terça-feira, 25 de junho de 2019

O Antropoceno

No que tange a outros animais, os humanos já se tornaram deuses há muito tempo. Não gostamos de refletir sobre isso com muita profundidade porque não somos deuses particularmente justos ou misericordiosos. Se você assistir a um programa do canal National Geographic ou a um filme da Disney, ou se ler um livro de contos de fadas, facilmente terá a impressão de que a Terra é habitada principalmente por leões, lobos e tigres, que estão em pé de igualdade com os humanos. Simba, o rei leão, domina os animais da floresta; Chapeuzinho Vermelho tenta escapar do Lobo Mau; e o menino Mogli enfrenta com bravura o tigre Shere Khan. Mas na verdade eles não estão mais lá. Embora nossas televisões, nossos livros, nossas fantasias e nossos pesadelos ainda sejam povoados por eles, os Simbas, os Shere Khans e os Lobos Maus do nosso planeta estão desaparecendo. O mundo está habitado principalmente por humanos e seus animais domesticados.
Quantos lobos vivem hoje na Alemanha, o país dos irmãos Grimm, de Chapeuzinho Vermelho e do Lobo Mau? Menos de cem. (E mesmo esses são na maioria lobos poloneses que atravessaram furtivamente a fronteira em anos recentes.) Em contrapartida, a Alemanha abriga 5 milhões de cães domesticados. No total, cerca de 200 mil lobos selvagens ainda perambulam pela Terra, mas existem mais de 400 milhões de cães domesticados. Há no mundo 40 mil leões, comparados com 600 milhões de gatos domésticos; 900 mil búfalos na África contra 1,5 milhão de vacas domesticadas; 50 milhões de pinguins e 20 bilhões de galinhas. Desde 1970, malgrado o aumento da consciência ecológica, as populações selvagens foram reduzidas à metade (não que estivessem aumentando em 1970). Em 1980 havia 2 bilhões de aves selvagens na Europa. Em 2009 só restavam 1,6 bilhão. No mesmo ano os europeus criavam 1,9 bilhão de galinhas para carne e ovos. Atualmente, mais de 90% dos animais de maior porte do mundo (isto é, os que pesam mais do que uns poucos quilos) são ou humanos ou animais domesticados.
Os cientistas dividem a história de nosso planeta em eras, tais como o Pleistoceno, o Plioceno e o Mioceno. Oficialmente vivemos em uma era chamada Holoceno. Mas talvez seja melhor chamar a era que cobre os últimos 70 mil anos de Antropoceno: a era da humanidade. Durante esses milênios o Homo sapiens tornou-se o mais importante fator individual na mudança da ecologia global. 5 É um fenômeno sem precedente. Desde o surgimento da vida, há cerca de 4 bilhões de anos, uma única espécie jamais havia mudado sozinha a ecologia global. Embora não tenham faltado revoluções ecológicas e eventos que causaram extinções em massa, eles não foram causados pelas ações de um determinado lagarto, morcego ou fungo, e sim pela ação de poderosas forças naturais, como mudanças climáticas, movimentação de placas tectônicas, erupções vulcânicas e colisão de asteroides.
Algumas pessoas temem que estejamos de novo mortalmente ameaçados por erupções vulcânicas maciças ou colisões de asteroides. Produtores em Hollywood faturam bilhões com ansiedades desse tipo. Na realidade, o perigo de isso acontecer é remoto. Extinções em massa ocorrem uma vez a cada muitos milhões de anos. Sim, provavelmente um grande asteroide atingirá nosso planeta em algum momento nos próximos 100 milhões de anos, mas é muito improvável que isso aconteça na próxima terça-feira. Em vez de temer asteroides, deveríamos temer a nós mesmos.
O Homo sapiens reescreveu as regras do jogo. Essa espécie singular de macacos conseguiu mudar em 70 mil anos o ecossistema global de modo radical e sem precedente. O impacto que causamos já é comparável com o da idade do gelo e dos movimentos tectônicos. Em um século ele pode superar o do asteroide que exterminou os dinossauros 65 milhões de anos atrás.
Aquele asteroide mudou a trajetória da evolução terrestre, mas não suas regras fundamentais, que permaneceram fixas desde o aparecimento do primeiro organismo, há 4 bilhões de anos. Durante toda essa eternidade, se você fosse um vírus ou um dinossauro, você evoluiu de acordo com os princípios imutáveis da seleção natural. Além disso, não importa que formatos estranhos e bizarros a vida adotasse, ela estava confinada à vida orgânica — tanto um cacto como uma baleia eram formados por compostos orgânicos. Agora, a humanidade está pronta para substituir a seleção natural por um projeto inteligente e para estender a vida do reino orgânico para o inorgânico.
Mesmo se deixarmos de lado essas perspectivas futuras e só olharmos para trás, para os últimos 70 mil anos, é evidente que o Antropoceno alterou o mundo de maneira única. Asteroides, placas tectônicas e mudanças climáticas podem ter impactado organismos no mundo todo, porém sua influência difere de uma região para a outra. O planeta nunca se constituiu num único ecossistema; era, sim, uma coleção de muitos ecossistemas frouxamente conectados. Quando movimentos tectônicos juntaram a América do Norte à América do Sul, eles levaram à extinção a maior parte dos marsupiais sul-americanos, mas não exerceram nenhum efeito prejudicial no canguru australiano. Quando a última era do gelo atingiu seu clímax, 20 mil anos atrás, medusas no golfo Pérsico e medusas na baía de Tóquio tiveram, nos dois casos, de se adaptar ao novo clima. Entretanto, como não havia conexão entre as duas populações, cada uma reagiu distintamente, evoluindo em direções diferentes.
Em contrapartida, o Sapiens rompeu as barreiras que dividiam o globo em zonas ecológicas independentes. No Antropoceno, o planeta tornou-se pela primeira vez uma unidade ecológica. Austrália, Europa e América continuaram com seus climas e topografias diferentes, contudo os humanos fizeram com que organismos espalhados por todo o mundo se combinassem numa base regular, independentemente da distância e da geografia. O que começou como um punhado de embarcações de madeira tornou-se uma torrente de aviões, petroleiros e gigantescos navios cargueiros que cruzam os oceanos e unem cada ilha e continente. Consequentemente, a ecologia dos australianos, por exemplo, não pode mais ser compreendida sem levar em conta os mamíferos europeus e os microrganismos americanos que inundam suas costas e seus desertos. Ovelhas, milho, ratos e vírus da gripe que os humanos levaram para a Austrália durante os últimos trezentos anos são hoje muito mais importantes para sua ecologia do que os cangurus e coalas nativos.
No entanto, o Antropoceno não é um fenômeno recente. Já há dezenas de milhares de anos, quando se espalharam do leste da África para os quatro cantos do mundo, nossos antepassados da Idade da Pedra modificaram a flora e a fauna de todo continente e toda ilha em que se estabeleceram. Eles levaram à extinção todas as outras espécies humanas do mundo, 90% dos animais de grande porte da Austrália, 75% dos grandes mamíferos da América e aproximadamente 50% de todos os grandes mamíferos terrestres do planeta — e tudo isso antes de plantar o primeiro campo de trigo, criar a primeira ferramenta de metal, escrever o primeiro texto ou cunhar a primeira moeda.
Os animais grandes foram as primeiras vítimas porque eram relativamente pouco numerosos e se procriavam lentamente. Comparem-se, por exemplo, os mamutes (que acabaram extintos) com os coelhos (que sobreviveram). Um bando de mamutes era constituído por poucas dúzias de indivíduos e a taxa de procriação era talvez de apenas duas crias por ano. Resultado: se uma tribo humana local caçasse apenas três mamutes por ano, já era suficiente para que as mortes ultrapassassem em número os nascimentos, e em poucas gerações os mamutes desapareceram. Os coelhos, por sua vez, se reproduzem como coelhos. Mesmo que os humanos caçassem centenas deles a cada ano, isso não seria suficiente para levá-los à extinção.
Não que nossos antepassados tivessem planejado varrer os mamutes da face da Terra; na verdade eles não estavam cientes das consequências de suas ações. A extinção dos mamutes e de outros animais de grande porte pode ter sido brusca numa escala de tempo evolutiva, mas foi lenta e gradual em termos humanos. Pessoas não viviam mais do que setenta ou oitenta anos, e o processo de extinção se estendeu por séculos. O antigo Sapiens provavelmente não percebeu nenhuma conexão entre a caça anual ao mamute — durante a qual eram mortos não mais de dois ou três mamutes — e o desaparecimento desses gigantes peludos. No melhor dos casos, algum ancião nostálgico pode ter dito a alguns jovens céticos: “Quando eu era jovem, havia muito mais mamutes do que agora. Assim como havia mais mastodontes e alces gigantes. E, é claro, os chefes de tribo eram honestos, e as crianças respeitavam os mais velhos”.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

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