terça-feira, 2 de março de 2021

O que vou fazer eu?

       O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.
A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.
O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranquila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles… Um homem cego mascava chicles.
Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.

Tudo isso Clarice Lispector nos conta, no tão conhecido conto “Amor”, de onde esse trecho foi extraído. Mas, seja por razões de natureza literária, seja por razões pessoais — não há como saber —, Clarice deixa de mencionar uma parte muito importante dessa história, que acontece justamente em seguida.
E o caso se deu de modo que, logo após o pesado saco de tricô ter despencado no chão do ônibus, deixando espalhar as gemas dos ovos que Ana carregava, ela resolutamente acenou ao motorista, pedindo que parasse o bonde, na verdade instando-o a fazê-lo, e desceu correndo, afobada, quase pulando em cima do cego que mascava chicletes.
(Pode mesmo ser que Clarice tenha saltado essa parte em nome da economia narrativa, a fim de guardar a verdadeira epifania do conto para uma passagem posterior, que ocorre dentro do Jardim Botânico, quando Ana depara com visões luxuriantes da vegetação do parque. O efeito de estranhamento certamente não seria o mesmo, caso ela optasse por duas grandes epifanias numa mesma história. Eu mesma só sei de tudo isso porque, casualmente, me encontrava no mesmo ônibus que Ana e, por mera curiosidade, acabei seguindo-a.)
É claro que o cego, nisso, não continuou parado e, assustado, recuou um bocado, avançou um pouco para a frente e, tentando recompor-se, balbuciou um “ah, hã, o que foi isso?”, desequilibrando-se um pouco, até estacar novamente. Ana, é claro, gritou ainda uma vez, tentando desculpar-se, enquanto se refazia dos dois sustos anteriores — o dos ovos e o da visão de alguém que não vê e ao mesmo tempo masca chicletes. Disse: “Desculpe, sou eu, quer dizer, o senhor não me conhece, não quis assustá-lo, desci esbaforida, esbarrei, não queria”. “Imagine, minha senhora, não foi nada, por um instante pensei que era um atropelamento, algo assim, mas isso acontece. É que eu não enxergo, a senhora está vendo.” “Sim, claro, desculpe mais uma vez. Posso fazer alguma coisa?” “Não, está tudo bem. Fique tranquila.” E continuou mascando o chiclete.
Ana tinha envelhecido. Estava cansada, as roupas pendiam quase como trapos em seu corpo que, como os ovos, também parecia ter despencado; ela ainda olhou para o ônibus à distância, pensando nas gemas derramadas e levemente no jantar que teria de fazer à noite. Andou alguns passos, parou, voltou para o ponto, pensando em pegar o ônibus seguinte, mas olhando para o cego outra vez, de repente aprumou as costas, ergueu a cabeça, aproximou-se e, decidida, lançou: “Por que o senhor masca chicletes, se é cego? Um cego não deveria abster-se de algo tão divertido? Um cego não é uma pessoa séria, recolhido à sua entrega de não ver? Pode um cego, ao mascar chicletes, voltar, de alguma forma, a ver? O senhor por acaso sabe como tudo é fácil, para nós que enxergamos? Peço, por favor, que o senhor cuspa esse chiclete agora. Se a vida para um cego não for triste como eu pensava, o que vou fazer eu, com minha felicidade?”.
Tudo soava por demais estranho. Eu achava que essas coisas só pudessem ser pronunciadas pela própria Clarice Lispector, jamais por Ana, sua personagem. Achava que Ana, como todas elas, era alguém que demonstrasse na prática as especulações da autora e não alguém que as expressasse. Mas foi isso mesmo o que ela disse e daí cheguei a pensar que talvez Clarice se inspirasse também em Ana para arrazoar sobre a vida. Não sei o que foi, mas fiquei bem perturbada. Enfim, não sou eu que estou em jogo aqui e sim Ana e o cego.
Não pude ouvir a resposta do cego, que falou pouco e bem baixo. Mas vi que Ana sorria, já bem mais corada agora, com o semblante apaziguado.
Eles apertaram as mãos, afastaram-se um pouco e Ana endireitou-se na decisão aparente de espera do próximo ônibus.
O que o cego teria dito a ela?
Como ele teria respondido ao apelo de Ana para que ele, por favor, não mascasse chicletes?
Aguardei ansiosa que Ana entrasse no carro seguinte e, entre temerosa e ousada, me aproximei do cego, a quem nada parecia incomodar. Nem as perguntas de Ana, nem os carros que iam e vinham. Será que ele não aguardava a vinda de algum ônibus? Como será que saberia em qual deles entrar?
Desculpe, senhor. Sei que o senhor acaba de ser abordado por outra senhora e que talvez suas perguntas incisivas não tenham sido muito agradáveis. Mas não posso resistir. Sou leitora desta história há vários anos — quero dizer, a história de Ana, da qual o senhor casualmente veio a fazer parte e da qual, neste momento, talvez venha a se tornar um novo protagonista — e, por pura curiosidade, acabei seguindo-a e ouvi as questões que ela tão deselegantemente lhe formulou. Desculpe, não pude deixar de ouvi-las. Mas vi que ela rapidamente se satisfez e que parecia até algo aliviada. Será que o senhor poderia me dizer a resposta que lhe deu ao ouvi-la pedindo que cuspisse seu chiclete? E o que foi que lhe disse sobre ela aguentar a felicidade?”
Não, imagine. Não se trata de incômodo algum. Ouvi como ela estava exaltada e é natural que outras pessoas tenham escutado o que ela dizia. Mas não foi nada demais. Eu disse somente que, quando masco chicletes, sinto que a terra é redonda, consigo realmente perceber os contornos esféricos das coisas, o tempo passando, como se a goma fosse um condutor mastigável da passagem do tempo, como se tudo se suspendesse e voltasse, suspendesse e voltasse. Disse que me sinto um menino de novo e que esse elástico que mastigo me faz lembrar de alguns restos de borracha que meu pai deixava largados no quintal. Quando masco, me lembro dele. Também disse a ela que entre mascar chicletes e a cegueira não há relação alguma. E que ela fosse embora tranquila. Eu ainda sou infeliz. Ela pareceu ter gostado desta última parte. Apertou-me a mão e, sorrindo, partiu.”
Sabia que, com essa resposta, Ana poderia realmente prosseguir sua história em paz. Nada tinha se modificado e entendi o porquê de Clarice ter subtraído essa parte da narrativa e optado apenas por uma única grande epifania.

Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou

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