domingo, 1 de setembro de 2019

O que deveria ser uma divertida sessão de cinema transformou-se em ameaça. Poderia ter terminado mal, caso Souza não tivesse tido uma ideia brilhante. Deu um pontapé

Solto na tarde. O corpo melado. A roupa grudada na pele. Ofegante. Um banho. Banho gelado. Ducha violenta batendo no corpo, relaxando músculos. Ora, vivo mesmo no mundo da lua. Duas da tarde, está meio escuro. Não são nuvens. Parecem, isso sim, chapas de metal cinza que se fecharam sobre a cidade.
Os prédios concentram o mormaço, as filas de circulação caminham indolentes. Como era engraçado o tempo em que todo mundo andava apressado em São Paulo, aos encontrões, esbarros. No entanto, a irritação nos rostos e dentro da gente é igual. Por causa desse abafamento constante, interminável.
E sem esperanças. As luzes estão acesas, fracamente. Amarelas, doentias. “A dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica, tenho febre e escrevo.” Era a minha frase predileta, anotei-a, decorei. Como sei de cor a maioria dos versos do poeta Fernando Pessoa. Tenho febre e penso, num girar infinito.
Dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas. O povo se move em câmara lenta, como se vivesse dentro de um efeito especial em cinema. Cabeças baixas, respirando mal, seguindo as filas, entrando e saindo de edifícios. Poupando energia para suportar um pouco mais e conseguir chegar ao fim do dia.
Nem olho que filme é. Compro bilhete, entro. Penumbra agradável. Não gosto de olhar nada de lado, quero frente a frente. Atrás de mim pessoas cochicharam, se levantaram. Ao sair, uma delas bateu com a bolsa na minha cabeça, se desculpou, apressou-se.
Formou-se, aos poucos, um movimento na sala, como se fosse o final da sessão, as pessoas todas saindo. Fiquei impaciente com o barulho das conversas, ruídos dos passos, assentos que batiam, uma confusão. As pessoas se amontoavam nos corredores, fumavam, mexiam os pés. Ninguém para colocar ordem na casa.
Então o cinema ficou silencioso. Vi o filme tranquilo até o fim. As luzes se acenderam, eu queria esperar o começo. Continuei sentado. Em volta, somente as indicadoras, com suas lanternas, me observando. Espantadas, achei. As luzes não se apagavam, olhei o relógio. Parado, ora essa. Detesto intervalo de sessão.
Dei um tempo, virei-me. As indicadoras tinham desaparecido. As luzes começaram a baixar, quase se apagaram. Mas os complementos não vieram. Continuei esperando. Barulhos de portas sendo fechadas. Ruído seco de travas. O cinema escureceu completamente. Falta de energia, decerto.
Melhor esperar no salão. Fui tateando pelo corredor. Escuro me desnorteia, durmo sempre com uma lâmpada fraca. O quarto fica na penumbra pela lâmpada votiva que Adelaide mantém acesa junto ao Sagrado Coração. Ela pensa até hoje que também sou devoto, por isso ajudo-a a manter a lâmpada.
Encontrei uma porta. Não abria. Droga, o que significa isso? Forcei. Acendi um fósforo, procurei outra. Trancada. Gritei. Não é possível terem me fechado aqui. Chamei as indicadoras. O porteiro. O projecionista. Observei a janelinha da cabine de projeção. Escura. Como é que se foram sem me avisar?
Sentei, meio abobalhado. Um forno a sala. Não conseguia pensar em nada. Se tivesse um telefone. Também posso pôr fogo no cinema. Veriam a fumaça, chamariam os bombeiros. Se é que chegariam a tempo. Os incêndios estalam por toda a parte, a todo momento. Eu é que não queria ser bombeiro.
Bom, o jeito é esperar a sessão da noite. Fiquei sentado, tentando cochilar. Vou me acostumando, tenho a impressão de que não é escuro total, é penumbra. Pelas frestas da porta, coa uma claridade. Gosto de lugares assim, fechados, onde eu possa ficar sozinho. Ficar a vida toda.
Teve época em que meu sonho era mudar para o interior. Alugar uma casa, me encerrar nela, não sair nunca. Loucura. Seria apontado pelas pessoas como o velho louco da casa amarela. As crianças me evitariam. Fuga, pura fuga. Explica-se, logo depois da compulsória eu estava chocado, tonto, revoltado.
Não cochilei, mudei de lugar sete vezes. Fiquei ouvindo os ruídos da rua, sentia-me inquieto. Não é por ficar preso. É alguma coisa que me está faltando. Deve ser a hora da turma descer para o café, conversar, ver mulheres passando. Um recreio não legal, mas consentido. O chefe também vai.
O alívio veio. Não preciso voltar ao escritório. Posso tomar quantos cafés quiser, ficar olhando rua o dia todo. Aí, dormi. Barulhos surdos, latas, vozes, um zumbido. Acordei vi a luz amarela acesa no meio das fileiras de poltronas. Atordoado, pensei: dolorosa luz das lâmpadas elétricas.
Não era hora de poesia, dei um salto na cadeira. Mulheres que faziam a limpeza se assustaram. Gritaram. Veio um homem, provavelmente vigia, com o revólver. Quando me viu, estancou o passo. Se aproximou, cauteloso. O revólver seguro com as duas mãos. Deve assistir muito seriado na televisão.
As mãos para cima. Para cima e não toque em nada. Não se mexa, não se mexa!
Calma. Devagar com o andor.
Ladrão, é ladrão.
Ladrão, nada. Vim ver o filme, dormi. Quando acordei, estava trancado.
É? Hoje não teve sessão, seu mentiroso.
Então como entrei?
Vai explicar para o delegado.
Uma das mulheres saiu para telefonar, o vigia me mandou andar. E agora? Quando passamos pela lâmpada, dei um chute no pedestal. Ela partiu-se no chão. O homem atirou. As mulheres gritaram. Corri, subindo o corredor. Tinha divisado uma porta aberta. Outro tiro. Um impacto seco perto de mim.
Passei, fechei a porta. Fugir, só assim. De repente, duas mulheres estavam encolhidas a um canto. Havia uma lateral, fui por ela, em direção à praça. Alguém me xingou: “Olha a fila”. Que fila, que nada. Na praça, atirei-me num banco. E percebi que estava molhado. Tinha urinado nas calças, como menino.
Abaixei, tirei as meias. Os pés, suados, ardiam. Odeio meias de náilon, seguram a transpiração. Noite já, puxa vida! Cansado. Com os sapatos na mão, encontrei um lugar simpático atrás de uma grande escola. O canto fedia a coisas podres, a cidade fede cada dia mais. Nós todos fedemos.
Se Adelaide estivesse aqui, vomitaria. Ela tem mania de cheiros. Mantém as janelas fechadas o tempo inteiro. Não é só por causa da poeira, do calor. Ela pensa que pode vedar o apartamento contra os cheiros. Ingênua. Aqui não é nada cômodo, mas é melhor que andar até em casa. Estou desanimado.
Andar, porque não me deixam subir no ônibus. Cidade maluca, esta. Não quero caminhar com esse mormaço. Quase não há gente na rua. O centro se esvazia depois de sete. Fica perigoso. Mas não suportaria chegar no prédio, ver os sacos de lixo no hall, a cozinha arrumada, a louça no escorredor.
Em casa, havia duas latas na cozinha. Uma para coisas que apodreciam fácil. Restos de comida, pó de café, papel, cascas de ovo. Os desagradáveis. Outra para vidros, latas, plásticos. Um dia, observei muito bem. A lata vazia pela manhã, enchendo gradualmente durante o dia. Completamente cheia à noite.
Depois, a lata ia para fora, o lixeiro apanhava na madrugada. Ela voltava ao lugar no dia seguinte. Vazia pela manhã, enchendo gradualmente durante o dia. Quando descobri a repetição, compreendi também o mecanismo. Repetição. Levantar, tomar café, sair, trabalhar, voltar, comer, ver tevê, deitar.
Uma roda girando sem sair do lugar. Produzindo o quê? O vazio. Moto-contínuo. Funcionaria a vida inteira, sem parar. A menos que alguém interrompesse. Se ninguém impede, as coisas continuam, eternizadas. É preciso sempre intervenção, que alguém se interponha, se transforme em obstáculo à repetição.
Pela manhã, calcei o sapato sem meia. Na lanchonete permitida pedi pão, ovo cozido (gosto de plástico), sal. A nuvem cinza continuava baixa sobre a cidade, os relógios marcavam quinze para as nove. As pessoas suando. Dentro em pouco haverá uma desidratação. Não temos tanta água no corpo.
Andando pelo centro. Estranho estar à vontade, admirando vitrines que nem sabia estarem ali, reparando nos rostos das pessoas. Deixei de prestar atenção ao centro faz muitos anos. Vejo homens com maleta preta. Maleta? Era disso que eu sentia falta no cinema. A maleta de mão, com minhas coisinhas.
Aquela maleta fazia parte de mim. Era um membro, me dava segurança. Sem ela, meus braços pendem desamparados. Colados ao corpo, com medo de se desgrudarem. Sinto falta do escritório. Não pelo trabalho, nem pelos colegas. Mal conversávamos. É que nunca estive livre, numa hora da manhã, como hoje.
Oitavo.
Só abre às nove e quinze – disse o ascensorista.
Você é o Souza?
Sou.
Não me reconhece?
Não.
Tadeu.
Tadeu Pereira?
O próprio.
O que faz aqui?
Sou ascensorista. Não vê?
Começou quando?
Sempre trabalhei neste prédio.
Eu também...
Aí observei que tinha me enganado. Era um hall igual, porém não era meu prédio. Também, são todos semelhantes. Uniformes. Feitos com uma só planta. Arquitetura econômica dos Abertos Oitenta. Graças a esse erro, redescubro meu velho amigo Tadeu Pereira. Não é possível. Tão envelhecido, acabado.
Tadeu Pereira. Quem diria?
E você? O que faz?
Nada. Fui demitido.
Por quê?
Sei tanto quanto você.
Estão demitindo baseados nos decretos secretos.
Nunca ouvi falar.
São secretos. Produtos do Ministério de Planejamento. Demissões em massa. O Esquema não aguenta mais criar empregos artificiais. Está além do limite da capacidade. Prefere o desemprego generalizado, problemas sociais, que uma dívida insuportável. Eles têm horror de dívida externa e ao mesmo tempo usam a dívida como justificativa para tudo.
Quer dizer. Mais gente nessas ruas o dia inteiro. Não dá.
Tenho medo, Souza. Muito medo. Gente como nós o que vai fazer?
Ele jamais poderá saber o quanto estou alegre. Jamais imaginei que pudesse um dia dar de cara outra vez com o Tadeu. Andou desaparecido tantos anos, julgávamos que tivesse morrido. Acabado e acabrunhado, curvado, não me parece o homem que teve tanto ânimo. Tanto peito para enfrentar situações.
Ignácio de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum

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