domingo, 13 de dezembro de 2020

Duplo

          Contam que os métodos pouco ortodoxos do analista de Bagé (embora ele diga que é “mais ortodoxo que caixa de maizena”) têm levado uma multidão de pacientes a procurá-lo. Ele foi obrigado a fazer uma triagem na sua clientela.
Instruiu sua recepcionista Lindaura (“uma chinoca que eu estava criando, mas passou do ponto”) a cortar os complexos menores, inclusive todos os de inferioridade e “os Édipos de ambulatório”. Só aceita casos difíceis, pois, como diz, “cavalo manso é pra ir à missa”. Foi o caso daquele estancieiro rico que já entrou dizendo:
Meu caso é de esquizofrenia, doutor.
Oigalê! Já vi que o índio velho é dos que lê bula. Essa palavra eu só aprendi a dizer dois dias antes da formatura. Mas se abanque, no más.
O estancieiro se deitou no divã coberto com um pelego. O analista começou a limpar as unhas do pé com um facão. Falou:
Quer dizer que o amigo está com esquizofrenia.
É.
Da braba?
Da braba.
Como se manifesta a bicha?
Personalidade dupla, doutor. Um dia eu sou um, no outro eu sou outro.
Sei.
Um dia sou alegre, bonachão, mão aberta. No outro sou carrancudo, brigão e não abro a mão nem pra espantar mosca.
Mas que coisa.
Eu tenho cura, doutor?
Bueno. Vai ser um tratamento mais comprido que bombacha de gringo.
Tudo bem.
Mais caro que argentina nova na zona.
Não me importo.
Já vi que o amigo está nos seus dias de cordeirito.  Lindaura!
Chamou?
Prepara a conta que o índio velho aqui vai pagar adiantado.
O estancieiro começou a se levantar para protestar, mas o analista de Bagé o mandou de volta ao pelego com um cabeçaço. E avisou:
Se conta pro outro, te capo.

Luís Fernando Veríssimo, in O analista de Bagé

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