domingo, 20 de dezembro de 2020

A morte do velho Aparício

          Anos mais tarde, o Posto das Lebres era um dos mais caprichados campos da família Bueno. Lauro e Ana fincaram raízes naquele fundão e não mediram esforços para compensar a confiança do padrinho. Nem bem o rancho estava pronto, veio ao mundo Miguelina, a primeira filha do casal. E logo seguiram, em escadinha, os outros: Álvaro, Mariana, João e Laurinho. Com a ajuda dos filhos, o casal fez com que o posto produzisse até mais do que o esperado.
Miguelina, a mais velha, foi criada como guri e trabalhava nas lides do campo tão bem quanto o pai e melhor do que os irmãos. Aos doze anos, nem precisava da ajuda de ninguém para revisar o gado e curar a terneirada. Ela era o orgulho do Lauro.
Independente da boa produção do posto, a vida para a família estava cada vez mais difícil. A produção era toda da família Bueno e o que tinham de seu mal dava para alimentar todos que moravam por ali.
Alguns invernos depois, em um agosto gelado como nunca se viu, nasceu o último rebento do casal. A pequena Isa veio ao mundo magra e desacreditada. Os poucos que visitaram a família já se iam pensando que voltariam em breve para dar os pêsames pela morte da criança. Entretanto, mesmo com dificuldades, a menina foi se criando e completou seu primeiro ano, ainda que pálida e adoentada.
Num dia de vento forte e agourento, Lauro Contreras perdeu o chão. Logo cedo recebeu um recado da estância pedindo que corresse até a sede, pois seu padrinho estava muito mal e solicitava a sua presença. Na carroça, guiada por Mariana, foram as mulheres, exceto Miguelina, que seguiu a cavalo, junto com o pai e os irmãos. A menina já devia ter seus dezesseis anos e despertava olhares por onde passava.
Na chegada, Lauro cumprimentou as gentes da Estância do Silêncio, cumprimentou a mãe na cozinha e subiu até o quarto do padrinho. Aproximou-se da cama. Enxergar o velho apequenado, moribundo, foi um choque. Segurou o pranto. O velho Aparício, com os olhos cerrados, respirava com dificuldade, as carnes frouxas da cara balançavam a cada expiração. Com as janelas fechadas e apenas algumas velas acesas, o quarto cheirava mal. Aparício da Silva Bueno abriu os olhos e reconheceu a si mesmo naquele filho bastardo. Uma pena que aquela vida de aparências fizera com que o menino nunca soubesse a verdade. Agora, pensou o velho, agora já era tarde demais...
O velho morreu ainda naquela tarde. Horas depois, Lauro caminhava tristemente do lado de fora das casas. Sentia o forte cheiro de café e o aroma adocicado dos sonhos feitos por sua mãe. Escutava o burburinho de lamentações, conversas fiadas e até risadas veladas de alguns convivas, que apareciam apenas por curiosidade. Definitivamente não se agradava daquele espetáculo.
Lauro escutou o passo arrastado e coxo do velho Euleutério, o antigo capataz do Silêncio. Olhou para trás e viu-o. Com os olhos vermelhos, escondido sob as golas do poncho de lã, o homem parou do lado de Lauro. Não falou nada. Acendeu um cigarro e ficou com os olhos perdidos no horizonte — sua farta cabeleira branca dançava suavemente ao compasso do minuano. Deu um tapinha nas costas de Lauro e seguiu seu rumo. Passaria uma vassoura de chirca no galpão pela milésima vez no dia, tentando espantar os pensamentos.
Após o enterro, Lauro e a família foram convidados a ficar mais um dia na estância para ajudar no que fosse preciso. Dona Amélia, com o rosto inchado do choro, estava cercada pelas filhas e genros. Amanda, a mais velha das filhas, distribuía ordens pela casa. Amélia pensou na filha que morava no Rio de Janeiro — até hoje não aceitava aquela mudança — e estava longe demais, alheia ao sofrimento da família. Quando a carta chegasse às mãos de Rose, como sofreria a menina, coitada...
Lauro estava num canto da cozinha, o rosto ainda úmido de lágrimas, quando sua mãe se aproximou:
Toma esse mate, meu filho, e vai limpar essa cara, que homem não chora. — disse Pitanga, alcançando a cuia, com água fumegante, para que o filho sentasse os pés no estribo da realidade novamente. Como uma criança, Lauro obedeceu sua mãe sem pestanejar, limpando as lágrimas que insistiam em brotar. A mulata, embora beirando os sessenta anos, ainda conservava a firmeza ao caminhar e as formas do corpo de outrora — a idade não lhe judiara como normalmente faz com os seres deste mundo.
Sentado na cadeira tosca, Lauro recompôs-se e ficou a imaginar que fim levaria o posto onde morava com sua família. Naquele momento, surgiu mais uma ruga em sua testa queimada pela geada e pelo sol.
Agora que já estás refeito, vai lá conversar com a dona Amanda — disse Pitanga. — Ela tem uma proposta pra ti. Aconselho que tu aceites, pelo bem da tua família. Não esquece que tua mãe vai estar sempre aqui.

R. Tavares, in Andarilhos

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