo passando, como se a goma fosse um condutor
mastigável da passagem do tempo, como se tudo se suspendesse e
voltasse, suspendesse e voltasse. Disse que me sinto um menino de
novo e que esse elástico que mastigo me faz lembrar de alguns restos
de borracha que meu pai deixava largados no quintal. Quando masco, me
lembro dele. Também disse a ela que entre mascar chicletes e a
cegueira não há relação alguma. E que ela fosse embora tranquila.
Eu ainda sou infeliz. Ela pareceu ter gostado desta última parte.
Apertou-me a mão e, sorrindo, partiu.”
Sabia que, com essa resposta, Ana poderia
realmente prosseguir sua história em paz. Nada tinha se modificado e
entendi o porquê de Clarice ter subtraído essa parte da narrativa e
optado apenas por uma única grande epifania.
Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou
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