Tínhamos
feito diversas viagens à fazenda de meu avô. Naquela, a mais
importante, demoramos três meses — e a família ganhou um membro,
perdeu outro.
O
ganho foi representado por um menino chorão, que morreu cedo. Minha
mãe deitou-se na cama de lastro de couro cru, exilaram-me algumas
horas no bosque de catingueiras, à beira da lagoa. Quando voltei, o
pequeno estava nos cueiros, de figa no braço, defumado a alfazema, e
submetia-se às predições de Maria Melo. Tudo se normalizou: minha
mãe convalesceu, os capões que engordavam no cercadinho do oitão,
pegado ao jardim, morreram. A pessoa que desapareceu da família foi
Mocinha. Não sei bem se desapareceu da família, mas é certo que
nos deixou. Talvez não a julgassem parenta: as relações dela
conosco eram imprecisas. Antes de meu pai casar, Mocinha lhe fora
enviada por portas travessas, passara às mãos de tia Dona, viúva
pobre que vivia com ele e tinha duas filhas novas. Viera o casamento,
viera a mudança, tia e primas se haviam distanciado e Mocinha nos
acompanhara ao sertão.
Era
branca e forte, de olhos grandes, cabelos negros, tão bonita que
duvidei ser do meu sangue. Parece que não queriam tomar conhecimento
dela. Aferrolhavam-na em camarinha tenebrosa. Natural: sempre tivemos
camarinhas úmidas, tristes, seguras, fechadas, para as mulheres.
Sentava-se a uma canto da mesa, rezava, comia de cabeça baixa. O
constrangimento devia torturá-la, pois no quintal, na cozinha, no
alpendre, ria, cantava, entendia-se com Rosenda lavadeira. Do
corredor para a sala de visitas encolhia-se, reprimia expansões,
anulava-se.
Minha
mãe tratava-a quase cerimoniosamente. Às vezes embirrava com ela,
resmungava, largava muxoxos — e nós, viventes fracos, meninos e
moleques, observávamos apreensivos essas manifestações, de agouro
ruim. A Mocinha não chegavam dissabores. Era como estranha, hóspeda
permanente, embora se entretivesse em serviços leves: bordava palmas
e florinhas lentas em pedaços de morim estendidos em grades,
remendava camisas, endurecia saias brancas na goma anilada,
alisava-as a ferro numa tábua vestida em lençol, suspensa nos
encostos de duas cadeiras.
Isso
lhe bastava à necessidade de movimento. E as exigências do espírito
satisfaziam-se com missas, novenas, terços de maio, conversas na
prensa do copiar, leitura do romance longo, a história de Adélia e
D. Rufo. Na verdade Mocinha era meio analfabeta, mas a narrativa,
pisada e repisada, já não apresentava obstáculo; Adélia e D. Rufo
mostravam-se. As excelências de D. Bosco, expostas nos folhetos
amarelos dos Salesianos, é que se traduziam com esforço e
incerteza.
Ao
levantar-se e antes de encafuar-se no quarto sombrio, que tinha
apenas uma abertura, Mocinha se aproximava de meu pai, cochichava
rapidamente. Ele rosnava uma benção, afastava se carrancudo. Aquilo
era uni dever, dever tradicional que o lisonjeava e diminuía.
Provavelmente
a situação do negócio (gado a morrer, pano barato na prateleira)
não lhe permitia engendrar filhos em muitas barrigas, fortalecer-se
com o trabalho deles. Reprodutor mesquinho, sujeitava-se à moral
comum — e naquela bênção engrolada ao amanhecer e ao cair da
noite havia a confissão de que lhe faltava o direito de cobrir
muitas mulheres, gerar descendência numerosa.
Cobria
e gerava, mas devagar e com método. Era um patriarca refletido e
oblíquo, escriturava zeloso os seus escorregos sentimentais. Mocinha
não representava utilidade. Valor estimativo, de origem pecaminosa.
E meu pai tentava convencer os outros de que ela não existia.
Difícil.
A intrusa se encorpava e embelezava, alargava a roupa, namorava-se ao
espelho da sala. E do espelho saltou à janela, onde Miguel lhe foi
segredar ternuras ao lusco-fusco.
Miguel,
indivíduo importante, dos mais importantes do lugar, não podia
ligar-se decentemente a uma filha das ervas. A gente dele,
proprietária da casa de azulejos, motivo do meu assombro ao apear-me
na vila, estrilou. E meu pai estrilou também, considerável e cheio
de prosápias, orgulhando-se daquela preferência, mas rigoroso,
intransigente. Fecharam-se e fiscalizaram-se as venezianas;
estorvaram-se as relações com o exterior; a menina, elevada à
categoria de pessoa, ouviu grilos, censuras ásperas, e as duas
bênçãos diárias nunca mais lhe foram concedidas.
Pensei
mais tarde nas razões que levaram meu pai a repelir um sujeito de
boa raça, influente na política local. Talvez desejasse evitar
falatórios, que lhe causavam medo. Talvez receasse assumir
responsabilidade, ir até o fim do caminho. Nunca se comportava
assim. Ordinariamente parava, ocupado com minúcias, e no jogo do
solo, o seu divertimento no inverno, passava demais, enchia o pires
de tentos, só se arriscava quando os trunfos lhe choviam nas mãos.
Temia vantagens, desconfiava dos lucros rápidos e fáceis, que
exigem capital e coragem — e após o desastre na fazenda, bichos
famintos, morrinha, destruição, tornara-se precavido em excesso.
Realmente era ambicioso, mas a sua ambição voava curto. Leve amor
às aventuras e riscos, aventuras e riscos medianos, o induzia a
vender fiado. Tomava todas as precauções, estudava o freguês pelo
direito e pelo avesso, duplicava o preço da mercadoria, e se a
fatura se elevava um pouco, suava numa angústia verdadeira. Findos
os noventa dias do prazo, esfolava o devedor com juro de dois por
cento ao mês. É possível que, nesse caso afetivo, ele haja,
adotando os seus hábitos comerciais, procedido economicamente. Se
acolhesse as boas intenções de Miguel, precisaria mandar fazer
enxoval, comprar malas, realizar uma festa com anúncio em banhos,
cerimônia de igreja, música, jantar para dezenas de convidados.
Viriam Padre João Inácio, o Comendador Badega, Seu Félix Cursino,
Teotoninho Sabiá, Filipe Benício. Teríamos discursos, teríamos
dança. Esses desarranjos, além de caros, não estavam na índole de
meu pai. Desorganizar-lhe-iam a vida. A nossa mesa era
exígua, ladeada de bancou duros. Com os anos, aumentou, recebeu
hóspedes numerosos, mas naquele tempo em geral se acomodavam em
redor dela seis ou oito pessoas. E na sala de visitas, retirados o
marquesão e as cadeiras, poucos pares conseguiriam mexer-se. Meu pai
detestava a dança, formalidade necessária em bodas. Certamente se
lembrava de culpas nascidas na valsa e na quadrilha — e daí o
horror. Havia na existência dele, no escuro do passado, uma
Deolinda, a que minha mãe se referia com inveja.
Deolinda
surgira escandalosamente na quadrilha e na valsa, traíra o marido —
e, em consequência, meu pai reprovava com energia o exercício
abominável. Minha mãe esqueceu a reprovação e cometeu uma falta:
dançou com um primo barbado, em casa de meu avô. Arrependeu-se,
achegou-me ao peito magro, pediu-me que não revelasse a ninguém o
desgraçado sucesso. Comprometi-me. Quando nos desaviemos, ameacei-a.
Não ligou importância às ameaças: puxou-me as orelhas. Senti a
perfídia, mas fui generoso, guardei o segredo. E a paz do casal não
se alterou.
Deolinda
se esfumara. E, na frieza, Mocinha bordava palmas e flores, engomava
saias, ouvia missas. No romance extenso e amarfanhado travara
conhecimento com D. Rufo e Adélia. E transformava Miguel num
virtuoso galã.
O
nosso governo totalitário admitia Adélia e D. Rufo, mas não
admitia Miguel.
Não
tentava suprimir a ficção contida nos volumes sujos. Consentia a
leitura, reconhecendo a inutilidade dela fora do artigo político e
dos lançamentos do borrador. Mas, deixando à menina o direito de
pensar em tipos de histórias, decidiu conservá-la na virgindade.
Obrigava-se a alimentá-la por largos anos, vesti-la, calçá-la.
Isto representava uma despesa pingada, quase insensível. Gastos
extraordinários — lençóis, fronhas, camisas, o vestido branco,
véu, grinalda, fita, renda, muita comida, muita bebida, música etc.
— perturbar-lhe-iam as finanças. Tia Dona arranjara um casamento
infeliz, enviuvara, tuberculosa, com duas filhas. Tia Josefa
envelhecia longe, solteira. Tia Jovina envelhecia também, e ainda
envelhece, coxa e triste, em companhia da última de minhas irmãs
naturais. Meu pai distribuía migalhas a essas pobres. Continuaria a
sustentar Mocinha, contanto que ela procedesse direito, vivesse
calma, na gaiola e na moral.
Fervia
nela, porém, o sangue materno, a solidão afligia-a. E Miguel não
queria ser figura de romance. Entenderam-se, apesar da proibição,
inflamaram-se, cambiaram acenos e bilhetes. E tudo se resolveu.
A
gente de meu avô se reunia na sala, em torno da mesa que tinha nas
gavetas bolas de cera e macetes de capar boi, e em cima, na glória,
litografias e esculturas, Jesus e a Virgem, santos e santas. Minha
mãe embalava o filho novo na rede, junto à cama de lastro de couro
cru, à luz da lamparina que esmorecia no copo. Maria Melo puxava a
ladainha. O patrão, o velho cabreiro Ciríaco, diversos apaniguados,
abatiam-se rezando, os joelhos sobre chapéus de couro. A patroa,
caboclas da vizinhança, as negras da cozinha, sucumbidas na esteira,
esmurravam o peito e cantavam. Os meus olhos doídos e purulentos
escondiam-se num pano preto, lacrimejavam, enxergavam a custo vultos
indecisos, as labaredas trêmulas das velas. Fragmentos do exterior
confuso entravam-me nos ouvidos. Os armadores da rede calaram-se, as
vozes enfraqueceram, a ladainha findou, as mulheres ergueram-se num
frufru amarrotado, alpercatas e chinelos arrastaram-se, o clarão do
oratório morreu, as paredes sem reboco enegreceram mais.
Súbito,
um rebuliço: Mocinha estava sumida. Procuraram-na por todos os
cantos; as tochas dos candeeiros do querosene iluminaram os quartos,
o depósito do algodão, o quintal, o bosque de catingueiras, o
pátio; os gritos de meu avô ecoaram nas ribanceiras do Ipanema. Não
se descobriu Mocinha. lia piada por vários cavaleiros, num simulacro
de força e conquista, foi, em conformidade com a praxe, acolhida e
vigiada por senhoras idosas. Nesse asilo nenhum mal lhe chegaria, mas
estabeleceu-se que moça fugida é moça avariada.
Para
sanar a avaria absurda, medianeiros verbosos diligenciaram um
conchavo entre as duas famílias. Houve as conversações usuais e o
acordo não se realizou. Meu pai conservou-se intransigente e digno.
Ao regressar à vila, achei-o com a barba crescida, afirmando que a
ingrata significava para ele mão cortada. Frase esquisita.
Efetivamente nunca a pequena lhe servira de mão. Meu pai era assim:
gostava de expressões enfáticas e não reparava no sentido das
palavras. Mão cortada. Essa amputação o eximia de banhos, véu,
grinalda, renda, fita, lençóis, fronhas, jantar. Mocinha casou
silenciosamente, sem música e sem dança, na missa das sete. E teve
alguns anos de equilíbrio e felicidade.
Tentou
reconciliar-se conosco. Enquanto meu pai jogava solo na loja, entrava
pelo portão do quintal, ficava uma hora falando baixo com minha mãe,
na prensa de farinha do alpendre.
Depois
veio a mudança e nos distanciamos. Miguel abandonou-a, ligou-se a
outra, no civil. Se não me engano, ligou-se também a uma índia, na
lei dos índios, para as bandas do Amazonas. Mocinha desapareceu e
não deixou vestígio.
Graciliano
Ramos, in Infância
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