Desde muito cedo percebi que a trajetória
de uma vida continha bem mais do que os conflitos visíveis. Em
parte, me transformei numa contadora de histórias ao intuir que a
forma como é contada uma vida pode significar a possibilidade desta
vida. Assim como pode determinar sua morte. O mundo é um palco onde
se digladiam as versões — e o poder é usado para impor a história
única como se fosse toda a verdade. Não só entre os países, mas
na vida social e também dentro de casa. Compreender o poder da
narrativa é o primeiro passo para construir uma vida que vale a
pena. É também a chave para alcançar a complexidade — ou as
várias versões — da vida do outro.
Na semana passada, duas experiências me
fizeram voltar a refletir sobre o poder das histórias, um tema
recorrente nesta coluna e no meu trabalho. A primeira foi o filme
Preciosa. A outra foi a palestra de uma escritora nigeriana
chamada Chimamanda Adichie.
Em Preciosa, a personagem é uma
negra gorda e enorme, abusada sexualmente pelo pai e de várias
outras maneiras pela mãe, que frequenta há anos a escola sem que
ninguém perceba que não sabe ler. Preciosa, este também é o nome
enormemente simbólico da personagem, é um nada para muitos — e
também para si mesma. Um nada difícil de olhar. Ela mesma, quando
se olha no espelho, não se reconhece.
Desde que assisti ao filme, na
sexta-feira de Carnaval, o recomendo com veemência aos meus amigos.
Mas, assim como as pessoas ao redor de Preciosa, no filme, tinham
dificuldade de olhar para ela, alguns amigos têm resistência a ir
ao cinema “assistir àquela desgraceira”. Ou acompanhar uma
personagem que contém em seu corpo todas as características
relacionadas aos perdedores. Alguns amigos viram o trailer e
decidiram fugir de Preciosa.
É uma pena. E é o que tenho tentado
mostrar a eles — e agora a vocês. Não ver Preciosa é não
permitir que ela seja vista de outra maneira. E perder uma
oportunidade rara de descobrir que a vida — não apenas a dela, mas
também a nossa — pode ser decodificada de uma forma mais generosa,
se nos reconhecermos em olhos dispostos a enxergar além dos
estereótipos. Nesse sentido, ao decidir assistir a esse filme —
tão diferente do que se costuma produzir em Hollywood — o
espectador está se tornando parte da transformação de Preciosa. E
isso é genial como proposta cinematográfica.
Na capa do livro de Sapphire, uma
professora do Harlem em cuja obra se baseou o filme, há uma frase
perfeita: “Você testemunha o nascimento de uma alma”. É
exatamente isso. O filme é o caminho de Preciosa a partir do momento
em que se vê refletida nos olhos da professora que a ensina a ler.
Olhos dispostos a enxergar uma alma onde a maioria só via banha,
violência e miséria.
Ao percorrermos com ela esse percurso,
vivemos momentos muito duros. Mas é também imensamente redentor. No
momento em que Preciosa descobre que há outras versões possíveis
para a sua vida — e que ela mesma pode construir narrativas
melhores —, o mundo que é ela se amplia. E com essa experiência,
também o mundo que somos nós é ampliado. Ao sair do cinema,
percebi que estava maior.
Preciosa nos evoca o perigo da história
única. Até não encontrar um olhar acolhedor onde se reconhecer,
ela só se reconhecia no não olhar de sua mãe. A escola que
frequentara até então continuava olhando para ela sem ver, o que a
manteve analfabeta por anos. Só quando encontrou uma narrativa
alternativa para si mesma, Preciosa teve alguma chance de ter não só
uma vida, mas também uma alma.
Este é também o tema da palestra de
Chimamanda Adichie. Essa escritora de 32 anos pertencia a uma espécie
de classe média da Nigéria, filha de um professor universitário e
de uma secretária. Em sua palestra no TED (Ideas Worth Spreading),
ela conta uma história feita de embates narrativos para mostrar como
a história única aniquila a vida.
Linda e bem-humorada, Chimamanda mostra
como a redução das histórias fez mal a sua maneira de olhar a vida
de outros em seu próprio país. E fez mal à forma como outros
olharam para a sua vida quando se mudou para os Estados Unidos — e
sua colega de quarto só conseguia enxergá-la a partir dos
estereótipos ligados a um “país” chamado África. Nessa
narrativa, Chimamanda percorre as várias crenças sobre a África —
e não deixa de mostrar como ela mesma embarcou na tentação das
versões hegemônicas, como quando fez uma viagem ao México e
descobriu, ao andar pelas ruas de Guadalajara no primeiro dia, que
tinha chegado até ali acreditando que imigrante era tudo o que um
mexicano era.
É pela intuição do enorme poder de
transformação das histórias contadas que Chimamanda se transforma
numa escritora. E também Preciosa. A professora faz mais do que
ensiná-la a ler. Todos os dias, Preciosa precisa escrever um diário.
Ao contar sua vida, literalmente nas páginas do caderno, ela
descobre que é mais do que lhe haviam contado até então. Mais
complexa e multidimensional.
Ao escrever sobre sua vida com papel e
caneta, Preciosa descobre que pode reescrever sua vida na concretude
das ruas. E é o que faz. Agora, ela pode se reconhecer nos olhos de
outros. Ela gosta da imagem que vê. E nós, na poltrona do cinema,
incomodados no início com toda a coleção de estereótipos que ela
representa, também gostamos do que passamos a enxergar.
Numa reportagem que fiz em 2007, sobre a
primeira geração de escritores das periferias do Brasil,
especialmente de São Paulo, mostro os dados de uma pesquisa de
Regina Dalcastagnè, professora da Universidade de Brasília (UnB).
Ao analisar os romances brasileiros, entre 1990 e 2004, ela revela
que 94% dos autores e 84% dos protagonistas são brancos — e apenas
24% dos personagens são pobres. Ou seja, a história contada pela
nossa literatura mostra um mundo de gente branca e de classe média.
É ruim? Não exatamente. É limitado.
Não há nenhum problema em escrever e ler livros com protagonistas
brancos e de classe média. Brancos de classe média fazem parte da
sociedade brasileira. E era só o que nos faltava ter de fazer uma
literatura politicamente correta. O problema não é o que existe,
mas o que não existe, o que não está lá. O perigoso é não
existirem livros com outras cores e realidades, com diferentes
autores e personagens.
A grande novidade também no Brasil, que
é a razão da reportagem citada, é que hoje vem se ampliando também
a pluralidade das vozes na literatura. Com a entrada de novos
protagonistas no cenário das letras, nós, leitores, temos acesso a
novas maneiras de ver o mundo e de estar no mundo. E a diversidade
sempre faz bem para a vida, tanto a subjetiva quanto a concreta.
Chimamanda conta como fazia mal a ela não
fazer parte da literatura, como personagem, já que os livros
disponíveis na Nigéria de sua infância eram os escritos pelos
colonizadores britânicos. Os personagens dos livros que lia gastavam
boa parte dos dias falando sobre o tempo: “Será que vai fazer sol
amanhã?”. Fazia todo o sentido para um britânico, mas era
estranhíssimo para uma menina nigeriana, na medida em que não era
apenas um dos mundos ao qual tinha acesso através dos livros, mas
toda a literatura disponível.
Ao mesmo tempo, quando ela se torna
escritora, é cobrada por seus romances não serem suficientemente
“africanos”. Como se ela só pudesse existir como narradora de
uma determinada maneira, como se só pudesse contar uma única
história. Como se um escritor do Capão Redondo, na periferia de São
Paulo, por exemplo, só pudesse escrever sobre a violência e só
pudesse escrever usando gírias. A arte é o território da
liberdade. E da reinvenção. Nela, podemos qualquer coisa. Até
sermos nós mesmos.
Quando Preciosa, no filme, escapa de sua
vida impossível para divagações em que é glamourosa, desejada e
talentosa, descobrimos por que ela ainda está viva. É pela fantasia
que ela mantém a salvo a melhor parte de si mesma. A parte
incorruptível de si mesma. Como faz a maioria de nós, mesmo sem ter
uma realidade tão perversa como Preciosa.
Lembro que só suportei minha
inadequação, na infância, porque ficava inventando enredos na
minha cabeça, nos quais tinha papel de protagonista. Quando era
obrigada a interagir com as crianças da minha idade, só suportava
ouvir aquelas conversas, em que não encontrava pontos de conexão,
porque podia escapar pela fantasia. Me sentia um ET no mundo real,
mas era uma heroína em meu próprio mundo. Ter a possibilidade de
“me contar” em minha literatura íntima, assim como para
Preciosa, em outras proporções, me assegurou a sanidade. Até hoje,
quando a vida fica muito doída e nem consigo entender o que falam ao
meu redor, mergulho em narrativas inventadas — e nem por isso menos
verdadeiras.
O perigo da história única, mais fácil
de analisar na geopolítica do mundo, começa dentro de casa, na
família. Como no caso de Preciosa. Quando nascemos, é o olhar da
mãe o primeiro a nos constituir. Só nos reconhecemos como um ser
para além da mãe a partir desse primeiro olhar fundador. Na
infância, é no primeiro mundo privado que habitamos, o de dentro da
casa, que iniciamos nosso embate com as histórias únicas. Quando os
pais determinam que este filho é inteligente, aquele é preguiçoso
e um terceiro é malvado, o mais provável é que aqueles filhos
assim rotulados cumpram a profecia dos pais. Por isso, é comum
ouvirmos: “Fulano desde pequeno já era assim...”. Claro, como
poderia ser diferente?
A versão dos pais sobre nós é a
primeira versão narrativa da vida de cada um. E ela nos marca para
sempre. Para o bem — e para o mal. Seja pela displicência, seja
pela opressão. Quando é para o mal, se torna uma prisão. Não
somos o que podemos vir a ser, mas um estereótipo fechado, vendido
como a única verdade sobre nós mesmos. Este é o olhar que nos
transforma em pedra. Afinal, as ovelhas negras de cada família são
ou tornaram-se?
Se não encontramos alguém que rompa as
grades desse olhar na escola, nosso primeiro mundo público, temos
poucas chances na vida. Se, ao contrário de ampliar as versões
narrativas, o professor cimentar ainda mais os rótulos familiares ou
criar outros tão perniciosos quanto — com sentenças como “este
é inteligente”, “aquele é burro”, “o outro é violento”,
“aquele não tem jeito”, “este é um caso perdido” —, as
chances minguam.
A história única na família e na
escola é o ato mais covarde cometido por pais e professores que não
sabem o que fazem — ou sabem, mas não conseguem ou não querem
fazer diferente. Educar é ampliar as possibilidades narrativas da
vida de cada um — e da vida dos outros.
De certo modo, crescer é tornar-se capaz
de quebrar a sucessão de histórias únicas sobre a nossa
existência. Foi o que aconteceu com Preciosa, a partir do olhar
libertador da professora.
Se você estiver atolado na vida porque
lhe fizeram acreditar em uma única versão, reaja. Não acredite.
Exercite a dúvida sobre si mesmo — e sobre o outro. Será que é
assim mesmo? Será que isso é tudo o que sou? Será que é só isso
que posso ser? Tornar-se adulto é ter a coragem de se contar como
alguém múltiplo e contraditório, um habitante do território das
possibilidades.
No filme, Preciosa diz uma frase
maravilhosa, num dia especialmente tenebroso. Algo assim: “Que bom
que Deus ou não sei quem inventou os novos dias”. É isso. Há
sempre um novo dia para todos nós. Um em que podemos nos reinventar.
Eliane Brum, in A menina quebrada
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