segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Do sonho e da terra

          Desde o Nordeste até o leste de Minas Gerais, onde fica o rio Doce e a reserva indígena das famílias Krenak, e também na Amazônia, na fronteira do Brasil com o Peru e a Bolívia, no Alto Rio Negro, em todos esses lugares as nossas famílias estão passando por um momento de tensão nas relações políticas entre o Estado brasileiro e as sociedades indígenas.
Essa tensão não é de agora, mas se agravou com as recentes mudanças políticas introduzidas na vida do povo brasileiro, que estão atingindo de forma intensa centenas de comunidades indígenas que nas últimas décadas vêm insistindo para que o governo cumpra seu dever constitucional de assegurar os direitos desses grupos nos seus locais de origem, identificados no arranjo jurídico do país como terras indígenas.
Não sei se todos conhecem as terminologias referentes à relação dos povos indígenas com os lugares onde vivem ou as atribuições que o Estado brasileiro tem dado a esses territórios ao longo da nossa história. Desde os tempos coloniais, a questão do que fazer com a parte da população que sobreviveu aos trágicos primeiros encontros entre os dominadores europeus e os povos que viviam onde hoje chamamos, de maneira muito reduzida, de terras indígenas, levou a uma relação muito equivocada entre o Estado e essas comunidades.
É claro que durante esses anos nós deixamos de ser colônia para constituir o Estado brasileiro e entramos no século XXI, quando a maior parte das previsões apostava que as populações indígenas não sobreviveriam ocupação do território, pelo menos não mantendo formas próprias de organização, capazes de gerir suas vidas. Isso porque a máquina estatal atua para desfazer as formas de organização das nossas sociedades, buscando uma integração entre essas populações e o conjunto da sociedade brasileira.

O dilema político que ficou para as nossas comunidades que sobreviveram ao século XX é ainda hoje precisar disputar os últimos redutos onde a natureza é próspera, onde podemos suprir as nossas necessidades alimentares e de moradia, e onde sobrevivem os modos que cada uma dessas pequenas sociedades tem de se manter no tempo, dando conta de si mesmas sem criar uma dependência excessiva do Estado.
O rio Doce, que nós, os Krenak, chamamos de Watu, nosso avô, é uma pessoa, não um recurso, como dizem os economistas. Ele não é algo de que alguém possa se apropriar; é uma parte da nossa construção como coletivo que habita um lugar específico, onde fomos gradualmente confinados pelo governo para podermos viver e reproduzir as nossas formas de organização (com toda essa pressão externa).
Falar sobre a relação entre o Estado brasileiro e as sociedades indígenas a partir do exemplo do povo Krenak surgiu como uma inspiração, para contar a quem não sabe o que acontece hoje no Brasil com essas comunidades — estimadas em cerca de 250 povos e aproximadamente 900 mil pessoas, população menor do que a de grandes cidades brasileiras.

O que está na base da história do nosso país, que continua a ser incapaz de acolher os seus habitantes originais — sempre recorrendo a práticas desumanas para promover mudanças em formas de vida que essas populações conseguiram manter por muito tempo, mesmo sob o ataque feroz das forças coloniais, que até hoje sobrevivem na mentalidade cotidiana de muitos brasileiros —, é a ideia de que os índios deveriam estar contribuindo para o sucesso de um projeto de exaustão da natureza. O Watu, esse rio que sustentou a nossa vida às margens do rio Doce, entre Minas Gerais e o Espírito Santo, numa extensão de seiscentos quilômetros, está todo coberto por um material tóxico que desceu de uma barragem de contenção de resíduos, o que nos deixou órfãos e acompanhando o rio em coma. Faz um ano e meio que esse crime — que não pode ser chamado de acidente — atingiu as nossas vidas de maneira radical, nos colocando na real condição de um mundo que acabou.
Neste encontro, estamos tentando abordar o impacto que nós, humanos, causamos neste organismo vivo que é a Terra, que em algumas culturas continua sendo reconhecida como nossa mãe e provedora em amplos sentidos, não só na dimensão da subsistência e na manutenção das nossas vidas, mas também na dimensão transcendente que dá sentido à nossa existência. Em diferentes lugares do mundo, nos afastamos de uma maneira tão radical dos lugares de origem que o trânsito dos povos já nem é percebido. Atravessamos continentes como se estivéssemos indo ali ao lado. Se é certo que o desenvolvimento de tecnologias eficazes nos permite viajar de um lugar para outro, que as comodidades tornaram fácil a nossa movimentação pelo planeta, também é certo que essas facilidades são acompanhadas por uma perda de sentido dos nossos deslocamentos.

Sentimo-nos como se estivéssemos soltos num cosmos vazio de sentido e desresponsabilizados de uma ética que possa ser compartilhada, mas sentimos o peso dessa escolha sobre as nossas vidas. Somos alertados o tempo todo para as consequências dessas escolhas recentes que fizemos. E se pudermos dar atenção a alguma visão que escape a essa cegueira que estamos vivendo no mundo todo, talvez ela possa abrir a nossa mente para alguma cooperação entre os povos, não para salvar os outros, mas para salvar a nós mesmos. Há trinta anos, a ampla rede de relações em que me integrei para levar ao conhecimento de outros povos, de outros governos, as realidades que nós vivíamos no Brasil teve como objetivo ativar as redes de solidariedade com os povos nativos.
O que aprendi ao longo dessas décadas é que todos precisam despertar, porque, se durante um tempo éramos nós, os povos indígenas, que estávamos ameaçados de ruptura ou da extinção dos sentidos das nossas vidas, hoje estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar a nossa demanda. Como disse o pajé yanomami Davi Kopenawa, o mundo acredita que tudo é mercadoria, a ponto de projetar nela tudo o que somos capazes de experimentar. A experiência das pessoas em diferentes lugares do mundo se projeta na mercadoria, significando que ela é tudo o que está fora de nós. Essa tragédia que agora atinge a todos é adiada em alguns lugares, em algumas situações regionais nas quais a política — o poder político, a escolha política — compõe espaços de segurança temporária em que as comunidades, mesmo quando já esvaziadas do verdadeiro sentido do compartilhamento de espaços, ainda são, digamos, protegidas por um aparato que depende cada vez mais da exaustão das florestas, dos rios, das montanhas, nos colocando num dilema em que parece que a única possibilidade para que comunidades humanas continuem a existir é à custa da exaustão de todas as outras partes da vida.
A conclusão ou compreensão de que estamos vivendo uma era que pode ser identificada como Antropoceno deveria soar como um alarme nas nossas cabeças. Porque, se nós imprimimos no planeta Terra uma marca tão pesada que até caracteriza uma era, que pode permanecer mesmo depois de já não estarmos aqui, pois estamos exaurindo as fontes da vida que nos possibilitaram prosperar e sentir que estávamos em casa, sentir até, em alguns períodos, que tínhamos uma casa comum que podia ser cuidada por todos, é por estarmos mais uma vez diante do dilema a que já aludi: excluímos da vida, localmente, as formas de organização que não estão integradas ao mundo da mercadoria, pondo em risco todas as outras formas de viver — pelo menos as que fomos animados a pensar como possíveis, em que havia corresponsabilidade com os lugares onde vivemos e o respeito pelo direito à vida dos seres, e não só dessa abstração que nos permitimos constituir como uma humanidade, que exclui todas as outras e todos os outros seres. Essa humanidade que não reconhece que aquele rio que está em coma é também o nosso avô, que a montanha explorada em algum lugar da África ou da América do Sul e transformada em mercadoria em algum outro lugar é também o avô, a avó, a mãe, o irmão de alguma constelação de seres que querem continuar compartilhando a vida nesta casa comum que chamamos Terra.
O nome krenak é constituído por dois termos: um é a primeira partícula, kre, que significa cabeça, a outra, nak, significa terra. Krenak é a herança que recebemos dos nossos antepassados, das nossas memórias de origem, que nos identifica como “cabeça da terra”, como uma humanidade que não consegue se conceber sem essa conexão, sem essa profunda comunhão com a terra. Não a terra como um sítio, mas como esse lugar que todos compartilhamos, e do qual nós, os Krenak, nos sentimos cada vez mais desraigados — desse lugar que para nós sempre foi sagrado, mas que percebemos que nossos vizinhos têm quase vergonha de admitir que pode ser visto assim. Quando nós falamos que o nosso rio é sagrado, as pessoas dizem: “Isso é algum folclore deles”; quando dizemos que a montanha está mostrando que vai chover e que esse dia vai ser um dia próspero, um dia bom, eles dizem: “Não, uma montanha não fala nada”.
Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista. Do nosso divórcio das integrações e interações com a nossa mãe, a Terra, resulta que ela está nos deixando órfãos, não só aos que em diferente graduação são chamados de índios, indígenas ou povos indígenas, mas a todos. Tomara que estes encontros criativos que ainda estamos tendo a oportunidade de manter animem a nossa prática, a nossa ação, e nos deem coragem para sair de uma atitude de negação da vida para um compromisso com a vida, em qualquer lugar, superando as nossas incapacidades de estender a visão a lugares para além daqueles a que estamos apegados e onde vivemos, assim como às formas de sociabilidade e de organização de que uma grande parte dessa comunidade humana está excluída, que em última instância gastam toda a força da Terra para suprir a sua demanda de mercadorias, segurança e consumo.

Como reconhecer um lugar de contato entre esses mundos, que têm tanta origem comum, mas que se descolaram a ponto de termos hoje, num extremo, gente que precisa viver de um rio e, no outro, gente que consome rios como um recurso? A respeito dessa ideia de recurso que se atribui a uma montanha, a um rio, a uma floresta, em que lugar podemos descobrir um contato entre as nossas visões que nos tire desse estado de não reconhecimento uns dos outros?
Quando eu sugeri que falaria do sonho e da terra, eu queria comunicar a vocês um lugar, uma prática que é percebida em diferentes culturas, em diferentes povos, de reconhecer essa instituição do sonho não como experiência cotidiana de dormir e sonhar, mas como exercício disciplinado de buscar no sonho as orientações para as nossas escolhas do dia a dia.
Para algumas pessoas, a ideia de sonhar é abdicar da realidade, é renunciar ao sentido prático da vida. Porém, também podemos encontrar quem não veria sentido na vida se não fosse informado por sonhos, nos quais pode buscar os cantos, a cura, a inspiração e mesmo a resolução de questões práticas que não consegue discernir, cujas escolhas não consegue fazer fora do sonho, mas que ali estão abertas como possibilidades. Fiquei muito apaziguado comigo mesmo hoje à tarde, quando mais de uma colega das que falaram aqui trouxeram a referência a essa instituição do sonho não como uma experiência onírica, mas como uma disciplina relacionada à formação, à cosmovisão, à tradição de diferentes povos que têm no sonho um caminho de aprendizado, de autoconhecimento sobre a vida, e a aplicação desse conhecimento na sua interação com o mundo e com as outras pessoas.

Ailton Krenak, in Ideias para adiar o fim do mundo

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