sexta-feira, 6 de março de 2020

Os homens que esperaram o foco azulado

Fotograma do filme Cinema Paradiso

A porteira ouve a primeira música. Abre as cortinas vermelhas e se coloca de pé, à frente da porta. Às sete horas, pontual, o casal Andreato entrega os ingressos, cumprimentando a porteira delicadamente. O bastante para se mostrarem educados, mas suficiente para ela saber que não passa de cumprimento, sem intimidade maior. Nos dias normais, há uma distância de tempo entre o casal Andreato e os outros espectadores. Aos domingos, não. A fila se estende. Todos ansiosos, olhando a bilheteira que funciona lenta, com medo de errar o troco. No domingo, não há tempo para cumprimentos e sorrisos. As pessoas jogam o dinheiro, apanham os ingressos, saem apressadas para garantir lugar. Sentam-se sempre nas mesmas poltronas. Irritam-se quando encontram alguma pessoa já sentada e olham. Para ver se é da cidade ou se se trata de algum estranho não informado dos hábitos locais.
Os casais velhos chegam cedo. Geralmente são pessoas sozinhas, os filhos já deixaram a casa, formados ou casados. Jantam cedo, a louça a ser lavada é pouca, logo a mulher está pronta. A vantagem é comprar rapidamente o ingresso, evitando a aglomeração que se forma minutos antes da fila começar. Estes casais chegam vestidos corretamente, o homem de terno e gravata, a mulher em tailleur preto ou cinza, joias discretas, colar de pérolas, brincos. Constituem a maior parte da plateia. Estão acostumados com o cinema há dezenas de anos. Não apenas com o cinema, mas com a sala, reformada de tempos em tempos. O cheiro dos perfumes, usados por elas, impregnou o ar, de tal modo que todos se sentem seguros dentro do clima familiar e conhecido.
A sala se enche. Homens com jornal debaixo do braço; casais de namorados; noivos de braços; moços sozinhos sobem e descem em busca de moças sozinhas com lugar vago ao lado; moças com os pais, ansiosas pelos flertes; solteironas em grupos; velhos resmungando porque a agitação é grande. Pessoas entram, pessoas sentam, pessoas perguntam: esse lugar está vago? Pessoas vão ao banheiro, pessoas entram pelas filas batendo nos joelhos dos outros e desmanchando cabelos que custaram horas, à tarde.
O baleiro sobe e desce. Faltam cinco minutos para o filme começar, há expectativa, os lugares tomados, muita gente vai ficar em pé. As mulheres se perguntam: terão visto meu vestido novo? O sapato, o colar, a blusa, a saia, a bota? As meninas indagam se terão sido vistas ao lado do namorado novo, do mais bonito da cidade, o mais elegante, e rico, e até o inteligente, o mais promissor, o político.
Agora, as pessoas olham o relógio para se certificar que se passaram cinco minutos além do horário e imaginam que a gerência talvez esteja esperando o povo se acomodar, para começar. Outros lembram que o povo se aquieta com os acordes da Suíte Quebra-Nozes, de Tchaikovsky. Todos que estão em pé se precipitam, porque sabem que as luzes se apagarão no meio da música. O gongo toca em seguida, as cortinas se abrem lentamente, as luzes em volta da tela mudam de cor e se apagam no instante exato em que a Suíte termina e o foco azulado surge da cabine, enchendo a tela de imagens, mas a Suíte não toca, o baleiro sobe para encher a cesta, uma nova consulta aos relógios mostra que se passaram quinze minutos, os mais velhos ficam olhando para trás, para a janela da cabine, como se o olhar de reprovação pudesse por si levar o operador a começar a sessão.
Uns se levantam e vão perguntar à porteira, e ela se limita a responder que nada pode fazer, a sua função é recolher ingressos. Que consultem o gerente. E onde está o gerente? O gerente está no escritório, mas o escritório é inacessível ao público, para se chegar a ele é preciso sair, dar a volta pela escada do balcão. Mas quem sai não pode entrar de novo, a bilheteira não tem senhas para entregar. Então, como fica? Tem que esperar.
Às oito, passada meia hora, mesmo os mais jovens se entreolham: vai ver quebrou a máquina, ou não receberam o filme. Como se isso fosse piada, riem. Riem alto, porque sabem que incomodam os velhos. Os velhos pedem silêncio, a sessão está atrasada e ainda tem baderna. Oito e dez, há insatisfação geral, assim não pode, daqui a pouco a sessão começa com uma hora de atraso, vamos chegar tarde ao clube. Batem palmas na frente, gritam no fundo, o banheiro está repleto de fumantes.
Os radicais se levantam, dispostos a atitude extremada. Surpresa: a porteira deixou seu posto. Desapareceu, a porta está fechada. Trancada por fora. Indignação. Vamos quebrar tudo. “Quebrar o quê?”, pergunta um homem. Quebrar portas, poltronas, o que estiver pela frente. O homem que tinha perguntado agarrou o braço do homem que pretendia quebrar. “Me acompanhe, por favor.” Saíram por uma porta lateral, os outros nem perceberam. O pequeno hall de entrada está cheio, os corredores lotados, as pessoas continuam a se levantar e a se empurrar. Querem sair, se comprimem, xingam, não se entendem. E não compreendem. As mulheres estão sentadas, “este é um assunto para homens”.
Então, sem que se saiba como entraram, desconfia-se até que estavam na sala, misturados ao povo, os vigilantes da segurança começaram a gritar “Voltem aos seus lugares”. A princípio, as pessoas não escutam, tão aturdidas estão. Os vigilantes passaram a empurrar, sem violência, mas agressivamente, com decisão, os homens de volta às poltronas. São muitos os vigilantes e parecem dispostos a uma ação maior. De modo que os pacíficos espectadores, espantadíssimos, se atropelam, ansiosos para dizer às suas companheiras que não conseguem saber o que está acontecendo. Aproveitam para protestar contra a violência. Afinal, esta é uma tranquila sessão de domingo e os vigilantes deviam estar é contra o dono do cinema que não inicia a sessão. E não agredir espectadores, estes pagaram para ver o filme na hora certa.
São nove e quinze e o murmúrio cresce: não vai ter sessão, o melhor é devolver o dinheiro. Alguns ameaçam levantar, os vigilantes surgem, gritando para que sentem. Ninguém pode transitar pelos corredores, nem ir ao banheiro. O baleiro foi convidado a se encostar num canto. Protestou, disse que estava trabalhando, não era espectador. Não adiantou. Como é, vai começar ou não vai?
Nove e meia, hora da segunda sessão. Passam a gritar, até que um vigilante vai à frente e pede silêncio, a sessão vai começar, que todos tenham paciência, colaborem. “Não quero mais ficar”, diz um velho, “estou com sono e vou-me embora”. “Lamento muito”, diz o vigilante. “Ninguém vai deixar os lugares. Se todos se forem, o cinema fica vazio; e se vai fazer a sessão para quem? Sentem e aguardem, que vai iniciar”.
Dez horas e a Suíte Quebra-Nozes não toca. Isto é, começou, tocou alguns acordes, foi retirada. E às dez e meia, já com gente cochilando, as luzes foram diminuídas, veio um murmúrio de contentamento. Mas ficou nisso, a sala na semipenumbra, as pessoas continuando a querer ir embora, sendo desaconselhadas.
Às onze, a plateia fervia quietamente de irritação. “Como é”, “não é possível”, “precisamos reclamar a alguém”, “onde está o gerente”, “o dono do cinema, o prefeito, o chefe de polícia?”. “Olhem lá, tem mulher passando mal, o ar é viciado, sufoca”. “Vamos nos organizar, e tirar as mulheres e os velhos.” Um grupo de homens se levantou, decidido, e se formou no meio do corredor, disposto a percorrer as filas, vendo se tudo estava bem. Três vigilantes se aproximaram. “Que sessão é esta que não começa nunca”, indagaram os homens organizadores. “Estamos nos preparando com cuidado a fim de que vocês tenham uma bela sessão, com um bonito filme, ao agrado de todos. Se vocês se precipitam assim, a sessão demora mais, ou pode não começar nunca. Vão se sentar, senão temos que tomar providências desagradáveis.” Os homens se sentaram, menos um, que gritou: “Pois que tomem providências.” Foi retirado pela porta lateral, discretamente, como alguém que vai fazer xixi.
Às onze e trinta e cinco, todos bateram os pés e de nada adiantava pedir silêncio. Tocaram a Suíte Quebra-Nozes e houve alívio geral, por pouco tempo, porque todos entenderam que era um truque. A fim de que eles pensassem que o filme ia começar.
Passaram dez minutos e a plateia voltou a gritar, a bater pés e palmas, a assobiar.
E então, apagaram-se todas as luzes. Houve um momento de hesitação, e fósforos e isqueiros começaram a ser acesos, uma tênue iluminação dominou a sala.
As pessoas se agitaram, se levantaram, sentavam ante os gritos dos vigilantes, prometiam que nunca mais viriam ao cinema, iriam apedrejar os vidros, rasgar os cartazes, roubar a bilheteria. Amontoaram-se todas no corredor, querendo sair, mas as portas continuavam fechadas.
A Suíte Quebra-Nozes tocou outra vez, o gongo bateu, a Suíte continuou tocando, o gongo batendo, as luzes em volta da tela mudavam de cor, só o foco azulado não saía da cabine de projeção, enchendo a tela com as imagens tão esperadas.
Ignácio de Loyola Brandão, in Cadeiras Proibidas

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