Quando Martine e Philippa trancaram a
porta, lembraram-se de Babette. Uma pequena onda de ternura e
compaixão as percorreu: só Babette não compartilhara nem um pouco
do êxtase daquela noite.
Assim, foram até a cozinha, e Martine
disse para Babette: “Foi um jantar muito bom, Babette”.
Seus corações subitamente enchiam-se de
gratidão. Perceberam que nenhum dos convidados dissera uma única
palavra sobre a comida. Na verdade, por mais que tentassem, eles
mesmos não conseguiriam se lembrar de nenhum dos pratos que foram
servidos. Martine recordou-se da tartaruga. Não era o que pareceu
então e agora lhe parecia muito vago e distante; era bem possível
que tudo não passasse de um pesadelo.
Babette estava sentada no cepo de cortar,
cercada por mais panelas escuras e engorduradas do que as donas da
casa já haviam visto em toda a vida. Estava tão pálida e morta de
cansaço quanto na noite em que apareceu pela primeira vez,
desmaiando na soleira da porta.
Após um longo tempo, fitou-as
diretamente e disse: “Eu fui cozinheira no Café Anglais”.
Martine disse outra vez: “Todos acharam
o jantar muito bom”. E quando Babette não disse uma palavra,
acrescentou: “Vamos nos lembrar desta noite quando você tiver ido
embora para Paris, Babette”.
Babette disse: “Não vou para Paris”.
“Não vai voltar para Paris?”,
exclamou Martine.
“Não”, disse Babette. “O que vou
fazer em Paris? Todo mundo se foi. Perdi todos eles, madames.”
Os pensamentos das irmãs dirigiram-se a
Monsieur Hersant e seu filho, e disseram: “Ai, pobre Babette”.
“É, todo mundo se foi”, disse
Babette. “O duque de Morny, o duque de Decazes, o príncipe
Narinshkine, o general Galliffet, Aurélian Scholl, Paul Daru, a
princesa Pauline! Todos eles!”
Os estranhos nomes e títulos de pessoas
perdidas para Babette confundiram ligeiramente as duas senhoras, mas
havia uma tal perspectiva infinita de tragédia no anúncio que, em
seu estado de espírito receptivo, sentiram as perdas como se fossem
pessoais e seus olhos encheram-se de lágrimas.
No fim de outro longo silêncio, Babette
de repente soltou um leve sorriso e disse: “E como eu iria voltar a
Paris, madames? Estou sem dinheiro”.
“Sem dinheiro?”, exclamaram as irmãs
como se fossem uma só.
“Isso”, disse Babette.
“Mas e os dez mil francos?”,
perguntaram as irmãs, ofegantes de horror.
“Os dez mil francos foram gastos,
madames”, disse Babette.
As irmãs se sentaram. Por um minuto,
ficaram sem fala.
“Mas dez mil francos?”, sussurrou
lentamente Martine.
“O que queriam, madames”, disse
Babette com grande dignidade. “Um jantar para doze no Café Anglais
custaria dez mil francos.”
As senhoras continuavam sem uma palavra
para dizer. A novidade era-lhes incompreensível, mas já então
muitas coisas nessa noite, de uma forma ou de outra, estavam além da
compreensão.
Martine lembrou-se da história contada
por um amigo de seu pai que fora missionário na África. O homem
salvara a vida da esposa favorita de um velho chefe e, para mostrar
sua gratidão, o chefe lhe ofereceu uma lauta refeição. Somente
muito depois é que o missionário ficou sabendo por seu próprio
serviçal negro que aquilo que comera era um gordo netinho do chefe,
preparado em honra do grande curandeiro cristão. Sentiu um calafrio.
Mas o coração de Philippa se
desmanchava em seu peito. Parecia-lhe que uma noite inesquecível
estava destinada a terminar com uma prova inesquecível de lealdade e
autossacrifício de um ser humano.
“Querida Babette”, disse,
delicadamente, “não deveria ter gasto tudo que tinha por nossa
causa.”
Babette lançou um olhar penetrante à
sua patroa, um olhar estranho. Não haveria compaixão, até mesmo
desdém, no fundo dele?
“Por sua causa?”, retrucou. “Não.
Foi por minha causa.”
Ergueu-se do toco e ficou de pé diante
das duas irmãs.
“Sou uma grande artista!”, disse.
Esperou um minuto e então repetiu: “Sou
uma grande artista, madames”.
Mais uma vez, por um longo tempo houve
silêncio na cozinha.
Depois, Martine disse: “Então vai ser
pobre o resto da vida, Babette?”.
“Pobre?”, disse Babette. Sorriu para
si mesma ao ouvir isso. “Não, nunca vou ser pobre. Já lhes disse
que sou uma grande artista. Uma grande artista, madames, nunca é
pobre. Temos algo, madames, a respeito do qual as outras pessoas não
fazem a menor ideia.”
Embora as duas senhoras idosas não
encontrassem mais nada que dizer, no coração de Philippa vibraram
cordas profundas, esquecidas. Pois outrora ouvira falar, muito tempo
antes, do Café Anglais. Outrora ouvira falar, muito tempo antes, dos
nomes na trágica lista de Babette. Levantou-se e deu um passo na
direção da criada.
“Mas todas essas pessoas que
mencionou”, disse, “esses príncipes e gente importante de Paris
cujos nomes disse, Babette? Você mesma lutou contra eles. Você foi
uma communarde! O general que mencionou mandou matar seu
marido e seu filho! Como pode sofrer por eles?”
Os olhos negros de Babette fitaram os de
Philippa.
“Sim”, disse ela, “eu fui uma
communarde. Graças a Deus, eu fui uma communarde! E as
pessoas que mencionei, madames, eram más e cruéis. Deixaram o povo
de Paris passar fome; levaram opressão e injustiça aos pobres.
Graças a Deus, eu fiquei numa barricada; descarreguei minha arma por
meus concidadãos! Mas mesmo assim, madames, não voltarei a Paris,
agora que as pessoas de quem falei já não estão mais por lá.”
Ficou imóvel, perdida em pensamentos.
“Vejam, madames”, disse, finalmente,
“essas pessoas me pertenciam, eram minhas. Foram criadas e
educadas, a um custo tão elevado que as senhoras, minhas queridas,
jamais poderiam imaginar ou acreditar, para compreender a grande
artista que sou. Eu era capaz de torná-los felizes. Quando dava o
melhor de mim, era capaz de torná-los perfeitamente felizes.”
Fez uma pausa.
“Foi assim também com Monsieur Papin”,
disse.
“Com Monsieur Papin?”, perguntou
Philippa.
“Sim, com seu Monsieur Papin, minha
pobre senhora”, disse Babette. “Ele mesmo me contou: ‘É
terrível e insuportável para um artista’, disse, ‘ser
encorajado a fazer, ser aplaudido por fazer, quase o melhor’.
Disse: ‘No mundo todo, um longo lamento é emitido pelo coração
do artista: Permitam-me dar o máximo de mim!’.”
Philippa foi até Babette e envolveu-a em
seus braços. Sentiu o corpo da cozinheira como um monumento de
mármore contra o seu, mas ela mesma tremia muito dos pés à cabeça.
Por alguns instantes, não conseguiu
falar nada. Então sussurrou:
“Contudo, sinto que não é o fim!
Sinto, Babette, que isto não é o fim. No Paraíso, será a grande
artista que Deus planejou! Ah!”, acrescentou, lágrimas
escorrendo-lhe pelo rosto. “Ah, como encantará os anjos!”
Karen Blixen, in A festa de
Babette
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