Antes
de mais nada, há Joseph Conrad. O seu Coração das trevas,
que inspirou o roteiro de Apocalypse Now, é pouco mais do que
um conto, mas tem a força de uma narrativa mítica. Uma viagem para
dentro, para as fontes da demência e do mal, uma história mais
antiga do que ela mesma. E também uma parábola sobre o
imperialismo, talvez a primeira reflexão da Europa sobre a perversão
da sua “missão civilizadora”.
É
uma história de dois homens, Marlow — Willard, no filme — e
Kurtz, o agente da Companhia que ele vai resgatar do coração do
Congo e da sua própria loucura. Uma história de dois rios, o Tâmisa
e o Congo. Marlow conta sua aventura a bordo de um barco ancorado na
boca do Tâmisa, esperando a maré para subir até Londres.
“Que
grandeza”, escreve Conrad, “não tinha flutuado na cheia daquele
rio para os mistérios de uma terra desconhecida? Os sonhos de
homens, as sementes de comunidades, os germes do império.” Mas a
primeira coisa que Marlow diz é: “E este também já foi um dos
lugares escuros do mundo...”
Ele
evoca a chegada dos primeiros romanos àqueles pântanos. “Em algum
posto do interior eles sentem a selvageria fechar sobre eles, aquela
misteriosa vida selvagem que se move na floresta, nos jângales, no
coração dos homens... E não existe nenhuma iniciação nesses
mistérios. Eles têm que viver em meio ao incompreensível, que
também é o detestável. E tem um fascínio, também, que começa a
agir sobre eles. O fascínio da abominação. Imagine o remorso
crescente, a vontade de fugir, o nojo impotente, a entrega, o ódio.”
Mais
tarde, Marlow diz: “Nenhum de nós pensaria exatamente assim, é
claro. O que nos salva é a eficiência, a dedicação à eficiência.
Mas eles não eram muitos, na verdade. Não eram colonizadores. Eram
conquistadores, e para isso é necessário apenas força bruta, nada
do que se gabar, já que a nossa força é apenas um acidente que
decorre da fraqueza dos outros. Pegaram o que podiam em nome do que
havia para ser pego. Era apenas roubo com violência, assassinato em
grande escala, e homens se atirando a isso cegamente — como é
próprio em quem enfrenta a escuridão. A conquista do mundo, que
quase sempre significa tomá-lo de quem tem uma pele diferente ou um
nariz um pouco mais achatado do que o nosso, não é uma coisa bonita
de ver. O que a redime é a ideia, apenas. A ideia por trás dela:
não uma pretensão sentimental, mas uma ideia, e uma crença
desinteressada na ideia — alguma coisa a qual se pode amar, e
reverenciar e oferecer sacrifícios...”
Depois
deste preâmbulo, Marlow conta sua história. Ele é o homem da
eficiência, dedicado à eficiência e salvo por ela. Kurtz é a
ideia corrompida, irredimível, revelada em toda a sua crueldade e
futilidade nos últimos limites da razão. No Congo, porque foi lá
que a ideia civilizadora o depositou, mas podia ter sido na nascente
do Tâmisa na época em que aquele era um dos lugares escuros do
mundo, se ele fosse um conquistador mais antigo. Marlow mantém a sua
lucidez. Kurtz chega à sua epifania, à lucidez que destrói, do
outro lado da loucura. A selvageria no coração dos homens. A
selvageria da sua missão. O horror.
A
Companhia nunca é identificada no livro, mas Marlow faz exatamente a
viagem que o próprio Conrad fez como empregado da Societé Anonyme
Belge pour le Commerce du Haut-Congo e que o marcou para sempre. As
páginas em que Marlow descreve os negros incapacitados para o
trabalho escravo, abandonados nas bordas da estação da Companhia
para morrer sozinhos, são terríveis como qualquer cena do Vietnã.
Conrad escreveu: “Antes da minha viagem ao Congo, eu era um animal
simples.” Nunca tinha visto nada tão poderoso quanto o coração
das trevas. Antes de chegar ao autoconhecimento nos limites do seu
império, o homem branco era um animal simples. Apocalypse Now,
como O coração das trevas, descreve sua viagem para a
revelação.
O
filme está cheio de referências cruzadas. Marlon Brando, como
Kurtz, cita T. S. Eliot. Entre os seus livros estão as poesias de
Eliot e The Golden Bough e From Ritual to Romance, um
estudo sobre a busca do graal sagrado e o sacrifício arquetípico de
reis que Eliot recomendava para quem quisesse entender seu The
Wasteland, um poema sobre a corrupção dos velhos valores
europeus e da alta cultura cristã, sobre a falência das palavras
antigas e a banalização dos mitos. Várias vezes, no livro, o
narrador Marlow enfatiza que Kurtz é um homem de palavras levado à
incoerência pela escuridão. A epígrafe do poema “Os homens
vazios” de Eliot — que Kurtz cita no filme — é a frase com que
no livro um nativo anuncia, com um certo deboche, a morte de Kurtz:
“Mistah Kurtz, he dead.”
No
livro, Marlow diz que de alguma maneira toda a Europa contribuiu para
formar Kurtz. Kurtz, para Eliot, é o homem europeu esvaziado, a sua
retórica corrompida e a sua cabeça cheia de palha. De certa
maneira, toda a América contribuiu para formar o Kurtz do filme. Ele
é um oficial exemplar, um legionário da missão civilizadora
naqueles pântanos, um agente da idéia que justifica a conquista e o
assassinato. Uma das provas da sua loucura, na fita gravada que
Willard ouve, é a incoerência. As palavras literalmente lhe
falharam no coração das trevas. Ele só pode se comunicar com o
mundo pelo ritual, que é o gesto do instinto que antecede a
linguagem. Nada mais eloquente do que uma cabeça decepada atirada no
colo.
No
filme, os americanos no Vietnã ainda são animais simples. Ao
contrário dos romanos conquistando a Inglaterra ou dos belgas
rapinando o Congo, eles nem saíram de casa. Transportaram a sua
civilização para a floresta incompreensível. Fazem esqui nos seus
rios, ouvem rock na estação do exército, recebem as coelhinhas da
Playboy, compram e vendem eletrodomésticos. Willard num
extremo e Kurtz no outro são os únicos lúcidos em meio a esta
festa macabra. Como no livro, Marlow é salvo pela eficiência, Kurtz
é devorado pela escuridão e o horror. No livro, Marlow não mata
Kurtz. O coração das trevas foi escrito antes de sair The
Golden Bough com sua relação de arquétipos míticos, talvez a
obra literária mais influente deste século. O sacrifício de Kurtz
por Willard, que só não assume o seu império porque não quer, dá
ao filme a sua coerência mítica. Conrad provavelmente aprovaria.
Apesar
da presença de John Millius entre os seus roteiristas Apocalypse
Now só é um filme fascista na medida em que todo espetáculo
que nos arrasa por todos os sentidos é fascista na sua imposição.
Uma verdade cruel é que só uma civilização capaz de cometer o que
cometeu no Vietnã é capaz de fazer um filme como este. Na sua
força, na sua potência técnica, até na sua beleza plástica, o
próprio filme como produto comercial é um comentário sobre a
coerção americana e um exemplo de perversão. Redimida pelo que,
afinal, redimiu os americanos no Vietnã, o autoconhecimento.
“Mistah
Kurtz, he dead.” Não existem mais animais simples.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
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