terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Fazer dançar os ursos

Por esses dias li uma citação do Flaubert sobre a insuficiência da linguagem, em que ele diz que a fala humana é como um caldeirão rachado no qual tiramos sons que fazem ursos dançar, quando o que queremos é mover as estrelas. A citação estava em inglês, não garanto a fidelidade ao francês original. O que Flaubert disse da fala vale para a literatura, mesmo esta pequena literatura em poções da crônica, diária ou semanal. Até os menos pretensiosos entre nós têm a secreta ambição de acordar o universo com o seu caldeirão rachado, e devem se resignar a, eventualmente, fazer dançar um urso. Ou, com sorte, dois ou três.
Seria um ofício respeitável, produzir música para ursos sem outras intenções. Os ursos, ao contrário dos cronistas, não têm a menor vontade de afetar as estrelas com a sua existência, ou com os seus ruídos. Preocupam-se com as suas circunstâncias, com o seu alimento e o seu abrigo, e com os outros ursos. Contam com os nossos sons para os entreter e, vez que outra, iluminar, ou irritar, e não querem saber se o nosso, por assim dizer, público-alvo prioritário esteja nas esferas celestiais. Flaubert se referia à incapacidade de o homem expressar tudo o que sente com um instrumento imperfeito como a linguagem (embora “caldeirão rachado” seja perfeito), mas também poderia estar escrevendo sobre o desencontro entre a intenção e a percepção da linguagem, ou sobre a impossibilidade da comunicação humana resumida na incurável assincronia entre escritor e leitor.
Pois os ursos dançarem com os sons que fazemos é o resultado, antes de mais nada, de um tremendo mal-entendido. No fundo, o que você está fazendo, lendo esta crônica, é um ato de bisbilhotice. Ela não é para você. Nem é para dançar. Pare imediatamente.
Não há notícia de um escritor que tenha movido as estrelas com suas palavras. Nem mesmo Flaubert. Alguns tiveram a ilusão de terem mudado a vida dos ursos, e assim de alguma maneira afetado o Universo. Mas foi só um consolo.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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