João
era noivo de Maria.
— Que
você tem, Maria?
O
noivado na sala de visitas. Sentavam-se no sofá de veludo verde,
diante do retrato do pai. Em. moldura dourada o retrato olhava o
tempo inteiro para João. Inútil mudarem o lugar do sofá. Retrato
de morto é assim: gira os olhos de todos os lados.
Longo
foi o noivado. No braço do sofá, a marca dos dedos de João; ali os
esfregava com Dona Rosinha na sala. No espaldar, outra mancha. Ali
Maria descansava a cabeça quando era beijada. Cada vez que se
mexiam, as molas do sofá estalavam.
A
mãe com a irmã de Maria na cozinha, uma costurando o enxoval e a
outra pintando as unhas, ouviam rádio. As molas crepitavam na sala,
Luísa punha o som mais alto. No quarto desabafava, com inveja:
— Maria,
não tem vergonha?
Maria
não dizia nada.
João
noivava três vezes por semana. Domingo cochilava depois do almoço
no sofá.
Maria
e a irmã ficavam à janela. Quem lavava a louça era Dona Rosinha.
Ele
bateu uma noite na porta, Maria não atendeu. Costumava abri-la antes
que João batesse. Bordando um lencinho, ouvia seus passos na
calçada. Muita gente cruzava a rua, conhecia os passos de João.
Aquela noite a irmã disse que Maria já vinha. João entendia o
cochicho das duas no quarto. A outra voltou à sala, Maria com
enxaqueca. Luísa, depois Dona Rosinha, sentadas diante de João. Bom
rapaz, queixou-se Dona Rosinha, devia saber a obrigação.
Ele
jurou que era inocente.
— Por
mim, Dona Rosinha, caso agora mesmo.
Maria
estava deitada, o rosto na parede. Dona Rosinha foi acender a luz, a
moça deu um grito. Ficaram no escuro, Luísa afagando-lhe os
cabelos, a mãe esfregando-lhe com álcool os pés frios.
— Durma,
filhinha. Ele foi tirar os papéis.
Nunca
mais o queria ver. Dona Rosinha ameaçou arrastá-la ao médico.
Maria agitou-se na cama, pouco ligava. João não tinha feito mal. Se
mentia, cega naquela hora.
Sábado
esperou João na janela, de longe sorria. Ele entrou de cara feia:
— Puxa,
Maria. Me faz cada uma!
Bem
pequena, sentadinha no colo. João pediu que casassem, o enxoval
pronto — não podia aguentar o olho do retrato.
— Ser
noivo, Maria, é muito sofredor. Tem pena de mim?
— Gosto
demais, João.
— Olhe
para mim. Você é sonsa, Maria?
— Eu,
credo! — e o sinal-da-cruz.
Mordeu-lhe
os lábios até o sangue, ela não abriu os olhos.
A
noiva fez todas as desfeitas. João, que era pobre, gastava o que não
podia. Deu-lhe caixa de bombons, não comeu nem um, bordando o
lencinho, não mais no sofá, numa cadeira longe. Atirou-os pela
janela. Ele achou alguns, guardou-os no bolso e, com saudade de
Maria, apertava os papéis lambuzados, recheio derretido.
As
flores que trazia, ela jogava no chão — ai, nojo de rosa. Os
retratos, queimou.
Consumiu
o véu de noiva, que tinha sido da mãe.
Em
vez de o esperar, passeava à noite com Luísa. A mãe catava brasa
para o ferro de roupa. Ele sentou-se no caixão da lenha.
— Nada
fiz para ela, Dona Rosinha. O que foi que eu fiz? Não quer dizer por
que mudou. Porque está diferente, Maria? Não gosta de mim, não é?
Ela
chora e me beija a mão.
Dona
Rosinha enchia de brasas o ferro.
— Não
sei a raiva que tem de mim. Depois que me beija a mão, pega no
lencinho, desfaz todos os pontos. Fura o sofá com a agulha. No meu
lugar uma cruz de furinhos! Maria, você parece doida. Já reparou,
Dona Rosinha, ela deu para roer unha? O pior é que não me olha.
Nunca
mais ela me olhou...
Sem
erguer o ferro do descanso, desculpou Dona Rosinha a filha que, de
pequena, era esquisita. Não só com João. Com ela, que era a mãe.
Fechava-se no quarto e não abria, por mais que batessem. A menina
saiu, Dona Rosinha achou uma cadeira diante do espelho... Ergueu a
tampa do ferro, soprou as brasas:
— Não
acha a Maria... estranha?
— Não,
senhora — acudi depressa, medo que fosse o fim.
Essa
cadeira diante do espelho, minha filha? Maria não dizia nada. Aquela
tarde a surpreendeu, aberta a porta, ali na frente do espelho...
Olhava-se tão de perto, no lugar da boca o vidro embaçado. Quando a
mãe entrou, Maria fez sinal. Não espantasse a outra moça. Que
moça? Sua outra filha, Dona Rosinha. Que mora dentro do
guarda-roupa. Bastava abrir a porta, ela fugia. Agora lá dentro.
Então via a moça?
Dona
Rosinha assustou-se, foi olhar. A filha pulou da cadeira: “Mãezinha
boba!” De repente se não tinha olho de louca. Bem assim: “Olho
de louca!”Remexendo nas gavetas, achou retrato de tia Matilde.
— Tia
Matilde... — João repetiu, a cabeça entre as mãos. — Quem era?
Muito
parecida com a tia, explicou Dona Rosinha. O retrato podia ser o de
Maria: olho de sonsa, perdido pelos cantos. Tia Matilde sofria de
ataque e morreu no asilo… Dona Rosinha chorando soprava as brasas.
Queixava-se
Maria de que os pés de avenca murchavam ao seu olhar. Foi o sol,
Maria, a mãe insistiu que foi o sol. O canário suspendeu o canto,
coberto de piolho vermelho. Ora, peste de canário velho. Diante do
guarda-roupa, chegava o rosto na face gelada do espelho. Quem dera
furar os olhos da outra com a agulha de tricô. Arregalando a pupila,
morrer do próprio mau-olhado.
Dona
Rosinha soprou o ferro frio. Não passara peça alguma de roupa: as
brasas apagadas.
— Já
viu, João? Minha filha de cabelo branco!
Ele
não respondeu. Pensava em Maria. “Meu Deus, que foi isso?” No
braço unhadas ferozes de gato. Mas não havia gato na casa... “Eu
que fiz”. “Por que, Maria?” "Para me castigar.
Olhei
o pessegueiro de manhã...” Chão forrado de pêssego podre.
Esperava-o
de olhos fechados na sala escura. Abria depressa a porta, com ele não
entrasse raio de luz. “Está cega, Maria?”
Nua
sob o vestido provocava João: “Não é homem, João. Se fosse me
levava embora. Mamãe é louca. Me espia pelos buracos. Diz que sou
tia Matilde. Eu me fecho no quarto. Sabe o que faz? Milhares de
formiguinha preta. Por baixo da porta, sobem pelos pés da cama.
Cubro a cabeça com o lençol. Elas me descobrem. O corpo cheio de
formiguinha. Quer ver, João?”
Terça,
quinta, sábado, vem noivar sozinho. No sofá, com as duas manchas:
uma, da própria mão e, a outra, da cabeça de Maria. Ali na parede
o velho de bigode branco, sem piscar, seguindo-o por todo canto.
A
voz no quarto escuro: “De quem este convite, mãe? Quem vai casar?
Já sei, a Matilde.
Tia
Matilde com o João”.
Dona
Rosinha serve-lhe um cafezinho. Depois abre as gavetas da cômoda, os
dois admiram o enxoval e as bolas de naftalina, cada vez menores.
Dalton
Trevisan, in Novelas nada exemplares
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