Um
dia vou contar numa crônica a lenta agonia do meu gato amazonense
quando tive de me separar dele para viver em São Paulo. Agora a
história é outra: um cachorro…
Um
cão de raça, com pedigree, como se diz. Forte, belo, musculoso, de
pelagem castanha, focinho altivo e dentes perfeitos. Um príncipe de
quatro patas.
Uma
corrente de aço amarrava-o a um poste, enquanto o dono comprava
brioches numa das boas padarias de São Paulo.
Gania
como um louco. Às vezes parecia chorar de dor, saudade, solidão ou
desamparo. Rodeava o poste no sentido horário, a coleira curta o
imobilizava e depois ele repetia os movimentos no outro sentido. Era
um trabalho de cão: um Sísifo canino que dava voltas e mais voltas
em redor de si mesmo, e para nada.
Dava
dó. E o dono demorava, inebriado por brioches ou algum croissant,
quem sabe uma tarte au citron. Então os transeuntes se
apresentaram. Paravam perto do poste, admiravam a beleza do animal e
se condoíam com o sofrimento alheio. Alguém se revoltou com tamanha
insensibilidade do dono. Uma mulher se agachou, murmurou palavras
ternas ao pobre bicho, acariciou-o com dedos cheios de anéis. Esse
gesto comoveu o mundo. E acalmou o cachorro. Dedos e mãos não
faltaram para fazer carícias, e eram tantos que a cabeça e o corpo
do animal foram cobertos por membros humanos. A solidariedade, que é
o maior atributo da humanidade, nem sempre tarda, quase nunca falha.
Enfim,
ele apareceu na porta da padaria. É natural que o cão tenha sido o
primeiro a farejar a presença de seu dono; os transeuntes
abriram-lhe passagem, e o reencontro foi um alvoroço, uma festa
diurna.
“Ele
é mimado”, disse o dono, como se falasse de um filho.
O
pelourinho foi banido e o poste readquiriu sua função de poste.
Solto e livre como um verdadeiro cidadão, o cachorro saltou de
alegria, encheu a manhã de esperança; depois, ele e outros bichos
foram o centro da conversa.
É
uma dádiva não se falar de política num domingo ensolarado. Quem
não se toca com a visão de ipês frondosos, cujas copas floridas
dão sentido à nossa vida? Mas nada resiste ao sol do meio-dia, nem
mesmo um assunto tão ameno como os nossos bichinhos. As vozes
amolecem, as sombras abreviam-se e somem, a fome impacienta: é hora
de pensar no almoço, na torta de limão e no café com brioche.
A
calçada ficou quase deserta. Um homem a poucos metros do poste
permaneceu na mesma posição. É um negro desempregado. Nesse
Domingo de Ramos ele é também um mendigo. O animal roubou-lhe a
atenção, mas não desfez seus gestos. Sentado e com a mão
espalmada, o homem pede uma moeda ou restos de comida. Murmura,
envergonhado, que tem seis filhos.
Já
vimos essa cena, já ouvimos mil vezes essa ladainha. Não é um
velho, mas aparenta 150 anos. Daqui a um século continuará ali,
humilde e teatral: coadjuvante de um espetáculo grandioso.
Outro
dia, bem cedo, passei pela calçada da padaria e lá estava o homem.
Uma roda de curiosos o observava. Sentado no mesmo lugar, mas agora
com braços caídos.
Desde
quando?
Continuei
meu passeio fútil. E perguntei a mim mesmo, com curiosidade, por
onde andaria aquele belo cachorro.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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