sábado, 21 de novembro de 2020

Candide ou a velocidade

          Personagens filiformes, animadas por uma mobilidade saltitante se alongam, se contorcem numa sarabanda com a leveza de pequenos arranhões: assim Paul Klee, em 1911, ilustrava o Candide de Voltaire, dando forma visual — e quase diria musical — à alegria energética que esse livro — para além do denso invólucro de referências a uma época e a uma cultura — continua a comunicar ao leitor de nosso século.
Hoje, em Candide, não é o “conto filosófico” o que mais nos fascina, não é a sátira, não é o tomar forma de uma moral e de uma visão do mundo: é o ritmo. Com velocidade e leveza, uma sucessão de desgraças, suplícios e massacres corre pela página, salta de capítulo em capítulo, se ramifica e multiplica sem provocar na emotividade do leitor outro efeito além de uma vitalidade alegre e primordial. Se bastam as três páginas do capítulo VIII para que Cunegundes se dê conta de como, tendo tido pai, mãe, irmão esquartejados pelos invasores, tenha sido violentada, destripada, curada, reduzida a lavadeira, transformada em objeto de negociação na Holanda e em Portugal, dividida em dias alternados entre dois protetores com profissões de fés diferentes, e assim tenha acabado por assistir ao auto de fé que tem como vítimas Pangloss e Cândido e por reunir-se a este último, menos de duas páginas do capítulo IX são suficientes para que Cândido se encontre com dois cadáveres entre os pés e Cunegundes possa exclamar: “Como conseguiu, você que nasceu tão manso, matar em dois minutos um judeu e um padre?”. E quando a velha servente explica por que só tem uma nádega, após ter começado a contar sua vida desde quando, filha de um papa, aos treze anos de idade, em três meses passara pela miséria, escravidão, fora violentada quase todos os dias, vira a mãe ser cortada em quatro, suportara a fome e a guerra e fora vítima da peste na Argélia, deve falar também do assédio de Azov e do insólito recurso alimentar que os janízaros encontram nas nádegas femininas, aqui as coisas vão lentamente, são necessários dois capítulos inteiros, digamos seis páginas e meia.
O grande achado do Voltaire humorista é aquele que se tornará um dos efeitos mais seguros do cinema cômico: o acúmulo de desastres a grande velocidade. E não faltam as imprevistas acelerações de ritmo que conduzem ao paroxismo o sentido do absurdo: quando a série das desventuras já velozmente narradas em sua exposição “por extenso” é repetida num resumo de provocar tonturas. É um grande cinematógrafo mundial que Voltaire projeta em seus fulminantes fotogramas, é a volta ao mundo em oitenta páginas, que leva Cândido da Vestefália natal até a Holanda, Portugal, América do Sul, França, Inglaterra, Veneza, Turquia e se espalha nas voltas ao mundo supletivas das personagens coadjuvantes, homens e sobretudo mulheres, fáceis presas de piratas e de mercadores de escravos entre o Gibraltar e o Bósforo. Um grande cinematógrafo da atualidade mundial, sobretudo: com aldeias dizimadas na Guerra dos Setes Anos entre prussianos e franceses (os “búlgaros” e os “ávaros”), o terremoto de Lisboa de 1755, os autos de fé da Inquisição, os jesuítas do Paraguai que recusam o domínio espanhol e português, as míticas riquezas dos incas, e alguns flashes mais rápidos sobre o protestantismo na Holanda, a expansão da sífilis, a pirataria mediterrânea e atlântica, as guerras intestinais do Marrocos, a exploração de escravos negros na Guiana, deixando uma certa margem para as crônicas literárias e mundanas parisienses e para as entrevistas com os muitos reis destronados do momento, reunidos no Carnaval de Veneza.
Um mundo que caminha para a ruína, em que ninguém se salva em lugar nenhum, se excetuarmos o único país sábio e feliz, Eldorado. A conexão entre felicidade e riqueza deveria ser excluída, uma vez que os incas ignoram que a poeira de ouro de suas estradas e as pedras de diamantes tenham tanto valor para os homens do Velho Mundo: contudo, quanta casualidade, uma sociedade sábia e feliz, Cândido vai encontrá-la justamente entre as jazidas de metais preciosos. Lá, finalmente Pangloss poderia ter razão, o melhor dos mundos possíveis poderia ser realidade: acontece que Eldorado está escondido entre as mais inacessíveis cordilheiras dos Andes, talvez num farrapo de mapa: trata-se de um não lugar, de uma utopia.
Mas se esse Paraíso tem aquele algo de indefinido e de não muito convincente que é próprio das utopias, o resto do mundo, com suas atribulações torturantes, embora apenas esboçadas, não é de fato uma representação maneirista. “É por este preço que vocês comem açúcar na Europa!”, diz o negro da Guiana Holandesa, após ter informado sobre seus suplícios em poucas linhas; e a cortesã, em Veneza:

Ah, senhora, se pudesse imaginar o que significa ter de acariciar indiferentemente um velho comerciante, um advogado, um padre, um gondoleiro, um abade; ser exposta a todos os insultos, a todas as afrontas; ser muitas vezes reduzida a pedir emprestada uma saia para permitir que ela seja arrancada por um homem repugnante; ser roubada por um macho de tudo o que acabou de ganhar com outro; ser multada por oficiais de justiça e não ter outra perspectiva além de uma horrenda velhice, um hospital, um chiqueiro…

Certamente as personagens de Candide parecem feitas de borracha: Pangloss definha com a sífilis, enforcam-no, amarram-no aos remos de um navio e o reencontramos sempre vivo e fagueiro. Mas seria equivocado dizer que Voltaire passa ao largo do custo dos sofrimentos: que outro romancista tem a coragem de fazer-nos reencontrar a heroína que no início é “de colorido vivaz, fresca, gorda, apetitosa” transformada numa Cunegundes “escurecida, com os olhos cheios de remela, o peito achatado, as bochechas enrugadas, os braços vermelhos e gretados”?
Nesse ponto, nos damos conta de que a nossa leitura de Candide, que desejava ser totalmente externa, “superficial”, conduziu-nos ao centro da “filosofia”, da visão de mundo de Voltaire. Que não pode ser identificada somente na polêmica com o otimismo providencialista de Pangloss: pensando bem, o mentor que acompanha Cândido por mais tempo não é o infeliz pedagogo leibniziano, mas o “maniqueísta” Martin, o qual é levado a ver no mundo somente as vitórias do diabo; e se Martin sustenta a parte do anti-Pangloss, certamente não se pode dizer que ele seja o vencedor da partida. Inútil — diz Voltaire — é procurar uma explicação metafísica do mal, como fazem o otimista Pangloss e o pessimista Martin, pois este mal é subjetivo, indefinível e não mensurável; o credo de Voltaire é antifinalista, ou seja, se o seu Deus tem um fim, será um fim imperscrutável; um desenho do universo não existe ou, caso exista, cabe a Deus conhecê-lo e não ao homem; o “racionalismo” de Voltaire é uma atitude ética e voluntarista que toma forma contra um fundo teológico incomensurável para o homem como aquele de Pascal.
Se esse carrossel de desastres pode ser contemplado com um sorriso nos lábios é porque a vida humana é rápida e limitada; existe sempre alguém que se pode considerar mais infeliz que nós; e quem por acaso não tivesse nada de que se lamentar, dispusesse de tudo o que a vida pode oferecer de bom, terminaria como o senhor Pococurante, senador veneziano, que está sempre olhando para os outros com soberba, encontrando defeitos onde deveria achar apenas motivos de satisfação e de admiração. A verdadeira personagem negativa do livro é ele, o aborrecido Pococurante; no fundo, Pangloss e Martin, mesmo dando respostas insensatas às perguntas, se debatem nos tormentos e riscos que constituem a substância da vida.
A submissa veia de sabedoria que aflora no livro por meio de porta-vozes marginais como o anabatista Jacques, o velho inca, e aquele savant parisiense que se parece muito com o autor, se declara por fim pela boca do dervixe na famosa moral do “cultivar nosso jardim”. Moral certamente muito redutiva: que deve ser entendida antes de mais nada em todo o seu significado intelectual antimetafísico — você não deve colocar-se outros problemas a não ser aqueles que pode resolver com sua aplicação prática direta. E no seu significado social: primeira afirmação do trabalho como substância de todo valor. Hoje, a exortação “il faut cultiver notre jardin” soa a nossos ouvidos carregada de conotações egoístas e burguesas: ainda mais dissonante se confrontada com nossas preocupações e angústias. Não é casual que ela seja enunciada na última página, já quase fora desse livro em que o trabalho só aparece como danação e em que os jardins são regularmente devastados: também é uma utopia, não menos que o reino dos incas; a voz da “razão” no Candide é toda utópica. Mas não é um acaso que seja a frase do Candide que teve mais sucesso, a ponto de se tornar proverbial. Não devemos esquecer a radical mudança epistemológica e ética que essa enunciação encerrava (estamos em 1759, exatamente trinta anos antes da tomada da Bastilha): o homem julgado não mais em sua relação com um bem e um mal transcendentes mas naquele pouco ou tanto que pode fazer. E daí derivam tanto uma moral do trabalho estritamente “produtivista”, no sentido capitalista da palavra, quanto uma moral do empenho prático-responsável-concreto, sem o qual não existem problemas gerais que possam ser resolvidos. Em suma, as verdadeiras opções do homem de hoje partem dali.

Italo Calvino, in Por que ler os clássicos

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