quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

O discurso do general Loewenhielm

           “A misericórdia e a verdade, meus amigos, encontraram uma à outra”, disse o general. “A retidão e a bem-aventurança devem beijar uma à outra.”
Falava com uma voz límpida que fora exercitada em campos de treinamento militar e ecoara agradavelmente em salões da realeza e, mesmo assim, falava de uma maneira tão nova para si mesmo e tão estranhamente comovente que ao final da primeira frase teve de fazer uma pausa. Pois era seu hábito formar os discursos com cuidado, consciente de seu propósito, mas aqui, em meio à congregação simples do deão, era como se toda a figura do general Loewenhielm, o peito coberto de condecorações, não fosse senão a porta-voz de uma mensagem destinada a vir a público.
O homem, meus amigos”, disse o general Loewenhielm, “é frágil e tolo. A todos já nos foi dito que a graça divina encontra-se por todo o universo. Mas em nossa tolice e miopia humanas, imaginamos ser a graça finita. Por esse motivo, trememos…” Nunca, até aquele momento, o general afirmara que tremia; ficou genuinamente surpreso e até chocado de ouvir a própria voz proclamar o fato. “Trememos antes de fazer nossas escolhas na vida e após tê-las feito trememos de medo de ter escolhido errado. Mas eis que chega o momento em que nossos olhos estão abertos e vemos e percebemos que a graça é infinita. A graça, meus amigos, não exige nada de nós senão que a aguardemos com confiança e a reconheçamos com gratidão. A graça, irmãos, não impõe condições e não escolhe nenhum de nós em particular; a graça nos toma a todos em seu seio e proclama anistia geral. Vejam! Aquilo que escolhemos nos é dado e aquilo que recusamos nos é igualmente, e ao mesmo tempo, concedido. Sim, que o que rejeitamos seja copiosamente vertido sobre nós. Pois que a misericórdia e a verdade encontraram uma à outra e a retidão e a bem-aventurança beijaram uma à outra!”
Os irmãos e irmãs não compreenderam inteiramente o discurso do general, mas seu rosto sereno e inspirado e o som de palavras bem conhecidas e estimadas capturou e comoveu todos os corações. Dessa maneira, após trinta e um anos, o general Loewenhielm triunfara em dominar a conversa à mesa de jantar do deão.
Sobre o que aconteceu mais tarde nessa noite, nada concreto pode ser afirmado. Nenhum dos convidados dali em diante guardou qualquer lembrança clara disso. Só sabiam que os aposentos da casa se encheram com uma luz celestial, como se inúmeros pequenos halos houvessem se misturado numa única e gloriosa radiância. Um bando de velhos taciturnos adquiriu o dom da glossolalia; ouvidos que por anos estiveram quase surdos abriram-se para ela. O próprio tempo fundiu-se na eternidade. Muito depois da meia-noite as janelas da casa brilhavam como ouro e canções douradas fluíam através da janela invernal.
As duas senhoras idosas que outrora haviam se difamado mutuamente agora em seus espíritos retrocediam muitos anos no passado, além do período malévolo ao qual estavam presas, aos dias da mais tenra infância quando, juntas, preparavam-se para a crisma e de mãos dadas haviam enchido as ruas de Berlevaag com cantorias. Um irmão na congregação deu em outro um soco nas costelas, como um bruto afago entre rapazes, e exclamou: “Você me tapeou com aquela madeira, seu patife!”. O irmão assim abordado quase desmaiou numa sublime explosão de risadas, mas as lágrimas corriam-lhe dos olhos. “Sim, eu fiz isso, amado irmão”, respondeu. “Eu fiz isso.” O Comandante Halvorsen e Madame Oppergaarden de repente viram-se bem juntos um do outro num canto e trocaram um longo, longo beijo, para o qual o romance incerto e secreto da juventude jamais lhes dera tempo.
O rebanho do velho deão era gente humilde. Quando, mais tarde em suas vidas, pensaram nessa noite, nunca lhes ocorreu, a nenhum deles, que pudessem ter se exaltado por mérito próprio. Percebiam que a graça infinita sobre a qual o general Loewenhielm falara fora-lhes outorgada e nem mesmo se espantaram com o fato, pois se tratara da concretização de uma esperança sempre presente. As vãs ilusões deste mundo haviam se desmanchado diante de seus olhos como fumaça e viram o universo como realmente é. Foram agraciados com uma hora do milênio.
A velha senhora Loewenhielm foi a primeira a sair. O sobrinho a acompanhou e suas anfitriãs iluminaram o caminho para eles. Enquanto Philippa ajudava a velha senhora com os inúmeros agasalhos, o general tomou a mão de Martine e a segurou por longo tempo sem dizer palavra. Finalmente, falou:
Tenho estado com você todos os dias de minha vida. Sabe, não sabe, que tem sido assim?”.
Sei”, disse Martine, “sei que tem sido assim.”
E”, prosseguiu ele, “estarei com você por todos os dias que ainda me restarem. Todas as noites me sentarei, se não em carne e osso, que nada significam, em espírito, que é tudo, para jantarmos juntos, como esta noite. Pois esta noite descobri, querida irmã, que neste mundo tudo é possível.”
Sim, assim é, querido irmão”, disse Martine. “Neste mundo, tudo é possível.”
Com isso, separaram-se.
Quando enfim o grupo se dispersou, a neve cessara. A cidade e as montanhas exibiam um esplendor branco, sobrenatural, e o céu cintilava com milhares de estrelas. Na rua a neve era tão profunda que ficava difícil caminhar. Os convidados da casa amarela bambeavam em seus pés, cambaleavam, sentavam-se abruptamente ou caíam adiante sobre os joelhos e as mãos, ficando cobertos de neve, como se tivessem de fato lavado os pecados e os deixado brancos como lã, e nesse inocente traje recuperado saltitassem como cordeirinhos. Foi um júbilo, para cada um deles, ter se tornado uma criança pequena. Foi também uma abençoada piada observar os velhos irmãos e irmãs, que se levavam tão a sério, naquela espécie de segunda infância celeste. Tropeçavam e ficavam de pé, seguiam caminhando ou estacavam, as mãos dadas no corpo e no espírito, por alguns momentos formando a grande corrente de lanciers beatíficos.
Deus abençoe, Deus abençoe, Deus abençoe”, como uma reverberação da harmonia das esferas, ecoava de todos os lados.
Martine e Philippa permaneceram por um longo tempo nos degraus de pedra do lado de fora da casa. Não sentiam frio. “As estrelas estão mais próximas”, disse Philippa.
E vão ficar todas as noites”, disse Martine, calmamente. “É bem possível que não neve nunca mais.”
Nisso, contudo, estava enganada. Uma hora mais tarde começou a nevar outra vez e foi uma nevasca forte como jamais se vira em Berlevaag. Na manhã seguinte, as pessoas mal conseguiram abrir as portas de tão altos que estavam os montes de neve. As janelas das casas tinham uma camada tão espessa, como se contou por anos a fio depois disso, que muitos pacatos cidadãos do lugar não perceberam o alvorecer e continuaram a dormir até bem tarde nesse dia.

Karen Blixen, in A festa de Babette

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