domingo, 25 de novembro de 2018

Domingo sem cachorro

Um dia vou contar numa crônica a lenta agonia do meu gato amazonense quando tive de me separar dele para viver em São Paulo. Agora a história é outra: um cachorro…
Um cão de raça, com pedigree, como se diz. Forte, belo, musculoso, de pelagem castanha, focinho altivo e dentes perfeitos. Um príncipe de quatro patas.
Uma corrente de aço amarrava-o a um poste, enquanto o dono comprava brioches numa das boas padarias de São Paulo.
Gania como um louco. Às vezes parecia chorar de dor, saudade, solidão ou desamparo. Rodeava o poste no sentido horário, a coleira curta o imobilizava e depois ele repetia os movimentos no outro sentido. Era um trabalho de cão: um Sísifo canino que dava voltas e mais voltas em redor de si mesmo, e para nada.
Dava dó. E o dono demorava, inebriado por brioches ou algum croissant, quem sabe uma tarte au citron. Então os transeuntes se apresentaram. Paravam perto do poste, admiravam a beleza do animal e se condoíam com o sofrimento alheio. Alguém se revoltou com tamanha insensibilidade do dono. Uma mulher se agachou, murmurou palavras ternas ao pobre bicho, acariciou-o com dedos cheios de anéis. Esse gesto comoveu o mundo. E acalmou o cachorro. Dedos e mãos não faltaram para fazer carícias, e eram tantos que a cabeça e o corpo do animal foram cobertos por membros humanos. A solidariedade, que é o maior atributo da humanidade, nem sempre tarda, quase nunca falha.
Enfim, ele apareceu na porta da padaria. É natural que o cão tenha sido o primeiro a farejar a presença de seu dono; os transeuntes abriram-lhe passagem, e o reencontro foi um alvoroço, uma festa diurna.
Ele é mimado”, disse o dono, como se falasse de um filho.
O pelourinho foi banido e o poste readquiriu sua função de poste. Solto e livre como um verdadeiro cidadão, o cachorro saltou de alegria, encheu a manhã de esperança; depois, ele e outros bichos foram o centro da conversa.
É uma dádiva não se falar de política num domingo ensolarado. Quem não se toca com a visão de ipês frondosos, cujas copas floridas dão sentido à nossa vida? Mas nada resiste ao sol do meio-dia, nem mesmo um assunto tão ameno como os nossos bichinhos. As vozes amolecem, as sombras abreviam-se e somem, a fome impacienta: é hora de pensar no almoço, na torta de limão e no café com brioche.
A calçada ficou quase deserta. Um homem a poucos metros do poste permaneceu na mesma posição. É um negro desempregado. Nesse Domingo de Ramos ele é também um mendigo. O animal roubou-lhe a atenção, mas não desfez seus gestos. Sentado e com a mão espalmada, o homem pede uma moeda ou restos de comida. Murmura, envergonhado, que tem seis filhos.
Já vimos essa cena, já ouvimos mil vezes essa ladainha. Não é um velho, mas aparenta 150 anos. Daqui a um século continuará ali, humilde e teatral: coadjuvante de um espetáculo grandioso.
Outro dia, bem cedo, passei pela calçada da padaria e lá estava o homem. Uma roda de curiosos o observava. Sentado no mesmo lugar, mas agora com braços caídos.
Desde quando?
Continuei meu passeio fútil. E perguntei a mim mesmo, com curiosidade, por onde andaria aquele belo cachorro.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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