sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Escândalo inútil

          Sei que corro o risco de escandalizar leitoras e leitores. Não sei explicar por quê, mais aos leitores que às leitoras.
Como começar, senão pelo princípio? E o início é um pouco brutal. Preparai-vos. Eu simplesmente entrevistei uma dona de pensão de mulheres, de uma chamada casa suspeita.
Está dito. Asseguro-vos porém que não deveis me temer: meus motivos eram e são límpidos. Sou inocente.
Não posso contar como consegui o número do telefone e o nome daquela que passarei a chamar de “dona Y” – não desejo identificá-la para não lhe causar problemas com a polícia, se é que os há. Consegui o número do telefone, telefonei-lhe.
No começo de nossa conversa houve um mínimo de desconfiança da parte dela: não sabia bem o que eu queria, e só Deus sabe o que pensou que eu queria. Mas em breve já me dizia: “pois é, meu bem.” Disse-lhe que tinha muita vontade de conhecê-la pessoalmente, e se podíamos tomar chá juntas, onde ela marcasse. Sugeriu que eu fosse vê-la na sua casa. Preferi, “meu bem”, que não. Também não sei por que marcou encontro comigo defronte da Farmácia Jaci, na Praça José de Alencar. É, aliás, um ponto péssimo: passam homens em penca e não sabem o que uma mulher parada está fazendo ali.
Meus motivos de ter vontade de conhecê-la? É que fui uma adolescente confusa e perplexa que tinha uma pergunta muda e intensa: “como é o mundo? e por que esse mundo?” Fui depois aprendendo muita coisa. Mas a pergunta da adolescente continuou muda e insistente.
E o que foi que aprendi na terra, bastando-me para isso abrir um pouco meus olhos estreitos? Vi que o problema da prostituição é obviamente de ordem social. Mas, atrás dele, também, há outro profundo: é que muitos homens preferem pagar, exatamente para não terem afeto nem sentimento, exatamente para humilharem e serem humilhados. A fuga ao amor é um fato. Paga-se para fugir. Até homem casado gosta, às vezes, de sustentar a casa para transformar a esposa em objeto pago.
Bem. Na manhã do dia em que eu me encontraria com dona Y, telefonei-lhe. Mas disse que estava de saída para o médico. Perguntei o que tinha. Tinha o que toda dona de pensão de mulheres por força devia ter: coração doente. Fiquei de chamá-la mais tarde. Foi um custo: telefone ocupadíssimo, Deus sabe com que e nós também: trata-se de casa de família, como me disse, e muito reclusa, motivo pelo qual os encontros são combinados por telefone. Afinal consegui a ligação e dona Y diz: estou pior, vou-me deitar, telefone às quatro da tarde. Pensei: não me vá essa criatura morrer antes de eu vê-la.
Não. Não me foi fácil decidir-me a vê-la. Ao primeiro contato telefônico arranjei uma dor de cabeça violenta que só passou depois que entendi que era causada pela ideia de que eu cometia um pecado. Nessa noite, ainda, tive um pesadelo no qual dona Y me dizia ser leprosa. E eu não queria tocá-la. Acordei assustada. Por que então continuei na obstinação de querer vê-la? Porque eu tinha que procurar a resposta irrespondível.
Fiquei hora e meia defronte da Farmácia Jaci. E nada. Voltei para casa, telefonei-lhe, ela me disse que me esperara meia hora. Perdi o interesse. Passaram-se semanas sem eu sequer lembrar-me dela. Mas sou daquelas que deseja ir até o fim do que quer. Telefonei-lhe de novo. E de novo o encontro marcado defronte da Farmácia Jaci. Dessa vez ela quis que fosse às dez horas da manhã, de tarde estava ocupada demais.
Esperei um pouco. De manhã só passam mulheres com sacos de compras. Ela veio vestida como me avisara. E é distinta. Provavelmente mais distinta do que eu, que não preciso aparentar distinção.
Foi logo me explicando que sua casa era mesmo de família. Que a pessoa que cuidava dos negócios era um cunhado viúvo, e que também esse não vivia só daquilo. Perguntei mais tarde se ela ganhava alguma coisa. Disse que não. Mentira. Fomos tomar um refresco numa casa de chá que estava se abrindo naquela hora, e pedi o que ela pediu: suco de uva.
Oh Deus, mas que coisa sem graça. Ela tem uma filha que estuda balé. Já por falta de assunto, falamos de incêndios. Disse ela que sofrera vários, mas jogara o colchão incendiado pela janela.
O mais engraçado é que ela gostou de mim. Disse: agora que nos conhecemos, me telefone sempre para conversarmos um pouco. Pensei: nunca, não me interessa.
Disse-me que, coitadinhos, os homens precisam é de um lugar seguro. Que felizmente o Mangue acabara. O Mangue era ruim. Pois é.
Que mais digo? Nada. Ela ainda tinha tempo de ficar, eu tinha tempo. Mas quem se levantou para ir embora fui eu. E paguei os sucos de uva. Nesse dia perdi a fome para o almoço.
Que afinal esperava eu? A pergunta da adolescente morrera? O mundo é sem graça? Ou eu sou sem graça? Ou dona Y é sem graça? Tudo provavelmente. Senti que eu estava com aquele dia estragado.
Um amigo meu, a quem eu contara a espécie de encontro que eu pretendia ter, dissera-me sem espanto e tranquilo: é aí que entra a escritora. Mas é que não sou escritora. Sou uma pessoa que estava interessada pelo mundo. E que, pelo menos naquele dia, não estava mais. Até sem fome.
Ah, ela me disse que o tipo de moças que procuram esse gênero de trabalho querem muito dinheiro e isso é horrível. Mas que coisa óbvia.
E aqui fica a entrevista que falhou. Nós todos falhamos quase sempre.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

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