domingo, 20 de dezembro de 2020

O choro autorizado

          Conta-se que quando Arraxíd se voltou contra os barmécidas e os eliminou todos, proibiu os poetas de fazerem poesias que chorassem essa família, e ordenou que se vigiasse o cumprimento dessa ordem. Então um vigia, passando por algumas ruínas, viu certo homem com uma poesia que lamentava os barmécidas. O homem recitava a poesia e chorava. O vigia o prendeu e o levou ao palácio do califa Arraxíd, a quem descreveu a cena. O califa determinou que aquele homem fosse conduzido à sua presença, questionou-o a respeito e o homem confessou.
Arraxíd lhe perguntou:
Você por acaso não ouviu que eu proibi que eles fossem lamentados? Agora, de fato, irei puni-lo e castigá-lo severamente.
O homem respondeu:
Ó comandante dos crentes, se você me autorizar, eu lhe contarei a história que me levou a fazer isso. Depois, aja conforme melhor lhe parecer.
O califa respondeu:
Fale.
O homem então contou a sua história.
Eu era o mais jovem e humilde dos escribas do vizir barmécida Yahya bin Khálid. Certo dia, ele me disse:
Eu gostaria que você me recepcionasse em sua casa um dia desses.
Respondi:
Estou aquém disso, meu amo. Minha casa não serve para tanto!
Ele respondeu:
É absolutamente imperioso que você me receba em sua casa!
Eu disse:
Se for mesmo absolutamente imperioso, dê-me um prazo para que eu melhore a minha situação e possa arrumar a casa; depois disso, aja conforme melhor lhe parecer.
Ele perguntou:
Prazo de quanto?
Respondi:
Um ano.
Ele disse:
É muito.
Eu disse:
Alguns meses.
Ele disse:
Sim.
Comecei então a arrumar a casa para deixá-la em condições de receber a visita. Quando as condições estavam prontas, informei o vizir a respeito. Ele me disse:
Amanhã estaremos em sua casa.
Fui então ajeitar a comida e a bebida que fossem necessárias. O vizir apareceu no dia seguinte com seus filhos Jâ‘far e Alfadl e um pequeno grupo de seus particulares seguidores. Desmontou de sua montaria, bem como seus filhos Jâ‘far e Alfadl, e me disse:
Fulano, estou com fome. Rápido, traga alguma coisa!
Seu filho Alfadl me disse:
O vizir aprecia galetos assados; traga rápido o que estiver preparado.
Entrei e arranjei alguns galetos, e o vizir e seus acompanhantes comeram. Em seguida, começou a passear pela casa e me disse:
Abra toda a sua casa para nós, fulano!
Respondi:
Meu amo, esta é a minha casa. Não tenho outra.
Ele me disse:
Nada disso, você tem outra!
Respondi:
Por Deus que não possuo senão esta casa.
Ele disse:
Tragam-me um pedreiro!
Quando o pedreiro se apresentou, ele lhe disse:
Abra uma porta nesta parede.
O pedreiro foi cumprir a sua ordem. Eu disse:
Meu amo, como pode ser correto abrir uma porta para as casas dos vizinhos? Deus não recomendou que se tratasse bem o vizinho?
Ele respondeu:
Não haverá problema nisso.
A porta foi aberta na parede. O vizir e seus filhos entraram por ela, e eu entrei junto. A porta dava para um belo jardim repleto de árvores, em meio ao qual a água escorria. Havia nele aposentos e cômodos que extasiariam quem quer que os observasse; também continha móveis, colchões, criados e criadas, tudo formoso e estupendo. Ele disse:
Esta moradia e tudo quanto ela contém lhe pertence.
Beijei-lhe então as mãos e roguei por ele. Averiguei depois a história e descobri que, desde o dia em que me falara do convite, ele enviara emissários para comprar as propriedades vizinhas a mim, mandando construir aquela bela residência e dotando-a de tudo, sem o meu conhecimento. Eu vira a construção, mas supusera que pertencesse a algum vizinho. O vizir disse ao seu filho Jâ‘far:
Meu filho, eis aqui uma casa com crianças. De onde provirá seu sustento?
Jâ‘far respondeu:
Eu lhe concedo os rendimentos da vila tal e tal com tudo quanto ela contém, e lavrarei um documento a respeito.
Então o vizir se voltou para o seu filho Alfadl e lhe disse:
Meu filho, a partir de agora até o momento em que a vila começar a render, de onde ele irá tirar recursos para gastar?
Alfadl respondeu:
Por minha conta, terá dez mil dinares que trarei para ele.
O vizir disse aos dois:
Providenciem rapidamente o que disseram.

O jovem continuou contando ao califa:
Jâ‘far registrou a vila em meu nome e Alfadl me trouxe o dinheiro. Enriqueci e minha condição se elevou; depois disso, ganhei muito dinheiro, sobre o qual eu me revolvo até hoje. Por Deus, ó comandante dos crentes, não perco nenhuma oportunidade de louvá-los e rogar por eles, em reconhecimento pela generosidade que tiveram para comigo, já que não poderei retribuir-lhes à altura. Se for me matar por isso, faça como melhor lhe parecer.

Harun Arraxíd se enterneceu com aquilo, libertou o homem e autorizou, a quem quisesse, lamentar os barmécidas com poesias.

Mamede Mustafa Jarouche (trad.), in Histórias para ler sem pressa

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