terça-feira, 22 de dezembro de 2020

A cidade-romance em Balzac

          Transformar em romance uma cidade: representar os bairros e as ruas como personagens dotadas cada uma de um caráter em oposição às outras; evocar figuras humanas e situações como uma vegetação espontânea que germina do calçamento desta ou daquela rua ou como elementos de tão dramático contraste com elas a ponto de provocar cataclismos em cadeia; fazer com que em cada momento mutável a verdadeira protagonista seja a cidade viva, a sua continuidade biológica, o monstro-Paris: essa é a tarefa à qual Balzac se sente chamado no momento em que começa a escrever Ferragus.
E dizer que começara tendo na cabeça uma ideia totalmente diversa: o domínio exercido por personagens misteriosas através da rede invisível das sociedades secretas; ou melhor, os núcleos de inspiração que lhe eram caros e que ele queria fundir num único ciclo romanesco eram dois: o das sociedades secretas e o da onipotência oculta de um indivíduo à margem da sociedade. Os mitos que darão forma à narrativa culta e popular por mais de um século passam todos por Balzac. O Super-Homem que se vinga da sociedade que o colocou à margem, transformando-se num demiurgo inacessível, percorrerá, com as feições proteiformes de Vautrin, os tomos da Comédia humana e se reencarnará em todos os Montecristos, os Fantasmas da Ópera e talvez os Chefões que os romancistas de sucesso hão de colocar em circulação. A conspiração tenebrosa que estende seus tentáculos por todos os lados obcecará, um pouco por divertimento e um pouco a sério, os mais refinados romancistas ingleses entre o final e o início do século e ressurgirá na produção em série de aventuras brutalizantes e de espionagem que são nossas contemporâneas.
Com Ferragus ainda estamos plenamente na onda romântica byroniana. Numa edição de março de 1833 da Revue de Paris (publicação com tiragens semanais à qual, por vínculo contratual, Balzac era obrigado a entregar quarenta páginas por mês, entre contínuas repreensões do editor pelos atrasos na entrega dos manuscritos e as correções excessivas nos rascunhos), sai o prefácio da Histoire des Treize em que o autor promete revelar os segredos de treze decididos fora da lei ligados por um pacto de ajuda mútua que os tornava invencíveis e anuncia um primeiro episódio: “Ferragus, chef des Dévorants”. (O termo Dévorants, ou Devoirants, designava tradicionalmente os membros de uma associação profissional, “Companheiros do Dever”, e poderia ser italianizado como Doveranti [Devorosos], mas certamente Balzac joga com a falsa etimologia de dévorer, bem mais sugestiva, e quer que entendamos “Devoradores”.)
O prefácio é datado de 1831, mas Balzac se debruça sobre o projeto só em fevereiro de 1833, e não cumpre o prazo de entrega do primeiro capítulo para a primeira semana seguinte à publicação do prefácio; assim, duas semanas depois, a Revue de Paris publicará dois primeiros capítulos juntos; o terceiro capítulo irá atrasar a saída do número seguinte; e o quarto e a conclusão sairão num fascículo suplementar no mês de abril.
Mas o romance publicado é bem diferente daquele que o prefácio anunciava; o velho projeto não interessa mais ao autor; é outro que o mobiliza agora, que o faz suar sobre os manuscritos em vez de despejar páginas e páginas no ritmo exigido pela produção e que o leva a encher de correções e acréscimos os rascunhos, estragando a composição dos tipógrafos. Contudo, o enredo que ele segue tem sempre força suficiente para manter o fôlego suspenso com os mistérios e os golpes de cena mais inesperados, e a personagem tenebrosa com o ariostesco nome de batalha de Ferragus desempenha um papel central, mas tanto as aventuras às quais ele deve sua autoridade secreta quanto sua infâmia pública são subentendidas, e é somente ao seu declínio que Balzac nos faz assistir. E quanto aos “Treze”, ou melhor, aos outros doze sócios, até parece que o autor se esqueceu deles, e os mostra só de longe, como coadjuvantes decorativos, numa faustosa missa fúnebre.
O que então apaixonava Balzac era o poema topográfico de Paris, segundo a intuição que ele teve antes de qualquer outro da cidade como linguagem, como ideologia, como condicionamento de cada pensamento e palavra e gesto, onde as vidas “impriment par leur physionomie certaines idées contre lesquelles nous sommes sans défense”, a cidade monstruosa como um crustáceo gigantesco do qual os habitantes não passam de articulações motoras. Fazia vários anos que Balzac vinha publicando nos jornais esboços de vida urbana, medalhões de personagens típicas: agora aponta no sentido de uma organização desse material, para uma espécie de enciclopédia parisiense em que encontram lugar o pequeno tratado para seguir mulheres pela rua, o quadrinho de costumes (digno de Daumier) dos passantes surpreendidos pela chuva, a classificação dos vagabundos, a sátira da febre imobiliária que dominou a capital, a caracterização da grisette , o registro da fala das várias categorias (quando os diálogos de Balzac perdem a ênfase declamatória habitual, sabem seguir as afetações e os neologismos que estão na moda e até a entoação das vozes; ouve-se uma vendedora dizer que as plumas do marabu dão ao penteado feminino “quelque chose de vague, d’ossianique et de très comme il faut”). À tipologia dos exteriores corresponde algo dos interiores, luxuosos ou miseráveis (com efeitos pictóricos estudados como o vaso de géroflées na espelunca da viúva Gruget). A descrição do cemitério do Père-Lachaise e os meandros da burocracia funerária coroam o desenho, e assim o romance que se abrira com a visão de Paris como organismo vivo se fecha no horizonte da Paris dos mortos.
A História dos Treze se tornou o atlas do continente Paris. E quando, concluído Ferragus, Balzac (sua obstinação não lhe permitia deixar um projeto pelo meio) escreve para outros editores (com a Revue de Paris já tinha brigado) outros dois episódios para completar o tríptico, trata-se de dois romances muito diferentes do primeiro e entre si, mas que têm em comum, mais que o fato de seus protagonistas pertencerem à mesma associação misteriosa (detalhe aliás acessório para o andamento da trama), a presença de amplas digressões que acrescentam outras vozes à sua enciclopédia parisiense: La duchesse de Langeais (romance passional nascido sob o impulso de um desabafo autobiográfico) oferece em seu segundo capítulo um estudo sociológico da aristocracia do Faubourg Saint-Germain; La fille aux yeux d’or (que é bem mais: um dos textos axiais da cultura francesa que se desenvolve ininterruptamente de Sade até hoje, digamos a Bataille e Klossovski) abre com uma espécie de museu antropológico dos parisienses divididos em classes sociais.
Se em Ferragus a riqueza dessas digressões é maior que nos demais romances do tríptico, não se pode dizer que só nelas Balzac invista sua elaborada força de escritura: também a experiência psicológica intimista das relações entre os cônjuges impregna a fundo o autor. Certamente nos interessa menos esse drama de um casal demasiado perfeito, dados os nossos hábitos de leitura que, num certo grau do sublime, só nos deixam ver nuvens ofuscantes e nos impedem de distinguir movimentos e contrastes: contudo, o modo como a sombra da suspeita que não se pode afastar não consegue incidir externamente sobre a confiança amorosa, mas acaba por corroê-la por dentro, é um processo apresentado de modo nem um pouco banal. E não podemos esquecer que páginas que podem nos parecer apenas exercícios de eloquência convencional, como a última carta de Clémence ao marido, eram os trechos de virtuosismo dos quais Balzac sentia mais orgulho, como ele próprio confidenciava escrevendo a mme. Hanska.
Quanto ao outro drama psicológico, o de um desmesurado amor paterno, nos convence menos, mesmo como primeiro esboço de Père Goriot (mas aqui o egoísmo está todo do lado do pai e o sacrifício todo do lado da filha). Dickens conseguiu resultados bem melhores da reaparição de um pai condenado às galés em sua obra-prima Grandes esperanças.
Mas uma vez constatado que também o relevo dado à psicologia contribui para pôr em segundo plano o enredo aventuroso, temos de reconhecer quanto ele ainda pesa em nosso prazer de leitores: o suspense funciona, embora o centro emocional da narrativa se desloque repetidamente de uma personagem a outra; o ritmo dos acontecimentos é acelerado mesmo que algumas passagens da trama tropecem na ilogicidade ou no descuido; o mistério das visitas de mme. Jules aos ambientes da má vida é um dos primeiros enigmas policiais que uma personagem improvisada em detetive enfrenta na abertura do romance, apesar de a solução vir cedo demais e ser de uma simplicidade decepcionante.
Toda a força romanesca é sustentada e condensada pela criação de uma mitologia da metrópole. Uma metrópole em que ainda cada personagem, como nos retratos de Ingres, parece dona do próprio rosto. A época da multidão anônima ainda não começou; é questão de pouco tempo, aqueles vinte anos que separam Balzac e a apoteose da metrópole no romance de Baudelaire e a apoteose da metrópole na poesia em versos. Para definir esta passagem vamos buscar duas citações de leitores de um século depois, ambos interessados por caminhos diversos pela mesma problemática.
Balzac descobriu a grande cidade como incubação de mistérios e o sentido que tem sempre aceso é a curiosidade. É a sua musa. Não é jamais cômico nem trágico, é curioso. Penetra num emaranhado de coisas sempre com ar de quem fareja e promete um mistério e vai desmontando toda a máquina pedaço por pedaço com um gosto acre, vivaz e triunfal. Observem como se aproxima das personagens novas: examina-as de todos os lados como raridades, descreve-as, esculpe, define, comenta, faz transparecer toda a singularidade delas e garante maravilhas. Suas sentenças, observações, tiradas, motes não são verdades psicológicas, mas suspeitas e truques de juiz instrutor, luta contra o mistério que deve ser esclarecido a qualquer custo. Por isso, quando a pesquisa, a caça ao mistério se aplaca e — no início do livro ou no decorrer (nunca no fim, pois então com o mistério tudo está desvelado) — Balzac disserta sobre seu complexo misterioso com um entusiasmo sociológico, psicológico e lírico, ele é admirável. Ver o início de Ferragus ou o começo da segunda parte de Splendeurs et misères des courtisanes. É sublime. É Baudelaire que se anuncia.

Quem escrevia essas frases era o jovem Cesare Pavese, em seu diário, com data de 13 de outubro de 1936.
Mais ou menos no mesmo período, Walter Benjamin, no ensaio sobre Baudelaire, escreve um trecho em que basta substituir o nome de Victor Hugo por aquele (ainda mais adequado) de Balzac, para fazê-lo continuar e completar o discurso anterior: 

Buscar-se-á em vão, nas Fleurs du mal ou no Spleen de Paris, algo de semelhante aos afrescos urbanos nos quais Victor Hugo era insuperável. Baudelaire não descreve a população nem a cidade. E justamente esta renúncia lhe permitiu evocar uma na imagem da outra. Sua loucura é sempre a da metrópole; sua Paris está sempre superpovoada […] Nos Tableaux parisiens é possível sentir, quase sempre, a presença secreta de uma multidão. Quando Baudelaire toma como objeto o crepúsculo da manhã, há, nas ruas desertas, algo do “silêncio formigante” que Hugo sente na Paris noturna […] A massa era o véu flutuante através do qual Baudelaire via Paris.

Italo Calvino, in Por que ler os clássicos

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