sábado, 26 de dezembro de 2020

A entrega da pequena Isa

          A proposta da dona Amanda era tão absurda quanto irrecusável. Em troca da propriedade dos campos onde Lauro construíra seu rancho e vivia com sua família, a filha do seu querido padrinho pediu para que entregassem a pequena Isa, sempre tão adoentada, para que ela a cuidasse.
Lauro, eu peço que penses muito bem na proposta. Vocês têm outras crianças. Além disso, a pequena está doente e vocês não tem condições de criá-la. Deixem-na comigo, e ela terá somente do bom e do melhor. E vocês finalmente vão ser donos daquele posto onde meu pai deixava que vocês morassem — deixou que a ameaça velada fizesse seu efeito.
Algum tempo depois, Lauro e dona Amanda entraram na cozinha, onde estavam Ana e Pitanga.
Ana, arruma a Isa e traz a menina aqui. — pediu ele.
A esposa fez a vontade do marido e trouxe a criança, de uma limpidez mórbida e olhos escondidos em olheiras cinzentas e profundas. Ele disse à esposa então:
Mulher, peço que me perdoe pelo que eu fiz. Mas nossa filha está doente e, se não fizermos algo, ela acabará morrendo. Como chefe desta família, não posso permitir que isso aconteça.
Ana, com lágrimas riscando suas faces, ficou em silêncio à espera da explicação do esposo, e ele disse:
A partir de agora, a dona Amanda e o marido vão cuidar da Isa. A menina vai ter tudo que precisa: médicos, remédios e tudo o mais. E a vó dela vai estar sempre por perto.
Sem acreditar no que ouvia, a mãe explodiu em um choro convulsivo e, com as mãos tremendo, segurava firme sua pequena filha contra o peito. Fora de si, gritava:
Ninguém tira ela de mim, ninguém!
Já era tarde demais. A velha Pitanga aproximou-se da nora e retirou-lhe a criança dos braços. Pragmática, recolheu as poucas coisas da menina que estavam pela casa. Com a voz seca e sem rodeios, disse:
Foi Deus quem quis assim, minha filha. Vocês não têm condições de tratar desta menina. Não deixe que o egoísmo acabe com a vida da minha neta. Volte pra casa, cuide dos teus outros filhos e apoie teu marido, que mulher não deve discutir — disse isso e levou a pequena para sua nova família.
E foi mais ou menos assim que o Posto virou Chácara das Lebres. Porém, quando finalmente a prosperidade pediu pouso no rancho da família, veio com ela a tristeza e, sem pedir licença, foi como que se adonando do pouco que os Contreras tinham.
A vida deles nunca mais foi a mesma. Para desviar do assunto que parecia sempre rondá-lo, Lauro concentrou todas suas forças em trabalhar ainda com mais afinco do que antes. Continuava com um pouco de gado do Silêncio engordando em sua chácara, sobre o qual recebia um valor por cabeça. Comprou animais, plantou. Saía de seu rancho todos os dias antes do amanhecer e retornava apenas à noite.
A partir daí, os Contreras deixaram de ser uma família. Eram apenas um bando que dividia o mesmo rancho, a mesma lida e a mesma vida miserável que Deus lhes dera. Pouco tempo depois, foram embora também Miguelina, que decidiu ganhar a estrada no lombo do cavalo de um gaúcho qualquer; Álvaro, que foi trabalhar de peão em uma estância lindeira, e Mariana, que se juntou com um capataz e foi morar com ele. Ficaram no rancho apenas Lauro, a esposa, João e Laurinho.
Sentado nas sombras do ipê-amarelo, Lauro ruminava suas escolhas e não conseguia afastar o amargor que lhe subia à boca. Quando havia aceitado a oferta de dona Amanda, tinha certeza de que estava certo. No entanto, naquele momento, já nem sabia mais.

R. Tavares, in Andarilhos

Nenhum comentário:

Postar um comentário