Não farejam, eles. E ouvem mal, quase
nada. Enxergam coisas estranhas e, quando olham no espelho, pensam
ver o reflexo de si e não outra criatura. Andam com a cabeça no ar,
sem quase nunca encostá-la em nada, a não ser em casos de
necessidade ou fraqueza, quando se recostam em ombros ou paredes. Não
sabem encostar o queixo no chão e mal percebem a terra que lhes dá
suporte. Como poderiam farejar as coisas, enfiados que estão com o
nariz no nada? Por isso não sentem a chuva chegando e apoiam-se em
nossos barulhos para se preparar para ela, dizendo que nós a
antecipamos. Dizem muitas coisas, aliás, semelhantes a essa —
antecipar. Não escutam muito bem nossas vozes, só ligeiras
diferenças. Não ouvem quando dizemos de uma falta, de uma doença,
da luz de uma campina distante. Os mais sensíveis percebem apenas
quando queremos atenção, comida, sair ou nos divertir com nossos
pares. Tudo porque só conseguem ouvir o que se pronuncia; pensam em
sílabas. Ouvem coisas articuladas e, por isso, só entendem o que se
pensa, uma invenção que eles acreditam fazer sentido. Dizem, aliás,
que nós não pensamos — embora alguns até admitam que sim. Mas o
que é isso de pensar? Eles mesmos mal sabem, incapazes que são de
discriminar o pensamento da própria linguagem. Pensar é estar
doente dos olhos, disse um deles. Outro achava que existia
simplesmente por afirmar que pensava. Pensar, a maioria deles diz, é
exercer o raciocínio lógico; é a capacidade de julgar; é o
processo pelo qual a consciência apreende ou reconhece as coisas e
delas forma conceitos. Definições que só reproduzem
labirinticamente o próprio pensamento, ou o que eles acham que isso
seja. Dizem-se pensantes e, por essa razão, creem-se superiores.
Pois pensar, ouvi de um deles, é derivado de pesar e vem da
necessidade de conhecer o peso das mercadorias. Ou seja, é só uma
urgência econômica, como tudo o que eles fazem. Mas se pensar é
pesar, quem pesa mais e melhor? Quem sabe reconhecer os passos de um
gato, uma raposa, um rato, até de uma formiga, ou de uma entre
muitas pessoas? Quem ouve o peso da água, do ar, da terra que se
mexe? Quem mede o peso para o salto, para a queda, para a caça? Em
quem eles confiam para arrebanhar as ovelhas, para alcançar o pato,
para encontrar o buraco? Quem conhece o peso dos cheiros? E depois
ainda dizem que pensam, quando mal se lembram que pensar é ter as
patas (que eles chamam de mãos) sobre a terra. E é por isso que sua
ideia de pensamento está ligada à cabeça e, o que é pior, ao que
vai dentro dela, como se fosse possível pesar com as ideias. Ideias.
Acham que é uma coisa sem substância, uma cadeia interna de
palavras, e se esquecem de que sonham. Acham bonito que também nós
sonhemos. Espantam-se com nossos movimentos noturnos, como mexemos as
pernas em curtos espasmos, reviramos os olhos mais rápida ou
lentamente. Olha como eles também sonham, dizem. Tudo o que de
melhor nós fazemos, para eles, é o que os faz lembrar de si. Se
entendemos uma óbvia negociação, por exemplo, que depois de comer
vamos ganhar um afago ou um brinde, ficam contentes com nossa
inteligência. Se os obedecemos, ficam contentes com nossa lealdade.
Espelham-se nela. Imaginam que para ser tão leal como nós é
preciso ter a inocência que eles creem que temos. Fomos feitos para
servi-los, eles dizem. Não sabem que os servimos porque queremos, ou
melhor, não entendem o que é servir.
Pensar é ter o corpo no espaço: as
patas alertas, o tronco aceso, o salto em prontidão. É conhecer o
chão que nos penetra pela pele e avaliar os insetos que nos habitam.
É coçar a cabeça com os pés, é não diferenciar entre mãos e
pés, é estar de quatro para que a coluna não precise enfrentar o
sobrepeso inútil de uma bacia no ar. E aquilo que eles chamam de
inocência, nossa servidão, nosso olhar atônito de entrega e amor,
é nosso pensamento em ação, o gesto alegre de aproveitamento do
dia, da comida, da carícia.
Mas também há os que dançam. Perdem-se
de si mesmos, esquecem suas palavras e tropeçam nos degraus,
abraçam-se nos sofás, não esperam de nós coisas inteligentes nem
nada que os impressione. Em alguns casos, pulam. Desfeitos de alguma
urgência, envolvem-se com o chão e, por pouco que seja, tornam-se
horizontais, ainda que de dia. Quando se deitam, esses não se
lembram mais do que queriam fazer, a distração de seu peso os faz
também esquecer de pensar e nessa hora atiçam-se as mãos e os pés,
que então se agitam. E eles nos abraçam, nos beijam, rolam conosco
pela terra, jogam bolinhas e suas bocas e olhos, como os corpos,
também se estendem na horizontal.
E ainda há aqueles que parecem também
ter patas e rabos, de tanto que giram para todos os lados,
divertindo-se muito nessa brincadeira. E os que têm orelhas grandes,
abanadas, a barba desfeita e longa, os olhos arregalados. Esses
também gostam de servir. Rodeiam-nos por todos os lados, fazendo
festa e, quando chegamos, saltam exagerados. Parecem-se um pouco
conosco, esses. Quanto mais tempo um deles vive com um de nós, mais
chance tem de ir ficando assim, parecido. Se bem treinados, podem se
esquecer das relações entre causa e consequência, chegam a
desarticular alguns sons e até a falar coisas sem sílabas, cujos
significados escapam a nós e inclusive a eles mesmos.
Depois de muito tempo conosco, cantam.
Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou
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