Solto
na tarde. O corpo melado. A roupa grudada na pele. Ofegante. Um
banho. Banho gelado. Ducha violenta batendo no corpo, relaxando
músculos. Ora, vivo mesmo no mundo da lua. Duas da tarde, está meio
escuro. Não são nuvens. Parecem, isso sim, chapas de metal cinza
que se fecharam sobre a cidade.
Os
prédios concentram o mormaço, as filas de circulação caminham
indolentes. Como era engraçado o tempo em que todo mundo andava
apressado em São Paulo, aos encontrões, esbarros. No entanto, a
irritação nos rostos e dentro da gente é igual. Por causa desse
abafamento constante, interminável.
E
sem esperanças. As luzes estão acesas, fracamente. Amarelas,
doentias. “A dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da
fábrica, tenho febre e escrevo.” Era a minha frase predileta,
anotei-a, decorei. Como sei de cor a maioria dos versos do poeta
Fernando Pessoa. Tenho febre e penso, num girar infinito.
Dolorosa
luz das grandes lâmpadas elétricas. O povo se move em câmara
lenta, como se vivesse dentro de um efeito especial em cinema.
Cabeças baixas, respirando mal, seguindo as filas, entrando e saindo
de edifícios. Poupando energia para suportar um pouco mais e
conseguir chegar ao fim do dia.
Nem
olho que filme é. Compro bilhete, entro. Penumbra agradável. Não
gosto de olhar nada de lado, quero frente a frente. Atrás de mim
pessoas cochicharam, se levantaram. Ao sair, uma delas bateu com a
bolsa na minha cabeça, se desculpou, apressou-se.
Formou-se,
aos poucos, um movimento na sala, como se fosse o final da sessão,
as pessoas todas saindo. Fiquei impaciente com o barulho das
conversas, ruídos dos passos, assentos que batiam, uma confusão. As
pessoas se amontoavam nos corredores, fumavam, mexiam os pés.
Ninguém para colocar ordem na casa.
Então
o cinema ficou silencioso. Vi o filme tranquilo até o fim. As luzes
se acenderam, eu queria esperar o começo. Continuei sentado. Em
volta, somente as indicadoras, com suas lanternas, me observando.
Espantadas, achei. As luzes não se apagavam, olhei o relógio.
Parado, ora essa. Detesto intervalo de sessão.
Dei
um tempo, virei-me. As indicadoras tinham desaparecido. As luzes
começaram a baixar, quase se apagaram. Mas os complementos não
vieram. Continuei esperando. Barulhos de portas sendo fechadas. Ruído
seco de travas. O cinema escureceu completamente. Falta de energia,
decerto.
Melhor
esperar no salão. Fui tateando pelo corredor. Escuro me desnorteia,
durmo sempre com uma lâmpada fraca. O quarto fica na penumbra pela
lâmpada votiva que Adelaide mantém acesa junto ao Sagrado Coração.
Ela pensa até hoje que também sou devoto, por isso ajudo-a a manter
a lâmpada.
Encontrei
uma porta. Não abria. Droga, o que significa isso? Forcei. Acendi um
fósforo, procurei outra. Trancada. Gritei. Não é possível terem
me fechado aqui. Chamei as indicadoras. O porteiro. O projecionista.
Observei a janelinha da cabine de projeção. Escura. Como é que se
foram sem me avisar?
Sentei,
meio abobalhado. Um forno a sala. Não conseguia pensar em nada. Se
tivesse um telefone. Também posso pôr fogo no cinema. Veriam a
fumaça, chamariam os bombeiros. Se é que chegariam a tempo. Os
incêndios estalam por toda a parte, a todo momento. Eu é que não
queria ser bombeiro.
Bom,
o jeito é esperar a sessão da noite. Fiquei sentado, tentando
cochilar. Vou me acostumando, tenho a impressão de que não é
escuro total, é penumbra. Pelas frestas da porta, coa uma claridade.
Gosto de lugares assim, fechados, onde eu possa ficar sozinho. Ficar
a vida toda.
Teve
época em que meu sonho era mudar para o interior. Alugar uma casa,
me encerrar nela, não sair nunca. Loucura. Seria apontado pelas
pessoas como o velho louco da casa amarela. As crianças me
evitariam. Fuga, pura fuga. Explica-se, logo depois da compulsória
eu estava chocado, tonto, revoltado.
Não
cochilei, mudei de lugar sete vezes. Fiquei ouvindo os ruídos da
rua, sentia-me inquieto. Não é por ficar preso. É alguma coisa que
me está faltando. Deve ser a hora da turma descer para o café,
conversar, ver mulheres passando. Um recreio não legal, mas
consentido. O chefe também vai.
O
alívio veio. Não preciso voltar ao escritório. Posso tomar quantos
cafés quiser, ficar olhando rua o dia todo. Aí, dormi. Barulhos
surdos, latas, vozes, um zumbido. Acordei vi a luz amarela acesa no
meio das fileiras de poltronas. Atordoado, pensei: dolorosa luz das
lâmpadas elétricas.
Não
era hora de poesia, dei um salto na cadeira. Mulheres que faziam a
limpeza se assustaram. Gritaram. Veio um homem, provavelmente vigia,
com o revólver. Quando me viu, estancou o passo. Se aproximou,
cauteloso. O revólver seguro com as duas mãos. Deve assistir muito
seriado na televisão.
– As
mãos para cima. Para cima e não toque em nada. Não se mexa, não
se mexa!
– Calma.
Devagar com o andor.
– Ladrão,
é ladrão.
– Ladrão,
nada. Vim ver o filme, dormi. Quando acordei, estava trancado.
– É?
Hoje não teve sessão, seu mentiroso.
– Então
como entrei?
– Vai
explicar para o delegado.
Uma
das mulheres saiu para telefonar, o vigia me mandou andar. E agora?
Quando passamos pela lâmpada, dei um chute no pedestal. Ela
partiu-se no chão. O homem atirou. As mulheres gritaram. Corri,
subindo o corredor. Tinha divisado uma porta aberta. Outro tiro. Um
impacto seco perto de mim.
Passei,
fechei a porta. Fugir, só assim. De repente, duas mulheres estavam
encolhidas a um canto. Havia uma lateral, fui por ela, em direção à
praça. Alguém me xingou: “Olha a fila”. Que fila, que nada. Na
praça, atirei-me num banco. E percebi que estava molhado. Tinha
urinado nas calças, como menino.
Abaixei,
tirei as meias. Os pés, suados, ardiam. Odeio meias de náilon,
seguram a transpiração. Noite já, puxa vida! Cansado. Com os
sapatos na mão, encontrei um lugar simpático atrás de uma grande
escola. O canto fedia a coisas podres, a cidade fede cada dia mais.
Nós todos fedemos.
Se
Adelaide estivesse aqui, vomitaria. Ela tem mania de cheiros. Mantém
as janelas fechadas o tempo inteiro. Não é só por causa da poeira,
do calor. Ela pensa que pode vedar o apartamento contra os cheiros.
Ingênua. Aqui não é nada cômodo, mas é melhor que andar até em
casa. Estou desanimado.
Andar,
porque não me deixam subir no ônibus. Cidade maluca, esta. Não
quero caminhar com esse mormaço. Quase não há gente na rua. O
centro se esvazia depois de sete. Fica perigoso. Mas não suportaria
chegar no prédio, ver os sacos de lixo no hall, a cozinha arrumada,
a louça no escorredor.
Em
casa, havia duas latas na cozinha. Uma para coisas que apodreciam
fácil. Restos de comida, pó de café, papel, cascas de ovo. Os
desagradáveis. Outra para vidros, latas, plásticos. Um dia,
observei muito bem. A lata vazia pela manhã, enchendo gradualmente
durante o dia. Completamente cheia à noite.
Depois,
a lata ia para fora, o lixeiro apanhava na madrugada. Ela voltava ao
lugar no dia seguinte. Vazia pela manhã, enchendo gradualmente
durante o dia. Quando descobri a repetição, compreendi também o
mecanismo. Repetição. Levantar, tomar café, sair, trabalhar,
voltar, comer, ver tevê, deitar.
Uma
roda girando sem sair do lugar. Produzindo o quê? O vazio.
Moto-contínuo. Funcionaria a vida inteira, sem parar. A menos que
alguém interrompesse. Se ninguém impede, as coisas continuam,
eternizadas. É preciso sempre intervenção, que alguém se
interponha, se transforme em obstáculo à repetição.
Pela
manhã, calcei o sapato sem meia. Na lanchonete permitida pedi pão,
ovo cozido (gosto de plástico), sal. A nuvem cinza continuava baixa
sobre a cidade, os relógios marcavam quinze para as nove. As pessoas
suando. Dentro em pouco haverá uma desidratação. Não temos tanta
água no corpo.
Andando
pelo centro. Estranho estar à vontade, admirando vitrines que nem
sabia estarem ali, reparando nos rostos das pessoas. Deixei de
prestar atenção ao centro faz muitos anos. Vejo homens com maleta
preta. Maleta? Era disso que eu sentia falta no cinema. A maleta de
mão, com minhas coisinhas.
Aquela
maleta fazia parte de mim. Era um membro, me dava segurança. Sem
ela, meus braços pendem desamparados. Colados ao corpo, com medo de
se desgrudarem. Sinto falta do escritório. Não pelo trabalho, nem
pelos colegas. Mal conversávamos. É que nunca estive livre, numa
hora da manhã, como hoje.
– Oitavo.
– Só
abre às nove e quinze – disse o ascensorista.
– Você
é o Souza?
– Sou.
– Não
me reconhece?
– Não.
– Tadeu.
– Tadeu
Pereira?
– O
próprio.
– O
que faz aqui?
– Sou
ascensorista. Não vê?
– Começou
quando?
– Sempre
trabalhei neste prédio.
– Eu
também...
Aí
observei que tinha me enganado. Era um hall igual, porém não era
meu prédio. Também, são todos semelhantes. Uniformes. Feitos com
uma só planta. Arquitetura econômica dos Abertos Oitenta. Graças a
esse erro, redescubro meu velho amigo Tadeu Pereira. Não é
possível. Tão envelhecido, acabado.
– Tadeu
Pereira. Quem diria?
– E
você? O que faz?
– Nada.
Fui demitido.
– Por
quê?
– Sei
tanto quanto você.
– Estão
demitindo baseados nos decretos secretos.
– Nunca
ouvi falar.
– São
secretos. Produtos do Ministério de Planejamento. Demissões em
massa. O Esquema não aguenta mais criar empregos artificiais. Está
além do limite da capacidade. Prefere o desemprego generalizado,
problemas sociais, que uma dívida insuportável. Eles têm horror de
dívida externa e ao mesmo tempo usam a dívida como justificativa
para tudo.
– Quer
dizer. Mais gente nessas ruas o dia inteiro. Não dá.
– Tenho
medo, Souza. Muito medo. Gente como nós o que vai fazer?
Ele
jamais poderá saber o quanto estou alegre. Jamais imaginei que
pudesse um dia dar de cara outra vez com o Tadeu. Andou desaparecido
tantos anos, julgávamos que tivesse morrido. Acabado e acabrunhado,
curvado, não me parece o homem que teve tanto ânimo. Tanto peito
para enfrentar situações.
Ignácio
de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum
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