domingo, 8 de março de 2020

A perna e o braço (o Pequod de Nantucket encontra o Samuel Enderby de Londres)

Ó, de bordo! Viste a Baleia Branca?”
Ahab gritou, saudando mais uma vez um navio com as cores da Inglaterra, que passava à ré. Com a trombeta na boca, o velho estava de pé no seu bote içado no tombadilho, com a sua perna de marfim à mostra para o capitão estrangeiro, que estava apoiado indolentemente na proa do seu bote. Era um homem de pele bronzeada, robusto, jovial e de boa aparência, por volta dos sessenta anos; vestia uma jaqueta comprida de tecido azul-marinho que o envolvia como uma grinalda; uma manga vazia do seu casaco ondulava atrás dele como a manga bordada de um capote de hussardo.
Viste a Baleia Branca?”
Vê isso aqui?”, disse o outro, retirando das dobras que o escondiam, agitou um braço branco de osso de cachalote, preso numa ponta de madeira como um ramalhete.
Homens para o meu bote!”, gritou Ahab, impetuoso, jogando os remos que estavam perto dele. “Preparai-vos para descer!”
Em menos de um minuto, sem deixar a sua pequena embarcação, ele e a tripulação foram lançados à água, e logo estavam junto ao estrangeiro. Mas naquele momento apresentou-se uma dificuldade curiosa. Naquela grande excitação, Ahab esqueceu-se de que nunca mais tinha pisado a bordo de outro navio que não fosse o seu, desde que tinha perdido a perna, e isso por causa de um dispositivo mecânico engenhoso do Pequod, que não poderia ser armado ou colocado em nenhum outro navio de uma hora para a outra. Ora, não é tarefa muito fácil para ninguém – exceto para os baleeiros – subir pelo costado de um navio de um bote em mar aberto; pois, de início, as ondas grandes levantam o bote até a amurada, para em seguida deixá-lo cair antes de alcançar a carlinga. Assim, destituído de uma perna, e não tendo o navio estrangeiro nenhum tipo de invenção que o favorecesse, mais uma vez, Ahab viu-se vergonhosamente reduzido ao estado de um homem da terra desajeitado, olhando sem esperança para as alturas incertas e movediças que jamais conseguiria alcançar.
Talvez já se tenha dito antes que sempre que algum revés menor o acometia, que tinha alguma relação com o seu infortúnio, isso quase sempre irritava e exasperava Ahab. Nesse caso, essa sensação intensificava-se ao ver dois oficiais do navio estrangeiro, debruçados na amurada, junto a uma escada perpendicular de paus firmes, jogando um par de cordas decoradas com bom gosto na sua direção; pois, de início, pareciam não acreditar que um homem de uma perna só pudesse estar tão aleijado que não conseguisse usar o corrimão. Mas o constrangimento durou apenas um minuto, pois o capitão estrangeiro, ao perceber o estado das coisas, gritou: “Já vi! Já vi! Basta de erguer aí! Pulai, rapazes, e suspendei a talha”.
Quis a sorte que, um ou dois dias antes, tivessem tido uma baleia ao costado, e as talhas grandes ainda estavam no alto, com o gancho pesado da gordura, agora limpo e seco, ainda preso à extremidade. Foi baixado depressa para Ahab, que de pronto compreendeu tudo, apoiou a sua única perna na curva do gancho (era como se sentar na ponta de uma âncora, ou na forquilha de uma macieira), deu o sinal, agarrou-se com firmeza, e, ao mesmo tempo, ajudou a levantar o seu próprio peso puxando, com uma mão após a outra, uma das partes corrediças da talha. Logo foi içado com cuidado para o interior da amurada alta e colocado com delicadeza no alto do cabrestante. Com o seu braço de marfim cordialmente estendido para dar as boas-vindas, o outro capitão aproximou-se, e Ahab estirou a sua perna de marfim de modo a cruzá-la com o braço de marfim (como duas nadadeiras de peixes-espadas) e exclamou à maneira de uma morsa: “É isso aí, é isso mesmo, meu caro! Toquemos os ossos! – um braço e uma perna! –, um braço que nunca vai encolher, e uma perna que nunca vai correr. Quando viste a Baleia Branca? – há quanto tempo?”
A Baleia Branca”, disse o inglês, apontando o seu braço de marfim para o leste, e olhando pesaroso por ele, como se fosse um telescópio, “Eu a vi na linha do Equador, na última temporada”.
E ela arrancou o teu braço, não é?”, perguntou Ahab, descendo do cabrestante e apoiando-se no ombro do inglês, enquanto falava.
Sim! Foi a causa disto, pelo menos; dessa perna também?”
Conta-me os pormenores”, disse Ahab; “como aconteceu?”
Era a primeira vez na vida que eu navegava na linha do Equador”, começou o inglês. “Nada sabia sobre a Baleia Branca naquela época. Pois bem, certo dia, descemos os botes para ir atrás de um bando de quatro ou cinco baleias, com o meu bote preso a uma delas; era um autêntico cavalo de circo, girava como um moinho, tantas vezes e de tal modo que a tripulação do meu bote só conseguiu equilibrá-lo sentando-se na borda do bote na popa. De repente, do fundo do mar, irrompeu uma baleia imensa, com a cabeça e a corcova brancas como leite, cobertas de pés-de-galinha e rugas.”
Era ele, era ele!”, gritou Ahab, soltando de repente a respiração presa.
E arpões cravados próximos à nadadeira a estibordo.”
Sim, sim – eram meus – ‘meus ferros”, gritou Ahab, exultante, “mas prossiga!”
Se deixares”, disse o inglês, de bom humor. “Pois bem, esse bisavô velhinho, com a cabeça e a corcova brancas, coberto de espuma, precipitou-se contra o bote e furioso abocanhou a minha corda presa.”
É isso, estou vendo! – queria quebrá-la, libertar o peixe preso – um dos seus velhos ardis – eu o conheço.”
Não sei como foi exatamente”, continuou o comandante maneta, “mas ao morder a corda esta se enredou nos seus dentes e ali ficou presa; não o sabíamos então; de modo que quando puxamos a corda em seguida, cataplum!, saltamos direto para a sua corcova! – enquanto a outra baleia fugia para sotavento, com a cauda para cima. Ao perceber em que pé as coisas estavam, e como a enorme baleia era soberba – a maior e mais soberba que já vi em toda a minha vida, senhor –, resolvi capturá-la, apesar da raiva furibunda que ela parecia sentir. E pensando que a corda pudesse se soltar por acaso, ou que o dente ao qual estava presa pudesse cair (pois tenho uma tripulação diabólica quando se trata de puxar a corda); pensando nisso tudo, pulei para o bote do meu primeiro oficial – o sr. Mounttop aqui (a propósito, Capitão – Mounttop, Mounttop – Capitão) –, como dizia, pulei para o bote de Mounttop, que, veja bem, estava encostado ao meu naquele momento, agarrei o primeiro arpão, e atirei naquele bisavô velhinho. Mas, misericórdia, senhor – no mesmo instante, em um segundo, fiquei cego como um morcego – dos dois olhos – envoltos na névoa e nas trevas de uma espuma negra – a cauda da baleia apareceu ali, perpendicular no ar, como um campanário de mármore. De nada adiantaria recuar naquele momento; mas enquanto eu tateava ao meio-dia, com um sol que cegava como as jóias da coroa; enquanto procurava o segundo arpão, para atirá-lo – a cauda desabou, como a torre de Lima, quebrando o meu bote ao meio, estilhaçando as duas metades; a cauda, primeiro, e depois a corcova branca, ele recuou, passando pelos destroços como se fossem aparas. Nós todos nadamos. Para escapar dos seus golpes terríveis, agarrei o cabo do meu arpão e por um momento fiquei preso a ele como um peixinho. Mas uma onda ao quebrar jogou-me para fora dali, e no mesmo instante o peixe, dando um salto para a frente, mergulhou de súbito, e a farpa do segundo arpão maldito estando perto de mim, atingiu-me aqui –” (colocou sua mão logo abaixo do ombro); “sim, atingiu-me bem aqui e levou-me para baixo, para as chamas do inferno, segundo parecia, quando – quando, de repente, graças ao bom Deus, a farpa abriu caminho pela carne – por toda a extensão do meu braço – saindo perto do pulso, e eu subi para a superfície – e o cavalheiro aqui irá lhe contar o resto (a propósito, capitão, Dr. Bunger, o cirurgião do navio; Bunger, meu jovem, o capitão). Pois bem, Bunger, meu jovem, conta a tua parte.”
O profissional, apontado com tanta familiaridade, tinha estado o tempo todo perto deles, sem nada de muito especial que indicasse a sua distinção a bordo. Tinha o rosto bem redondo, mas pacato, vestia uma túnica ou camisa de lã azul desbotada e calças com remendos; até então, tinha dividido a sua atenção entre uma escápula que trazia numa mão e uma caixa de remédios que trazia na outra, lançando vez ou outra um olhar crítico aos membros de marfim dos dois capitães aleijados. Mas, quando o seu superior o apresentou a Ahab, curvou-se educado e mostrou-se disposto a obedecer às ordens do capitão.
Foi um ferimento deveras horrível”, começou o cirurgião do baleeiro, “e aceitando o meu conselho o capitão Boomer conduziu o nosso velho Sammy –”
Samuel Enderby é o nome do meu navio”, interrompeu o capitão maneta, dirigindo-se a Ahab; “continue meu jovem.”
Conduziu o nosso velho Sammy para o norte, para sair do calor ardente da linha do Equador. Mas de nada adiantou – fiz tudo o que foi possível; cuidei dele por noites a fio; fui muito severo com a dieta –”
Oh, muito severo!”, ecoou o paciente; depois, de súbito, mudou de voz, “bebia toddy de rum quente comigo todas as noites, até que não sabia mais onde estava colocando as ataduras; mandava-me para a cama meio bêbado, por volta das três horas da madrugada. Oh, astros! Cuidou de mim mesmo e foi muito severo com a minha dieta. Oh, o doutor Bunger é um grande gajeiro e muito severo com a dieta. (Bunger, seu cachorro, podes rir! Por que não ris? Tu sabes que és um velhaco de primeira.) Mas continua, meu jovem, prefiro ser morto por ti a ser mantido vivo por qualquer outro homem.”
Deves ter percebido, respeitável senhor”, disse Bunger, sem se perturbar, com o seu ar devoto, curvando-se um pouco para Ahab, “que o meu capitão gosta de pilhérias, às vezes; inventa várias coisas engenhosas desse tipo para nós. Mas posso dizer – en passant, como diriam os franceses – que eu mesmo – isto é, Jack Bunger, outrora membro do venerável clero, sou um homem totalmente abstêmio, nunca bebo –”
Água!”, gritou o capitão; “nunca bebe água, pois lhe provoca ataques; a água pura lhe causa hidrofobia; mas prossiga – prossiga com a história do braço.”
Sim, talvez seja melhor”, disse o cirurgião, indiferente. “Eu ia dizendo, senhor, antes que o capitão Boomer interrompesse com pilhérias, que apesar dos meus esforços mais árduos o ferimento piorou muito; a verdade é que era um dos ferimentos mais horripilantes que um cirurgião jamais viu; tinha mais do que dois pés e várias polegadas de comprimento. Medi-o com a sonda. Em suma, começou a ficar preto; eu sabia o que ameaçava e amputei-o. Mas não tinha um braço de marfim à mão no navio; aquela coisa é contra todas as regras”, apontando para o braço com a escápula, “aquilo é obra do capitão, não minha; ordenou ao carpinteiro que fizesse; creio que tinha aquele martelo ali para pôr na ponta, para bater na cabeça de alguém, como certa vez tentou fazer comigo. Por vezes tem uns ataques infernais. Vês essa incisão, senhor?”, tirando o chapéu, puxou o cabelo para o lado, para mostrar uma cavidade com a forma de uma tigela na cabeça, mas que não tinha nenhuma cicatriz, nem indício de ter sido um ferimento. “Pois bem, o capitão lhe contará como chegou aqui, ele sabe.”
Não, não sei”, disse o capitão, “mas a mãe dele sabe, é de nascença. Ah, seu moleque atrevido, seu – seu Bunger! Existirá um outro Bunger neste mundo das águas? Quando morreres, Bunger, serás colocado na salmoura, seu cachorro; tens que ser preservado para as gerações futuras, seu velhaco.”
O que aconteceu com a Baleia Branca?”, gritou Ahab, que até então ficara escutando impaciente a esse bate-boca dos dois Ingleses.
Oh!”, exclamou o capitão maneta, “oh, sim! Pois bem, depois de mergulhar, não a vimos por algum tempo; de fato, como disse antes, não sabia então qual era a baleia que tinha me pregado tal peça, até que um certo tempo depois, ao voltarmos à linha do Equador, ouvimos falar sobre Moby Dick – como é chamado por certas pessoas – e então soube quem era.”
Voltaste a cruzar com ele?”
Duas vezes”.
Mas não conseguiste prendê-lo?”
Nem tentei: não basta um membro? O que faria sem esse outro braço? Acho que Moby Dick prefere engolir a mastigar.”
Pois bem”, interrompeu Bunger, “dê-lhe então o seu braço esquerdo como isca para conseguir o direito. Sabeis, senhores”, curvando-se com seriedade e com cálculo diante de cada um dos capitães, “sabeis, cavalheiros, que os órgãos digestivos da baleia são construídos de modo tão inescrutável pela Providência Divina que é quase impossível para ela digerir por completo o braço de um homem? Ela sabe disso também. Por isso, aquilo que se acredita ser a maldade da Baleia Branca é apenas falta de jeito. Pois ela não tem nunca a intenção de engolir um membro, quer apenas aterrorizar com ataques simulados. Mas, por vezes, ela é como o velho trapaceiro, meu paciente antigo do Ceilão, que ao fazer de conta que engolia canivetes certa vez engoliu um de verdade, que ali ficou por doze meses ou mais; quando lhe dei um vomitivo, ele o devolveu em forma de pequenos pregos, entenderam? Não era possível digerir o canivete e incorporá-lo ao sistema do seu corpo. Pois é, Capitão Boomer, se fores bem ligeiro e pretenderes arriscar um braço pelo privilégio de enterrar o outro com decência, nesse caso, o braço é seu; dá só mais uma chance para a baleia, é só isso.”
Não, muito agradecido, Bunger”, disse o Capitão Inglês, “ela pode ficar com o braço que tem, uma vez que não posso fazer nada, não a conhecia naquela ocasião; mas o outro, não! Chega de Baleias Brancas para mim; desci os botes atrás dela uma vez e fiquei satisfeito. Haveria muita glória em matá-la, sei disso; e tem o carregamento de um navio em espermacete de valor nela, mas escuta bem, é melhor deixá-la em paz; não pensas assim também, Capitão?”, olhando para a perna de marfim.
É, pois sim. Mas ele será perseguido, por causa disso tudo. Essa coisa maldita, que seria melhor deixar em paz, é a que me atrai mais. Ele é um ímã! Quanto tempo faz que o viste pela última vez? Que rumo seguia?”
Que Deus me abençoe e amaldiçoe o demônio”, gritou Bunger, andando curvado em volta de Ahab, farejando como um cão, de modo estranho; “o sangue desse homem – tragam um termômetro! – está em ponto de ebulição! – o seu pulso faz bater as tábuas! – senhor!”, e tirou um bisturi do bolso, aproximando-o do braço de Ahab.
Basta!”, rugiu Ahab, atirando-o contra a amurada. “Homens ao bote! Que rumo seguia?”
Meu Deus!”, gritou o Capitão Inglês, a quem a pergunta fora feita. “O que é que há? Acho que ia para o leste. O seu capitão está louco?”, sussurrou para Fedallah.
Mas Fedallah, levando um dedo aos lábios, passou pela amurada para pegar o remo principal do bote, e Ahab, virando a talha na sua direção, ordenou aos marinheiros do navio que o ajudassem a descer.
Num segundo, estava de pé na popa do bote, e os homens de Manila dobraram-se sobre os remos. Debalde o Capitão Inglês o saudou. De costas para o navio estrangeiro, com o rosto duro como uma pedra, Ahab manteve-se ereto de pé até chegar ao Pequod.
Herman Melville, in Moby Dick

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