terça-feira, 10 de março de 2020

A parede do mundo

Quando a mãe começou a deixar a caverna nas suas expedições de caça, o filhote já aprendera muito bem a lei que o proibia de se aproximar da entrada. Não só essa lei fora gravada à força e muitas vezes pela pata e o focinho da mãe, como o instinto do medo estava se desenvolvendo dentro dele. Nunca, na sua breve vida na caverna, ele enfrentara algo de que tivesse medo. Mas havia medo no filhote. Um medo que lhe chegava de antepassados remotos através de milhares e milhares de vidas. Era uma herança que recebera diretamente de Caolho e da loba; mas para eles, por sua vez, ela fora transmitida por todas as gerações de lobos que existiram antes. Medo! – esse legado da Floresta a que nenhum animal podia se furtar, nem trocar por comida.
Assim o filhote cinza conhecia o medo, embora não conhecesse o material de que ela era feito. Talvez o aceitasse como uma das restrições da vida. Pois já aprendera que havia essas restrições. Conhecera a fome, e, ao não poder saciar a sua fome, sentira a restrição. A obstrução dura da parede da caverna, a cutucada aguda do focinho da mãe, o golpe esmagador da sua pata, a fome não saciada de vários períodos de escassez tinham lhe incutido que nem tudo era liberdade no mundo, que para a vida havia limitações e restrições. Essas limitações e restrições eram leis. Obedecê-las era escapar da dor e contribuir para a felicidade.
Ele não pensava sobre a questão da maneira humana. Apenas classificava as coisas que doíam e as coisas que não doíam. E depois dessa classificação evitava as coisas que doíam, as restrições e os limites, para desfrutar as satisfações e remunerações da vida.
Foi assim que em obediência à lei estabelecida pela mãe, e em obediência à lei daquela sensação desconhecida e sem nome, o medo, mantinha-se afastado da boca da caverna. Continuava a ser para ele uma parede branca de luz. Quando a mãe se ausentava, ele dormia a maior parte do tempo, e durante os intervalos em que estava desperto ficava muito quieto, reprimindo os gritos choramingados que comichavam na sua garganta e procuravam se tornar barulho.
Certa vez, deitado, ouviu um som estranho na parede branca. Ele não sabia que era um carcaju ali fora, tremendo da sua ousadia e farejando cautelosamente o conteúdo da caverna. O filhote sabia apenas que a fungada era estranha, algo não classificado, portanto desconhecido e terrível – pois o desconhecido era um dos elementos principais para a formação do medo.
O pelo se eriçou no lombo do filhote cinza, mas eriçou-se em silêncio. Como sabia que devia se eriçar contra essa coisa que farejava? Isso não nascia de um conhecimento seu, mas era a expressão visível do medo que existia no seu interior, e para o qual, na sua vida, não havia nenhuma justificação. Mas o medo era acompanhado por outro instinto – o de se esconder. O filhote estava num frenesi de terror, mas continuou deitado sem fazer movimento ou som, congelado, petrificado, para todos os efeitos, morto. Voltando para casa, a mãe rosnou quando farejou a trilha do carcaju, entrou correndo na caverna e lambeu e afocinhou o filhote com uma veemência excessiva de afeto. E o filhote sentiu que de alguma maneira escapara de um grande perigo.
Mas havia outras forças operando no filhote, e a maior era o crescimento. O instinto e a lei exigiam dele obediência. Mas o crescimento exigia desobediência. A mãe e o medo o impeliam a manter-se longe da parede branca. Crescimento é vida, e a vida está sempre destinada a se aproximar da luz. Assim não havia como reprovar a maré da vida que se erguia dentro dele – erguendo-se a cada bocado de carne que engolia, a cada sopro que aspirava. Por fim, certo dia, o medo e a obediência foram varridos pelo ímpeto da vida, e o filhote se escarrapachou e esparramou na direção da entrada.
Ao contrário de qualquer outra parede que experimentara, essa parede parecia recuar diante da sua aproximação. Nenhuma superfície dura colidia com o pequeno focinho tenro que enfiava aos poucos no espaço à sua frente. A substância da parede parecia tão permeável e macia como a luz. E como a condição, a seus olhos, tinha a aparência da forma, ele entrou no que fora até então uma parede e banhou-se na substância que a compunha.
Era estonteante. Ele estava se espraiando através da solidez. E a luz tornava-se cada vez mais brilhante. O medo insistia em que ele voltasse, mas o crescimento o empurrava para frente. De repente viu-se na boca da caverna. A parede dentro da qual pensara estar recuou repentinamente diante dele até uma distância incomensurável. A luz tornara-se dolorosamente brilhante. Ele ficou ofuscado pelo brilho. Da mesma forma, ficou tonto com essa abrupta e tremenda extensão de espaço. Automaticamente, os olhos se ajustavam ao brilho, focando para fazer frente à distância aumentada dos objetos. A princípio, a parede saltara para fora da sua visão. Ele agora a via de novo, mas assumira um extraordinário distanciamento. Além disso, a sua aparência mudara. Era agora uma parede variegada, composta das árvores que orlavam a corrente, da montanha oposta que se elevava acima das árvores, e do céu que se elevava acima da montanha.
Um grande medo desceu sobre ele. Isso era mais um pouco do terrível desconhecido. Agachou-se na frente da caverna e fitou o mundo. Estava com muito medo. Porque era desconhecido, era hostil para ele. Portanto, os pelos ergueram-se ao longo do lombo e os lábios enrugaram-se fracamente na tentativa de um rosnado feroz e intimidador. Na sua insignificância e medo, ele desafiou e ameaçou todo o vasto mundo.
Nada aconteceu. Continuou a contemplar, e tal era o seu interesse que se esqueceu de rosnar. E também se esqueceu de ter medo. Por enquanto, o medo fora dispersado pelo crescimento, enquanto o crescimento assumira a guisa de curiosidade. Começou a notar os objetos próximos – uma porção aberta da corrente que lampejava ao sol, o pinheiro fulminado que ficava ao pé da encosta, e a própria encosta que subia até ele e cessava sessenta centímetros abaixo da beirada da caverna onde estava agachado.
Ora, o filhote cinza vivera toda a sua vida num chão plano. Nunca experimentara a dor de uma queda. Não sabia o que era uma queda. Por isso pisou audaciosamente no ar. As patas traseiras ainda estavam sobre a beirada da caverna, assim ele caiu para frente de cabeça para baixo. A terra lhe deu um golpe duro no focinho, o que o fez ganir. Depois ele começou a rolar encosta abaixo, sem parar. Estava aterrorizado. O desconhecido o apanhara por fim. Tinha se apoderado selvagemente do seu corpo e estava prestes a lhe infligir alguma dor terrível. O crescimento era agora dissipado pelo medo, e ele ganiu como qualquer filhotinho assustado.
O desconhecido o impelia para alguma dor assustadora que ele não conhecia, e o filhote gania incessantemente. Essa era uma proposição diferente daquela de se encolher de medo, enquanto o desconhecido passava furtivamente ao lado. Agora o desconhecido o agarrara com firmeza. O silêncio não adiantaria. Além disso, o que o convulsionava não era medo, mas terror.
Mas a encosta se tornou menos íngreme, e a sua base estava coberta de grama. Ali o filhote perdeu o impulso. Quando finalmente parou, deu um último ganido agonizante e depois um gemido longo e choramingado. E também, quase como algo a esperar, como se na sua vida já tivesse se limpado milhares de vezes, ele começou a se lamber para retirar o barro seco que o sujava.
Depois disso, sentou-se e contemplou a paisagem ao seu redor, como faria provavelmente o primeiro homem da terra a pousar em Marte. O filhote atravessara a parede do mundo, o desconhecido dele se apoderara, e ali estava ele sem machucados. Mas o primeiro homem sobre Marte teria experimentado menos estranhamento. Sem nenhum conhecimento anterior, sem nenhum aviso de que isso existia, ele se viu explorando um mundo totalmente novo.
Agora que o desconhecido terrível o deixara sair das suas garras, ele esqueceu que o desconhecido tinha terrores. Estava consciente apenas da curiosidade por todas as coisas ao seu redor. Examinou a grama embaixo do corpo, o arbusto musgoso de frutinhas um pouco além, e o tronco morto do pinheiro crestado que ficava na beirada de uma clareira entre as árvores. Um esquilo, correndo ao redor da base do tronco, deu de cara com o filhote e lhe causou um grande susto. Ele se encolheu e rosnou. Mas o esquilo também estava muito assustado. Subiu correndo pela árvore e, de um ponto seguro, rangeu os dentes selvagemente.
Isso encorajou o filhote e, apesar de o pica-pau que encontrou pouco depois ter lhe dado um susto, continuou confiante no seu caminho. Tal era a sua confiança que, quando um gaio impudentemente saltou ao seu encontro, ele procurou alcançá-lo com uma pata brincalhona. O resultado foi uma bicada aguda na ponta do focinho, que o levou a se encolher e ganir. O barulho que produziu foi demais para o gaio, que procurou segurança no voo.
Mas o filhote estava aprendendo. Sua pequena mente enevoada já tinha feito uma classificação inconsciente. Havia coisas vivas e coisas não vivas. Além disso, ele devia tomar cuidado com as coisas vivas. As coisas não vivas permaneciam num único lugar, mas as coisas vivas se moviam, e não havia como prever o que poderiam fazer. O que delas se esperava era o inesperado, e para isso ele devia estar preparado.
Ele se movia muito desajeitadamente. Tropeçava em varas e outros objetos. Um galho que ele pensava estar muito longe atingia o seu focinho ou arranhava as suas costelas no instante seguinte. Havia desigualdades na superfície. Às vezes ele exagerava o passo e batia com o focinho. Outras vezes o passo era muito curto, e ele machucava as patas. Depois havia os seixos e as pedras que se viravam sob as suas patas, quando neles pisava, e com isso ele aprendeu que nem todas as coisas não vivas tinham o mesmo estado de equilíbrio estável da sua caverna. Mais, que as pequenas coisas não vivas estavam mais sujeitas a caírem ou virarem do que as coisas grandes. Mas a cada infortúnio ele aprendia. Quanto mais caminhava, melhor ele caminhava. Estava se adaptando. Aprendia a calcular seus próprios movimentos musculares, a conhecer suas limitações físicas, a medir as distâncias entre os objetos e entre os objetos e ele próprio.
Teve a sorte do aprendiz. Nascido para ser um caçador de carne (embora não soubesse), encontrou por acaso bastante comida perto da boca da caverna na sua primeira incursão pelo mundo. Foi por andar às tontas que descobriu o ninho de perdiz astuciosamente oculto. Caiu dentro dele. Tentara caminhar ao longo do tronco de um pinheiro caído. A casca estragada cedeu sob suas patas, e com um ganido desesperado ele arremeteu pelo declive arredondado, atravessou e esmagou as folhas e galhos de um pequeno arbusto e ali, no meio do arbusto, sobre o chão, aterrissou entre sete filhotes de perdiz.
Eles fizeram muito barulho, e primeiro o lobinho se assustou. Depois percebeu que eram todos muito pequenos, e tornou-se mais ousado. Eles se moviam. Pôs a pata sobre um deles, e seus movimentos se aceleraram. Isso era uma fonte de diversão para ele. Farejou o filhotinho. Pegou-o na boca. Ele lutou e fez cócegas na sua língua. Ao mesmo tempo, isso lhe deu consciência de uma sensação de fome. As suas mandíbulas se fecharam. Houve um esmagar de ossos frágeis, e o sangue quente correu na sua boca. O gosto era bom. Era carne, a mesma carne que a mãe lhe dava, só que estava viva entre os seus dentes, e por isso era melhor. Assim ele comeu a perdiz. E só parou depois de devorar toda a ninhada. Então ele lambeu os beiços, assim como a mãe fazia, e começou a se arrastar para fora do arbusto.
Encontrou um redemoinho de penas. Ficou confuso e cego pelo ímpeto do turbilhão e pelo bater de asas zangadas. Escondeu a cabeça entre as patas e ganiu. Os golpes aumentaram. A mãe perdiz estava uma fúria. Foi então que ele se zangou. Levantou-se, rosnando, dando golpes com as patas. Afundou os dentes minúsculos numa das asas e deu muitos puxões com força. A perdiz lutou contra o inimigo, despejando golpes sobre ele com a asa livre. Era a sua primeira batalha. Ele estava eufórico. Esqueceu tudo sobre o desconhecido. Já não tinha medo de nada. Estava lutando, rasgando uma coisa viva que o golpeava. Além disso, essa coisa viva era carne. O desejo de matar estava dentro dele. Acabara de destruir coisas vivas pequenas. Agora destruiria uma coisa viva grande. Estava demasiado ocupado e feliz para saber que estava feliz. Estava eletrizado e exultante de uma maneira nova para ele, e mais intensa do que qualquer outra que já conhecera.
Continuou agarrado à asa e rosnou entre os dentes bem apertados. A perdiz o arrastou para fora do arbusto. Quando ela se virou e tentou puxá-lo de volta para o abrigo do arbusto, ele a afastou dali e empurrou-a para a clareira. E durante todo esse tempo ela fazia um grande alarido e golpeava com a asa, enquanto penas voavam como se fosse neve. A intensidade da sua excitação era tremenda. Todo o sangue guerreiro da sua raça fervia dentro dele e crescia em seu corpo. Isso era viver, embora ele não o soubesse. Estava tomando consciência do seu significado no mundo, fazendo aquilo para o qual fora criado – matar carne e batalhar para matá-la. Estava justificando a sua existência, mais do que isso a vida não podia fazer, pois a vida atinge o seu auge quando realiza plenamente aquilo para cuja realização foi equipada.
Depois de um tempo, a perdiz parou de lutar. Ele ainda a agarrava pela asa, e eles se deitaram no chão e olharam um para o outro. Ele tentou rosnar ameaçadoramente, ferozmente. Ela bicou o seu focinho, que a essa altura, depois das aventuras anteriores, estava machucado. Ele se encolheu, mas não a soltou. Ela o bicou mais de uma vez. Do ato de se encolher, ele passou a choramingar. Tentou se afastar da inimiga, esquecido do fato de que, por estar agarrado à perdiz, ele a arrastava atrás de si. Uma chuva de bicadas caiu sobre o focinho maltratado. A torrente de luta refluiu no seu interior e, soltando a presa, ele virou as costas e correu pela clareira numa retirada inglória.
Deitou-se para descansar no outro lado da clareira, perto dos arbustos, a língua pendendo para fora, o peito arquejando e ofegando, o focinho ainda doendo e fazendo com que continuasse a choramingar. Mas, enquanto estava ali deitado, sobreveio-lhe de repente a sensação de algo terrível prestes a acontecer. O desconhecido com todos os seus terrores se precipitou sobre ele, e o filhote se encolheu instintivamente para dentro do abrigo do arbusto. Enquanto se escondia, uma corrente de ar o abanou, e um grande corpo alado passou sinistro e silencioso. Um gavião, baixando do nada, por pouco não o apanhara.
Enquanto continuava sob o arbusto, recuperando-se do susto e espiando com medo, no outro lado da clareira a perdiz adulta saiu esvoaçando do ninho saqueado. Foi por causa da sua perda que ela não prestou atenção ao dardo alado do céu. Mas o filhote viu, e a visão passou a ser um aviso e uma lição para ele – a descida rápida do gavião, o curto roçar de seu corpo pouco acima do chão, o golpe de suas garras no corpo da perdiz, o grito de agonia e susto da perdiz, e a subida impetuosa do gavião no céu, carregando a perdiz nas suas patas.
O filhote demorou para sair de seu abrigo. Tinha aprendido muito. As coisas vivas eram carne. Eram boas de comer. Além disso, as coisas vivas, quando bastante grandes, podiam causar dor. Era melhor comer as coisas vivas pequenas, como os filhotes de perdiz, e deixar em paz as coisas vivas grandes, como a perdiz mãe. Ainda assim, ele sentiu uma pequena ponta de ambição, um desejo furtivo de ter outra batalha com aquela perdiz adulta – só que o gavião a levara embora. Talvez houvesse outras perdizes adultas. Ele veria.
Desceu por uma margem em declive até a corrente. Nunca vira água antes. O lugar para pôr o pé parecia bom. Não havia desigualdades na superfície. Pisou com audácia na corrente e caiu, gritando de medo, no abraço do desconhecido. Era frio, e ele arfou, respirando rapidamente. A água entrou com ímpeto nos seus pulmões, em vez do ar que sempre acompanhara o seu ato de respirar. A sufocação que experimentou foi como a agonia da morte. Para ele, significava a morte. Ele não tinha consciência da morte, mas, como todo animal da Floresta, possuía o instinto da morte. Para ele, era a maior das dores. Era a própria essência do desconhecido, a soma dos terrores do desconhecido, a catástrofe culminante e impensável que poderia lhe acontecer, sobre a qual nada sabia e sobre a qual tudo temia.
Veio à superfície, e o ar doce entrou veloz pela boca aberta. Não afundou de novo. Como se fosse um costume há muito estabelecido, deu golpes com todas as patas e começou a nadar. A margem mais próxima ficava a um metro de distância, mas ele subira à tona com as costas viradas para esse lado, e a primeira coisa em que seus olhos pousaram foi a margem oposta, para a qual imediatamente começou a nadar. A corrente era pequena, mas no pego alargava até uns seis metros.
No meio da passagem, o fluxo pegou o filhote e carregou-o correnteza abaixo. Viu-se apanhado na corredeira miniatura no fundo do pego. Ali eram poucas as chances de nadar. A água tranquila tornara-se de repente zangada. Ora ele estava embaixo da água, ora em cima da água. Mas sempre em movimento violento, ora sendo virado de cabeça para baixo ou em círculo, ora sendo esmagado contra uma pedra. E a cada pedra em que batia, ele gania. O seu progresso era uma série de ganidos, dos quais se poderia aduzir o número de pedras que encontrou pelo caminho.
Embaixo da corredeira havia um segundo pego, e ali, apanhado no redemoinho, ele foi gentilmente carregado para a margem e com igual gentileza depositado num leito de cascalho. Arrastou-se freneticamente para fora da água e deitou-se. Tinha aprendido algo mais sobre o mundo. A água não era viva. Ainda assim se movia. Mais, parecia tão sólida como a terra, mas não tinha nenhuma solidez. A sua conclusão era que as coisas nem sempre eram o que pareciam ser. O medo do desconhecido no filhote era uma desconfiança herdada, agora reforçada pela experiência. A partir de então, no que dizia respeito à natureza das coisas, ele nutriria uma desconfiança duradoura das aparências. Teria de aprender a realidade de uma coisa, antes de poder confiar na sua maneira de ser.
Uma outra aventura lhe estava destinada naquele dia. Lembrou-se de que havia no mundo alguém como a sua mãe. E então baixou nele o sentimento de que a queria mais do que a todo o resto do mundo. Não só o corpo estava cansado com as aventuras por que tinha passado, mas o pequeno cérebro também. Em todos os seus dias já vividos, nunca trabalhara tão duro como naquele dia. Além disso, estava com sono. Por isso, começou a procurar a caverna e a mãe, sentindo ao mesmo tempo um ataque esmagador de solidão e desamparo.
Estava se espraiando entre os arbustos, quando ouviu um grito agudo e intimidador. Um lampejo de amarelo surgiu diante de seus olhos. Viu uma doninha afastando-se aos saltos. Era uma coisa viva pequena, e ele não sentiu medo. Depois, diante dele, perto das suas patas, viu uma coisa viva extremamente pequena, apenas alguns centímetros de comprimento – uma doninha filhote, que, como ele próprio, tinha desobedientemente se aventurado pelo mundo. Tentou recuar diante dele. Ele a virou com a pata. Ela fez um barulho estranho e áspero. No mesmo instante, o lampejo amarelo reapareceu diante de seus olhos. Escutou mais uma vez o grito intimidador, e logo recebeu um golpe forte no lado do pescoço e sentiu os dentes agudos da doninha mãe cortarem a sua carne.
Enquanto gania e se arrastava para trás, viu a doninha mãe saltar sobre o filhotinho e desaparecer com ele no matagal vizinho. O corte dos dentes no seu pescoço ainda doía, mas os seus sentimentos estavam ainda mais machucados, e ele sentou-se e choramingou fracamente. Essa doninha mãe era tão pequena e selvagem! Ainda aprenderia que, apesar do tamanho e peso, a doninha era o mais feroz, vingativo e terrível de todos os matadores da Floresta. Mas parte desse conhecimento logo seria seu.
Ainda estava choramingando, quando a doninha mãe reapareceu. Ela não o atacou, agora que seu filhote estava a salvo. Aproximou-se com mais cautela, e o filhote teve plena oportunidade de observar o seu corpo magro e semelhante ao de uma cobra, a cabeça ereta, ansiosa e também lembrando a de uma cobra. O seu grito agudo e ameaçador fez com que o pelo se eriçasse no lombo do lobinho, e ele rosnou ameaçadoramente. A doninha chegava cada vez mais perto. Houve um salto, mais rápido do que a vista inexperiente do filhote, e o corpo amarelo e magro saiu por um momento de seu campo de visão. No momento seguinte, ela estava na sua garganta, os dentes enterrados nos seus pelos e carne.
A princípio ele rosnou e tentou lutar, mas era muito novo e aquele era apenas o seu primeiro dia no mundo, por isso o seu rosnado se transformou num choro, o seu combate numa luta para escapar. O doninha não o soltava. Continuava a prendê-lo, procurando atingir com os dentes a grande veia em que borbulhava o sangue do filhote. A doninha gostava de beber sangue, e sua preferência era sempre beber da garganta da própria vida.
O filhote cinza teria morrido, e não haveria história para escrever sobre ele, se a loba não tivesse surgido aos saltos pelos arbustos. A doninha soltou o filhote e jogou-se na garganta da loba; errou o alvo, mas conseguiu agarrar a mandíbula. A loba sacudiu a cabeça como o estalo de um chicote, desprendendo a doninha e atirando-a bem alto no ar. E, ainda no ar, as mandíbulas da loba fecharam-se sobre o corpo magro e amarelo, e a doninha conheceu a morte entre os dentes trituradores.
O filhote recebeu outro acesso de afeição da sua mãe. A alegria dela em encontrá-lo parecia ainda maior que a alegria dele em ser encontrado. Ela o acarinhou com o focinho e lambeu os cortes abertos pelos dentes da doninha. Depois, mãe e filhote comeram a bebedora de sangue, e mais tarde voltaram para a caverna e dormiram.
Jack London, in Caninos Brancos

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