quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

O subsolo - 7

Mas tudo isso não passa de sonhos dourados. Ah! Digam-me quem primeiro declarou, quem primeiro proclamou que o homem só age mal porque não conhece seus verdadeiros interesses e que, se lhe dessem instrução, se lhe abrissem os olhos para os seus interesses verdadeiros e normais, ele deixaria de agir de modo sórdido, imediatamente se tornaria bom e nobre, porque, sendo esclarecido e entendendo suas vantagens reais, veria justamente no bem a sua própria vantagem? E que, como é sabido que nenhum homem é capaz de agir conscientemente contra seus próprios interesses, consequentemente, por necessidade, digamos, ele passaria a fazer o bem? Ó criancinha pura e inocente! Em primeiro lugar, quando foi que, no decorrer de milênios, o homem agiu movido apenas pelos próprios interesses? Que fazer com os milhões de fatos que demonstram que conscientemente, isto é, compreendendo perfeitamente suas verdadeiras vantagens, pessoas deixaram-nas de lado e lançaram-se por outro caminho, ao acaso, arriscando-se, sem que ninguém ou nada as obrigasse a isso, como se simplesmente não quisessem exatamente o caminho que lhes fora indicado e teimosa e voluntariosamente abriram outro, mais difícil, absurdo, tateando no escuro quase às cegas? Significa, pois, que para elas essa teimosia e esse voluntarismo eram de fato mais agradáveis do que qualquer vantagem pessoal... Ah, a vantagem! Que é a vantagem? Os senhores aceitariam a tarefa de determinar com absoluta precisão em que consiste a vantagem para o ser humano? E se acontecer que, em alguns casos, para o homem a vantagem não só possa, como também deva consistir, algumas vezes, em desejar para si aquilo que é ruim, e não o vantajoso? E, se isso é possível, se pode acontecer um caso como este, então a regra não vale nada. Que pensam os senhores: tais casos podem acontecer? Podem rir, senhores, mas me respondam apenas: teriam sido determinadas corretamente as vantagens humanas? Não existiriam algumas que não se enquadraram e nem poderiam enquadrar-se em nenhuma classificação? Pois os senhores, ao que eu saiba, compuseram toda a sua lista de vantagens humanas fazendo uma média de valores estatísticos e de fórmulas da ciência econômica. De acordo com as suas conclusões, são elas o bem-estar, a riqueza, a liberdade, a tranquilidade, e assim por diante. De modo que, por exemplo, o homem que clara e deliberadamente rejeitasse toda essa lista seria, na sua opinião, e na minha também, é claro, um obscurantista ou um ser completamente louco, não é isso? Mas vejam uma coisa espantosa: por que acontece que todos esses estatísticos, esses sábios que tanto amam a humanidade, quando enumeram as vantagens humanas sempre omitem uma delas? Nem a levam em conta da maneira como deve ser levada, e disso depende toda a conta. Não seria um mal tão grande se pegassem essa vantagem e a colocassem na lista. Mas a desgraça é que essa vantagem problemática não se encaixa em nenhuma classificação. Eu, por exemplo, tenho um amigo... Mas vejam só! Ele é amigo dos senhores também; e de quem, de quem ele não é amigo?! Ao se preparar para realizar uma ação, esse senhor começará por lhes explicar, de maneira clara e pomposa, como precisamente ele deve agir para estar de acordo com as leis da razão e da verdade. Isto não é tudo: ele falará aos senhores com paixão e emoção sobre os interesses humanos normais e verdadeiros, criticará com ironia os idiotas míopes que não entendem nem suas próprias vantagens, nem o verdadeiro significado da virtude e, exatamente quinze minutos depois, sem que haja qualquer motivo repentino e exterior, mas precisamente por alguma coisa interna que é mais forte do que todos os seus interesses, ele aprontará uma das suas, fará claramente o inverso do que dissera pouco antes: agirá contra as leis da razão e contra os próprios interesses, ou seja, contra tudo... Quero preveni-los de que meu amigo é um personagem coletivo, por isso é um pouco difícil condenar só a ele. Mas é aí mesmo que eu quero chegar, senhores. Será que de fato não existe algo que seja mais caro a quase todos os homens do que suas melhores vantagens, ou (para não destruir a lógica) aquela mesma vantagem mais vantajosa (aquela que é sistematicamente omitida, de que falamos antes), que é mais importante e mais vantajosa do que todas as outras vantagens e que, para obtê-la, o homem está sempre pronto, se necessário, a afrontar qualquer lei, ou seja, ir contra a razão, a honra, o sossego, o bem-estar – numa palavra, contra todas essas coisas maravilhosas e úteis, apenas para alcançar essa vantagem mais vantajosa, a primeira, que para ele é mais cara do que tudo?
Mas continua sendo uma vantagem – dirão os senhores, interrompendo-me.
Permitam-me, nós vamos nos explicar, e a questão não se resume a um jogo de palavras, e sim a que essa vantagem é notável justamente porque destrói todas as nossas classificações e todos os sistemas que foram montados pelos amigos do gênero humano. Resumindo: ela atrapalha tudo. Mas, antes de lhes dar o nome dessa vantagem, quero comprometer-me pessoalmente e, por isso, insolentemente declaro que todos esses maravilhosos sistemas, todas essas teorias que pretendem explicar para a humanidade quais são seus interesses verdadeiros e normais, para que ela, necessariamente almejando alcançar esses interesses, torne-se no mesmo instante boa e nobre – até o momento, na minha opinião, não passam de falsa lógica. É isso mesmo, senhores, falsa lógica. Afirmar que a renovação do gênero humano através do sistema de suas próprias vantagens, bem, isso, para mim, é quase a mesma coisa que... bem, quase o mesmo que afirmar, seguindo Buckle, que o homem se abranda por influência da civilização e, em consequência, torna-se menos sanguinário e menos inclinado a fazer guerras. Parece que foi pela lógica que ele chegou a essa conclusão. Mas o ser humano é tão apaixonado pelo sistema e pela conclusão abstrata, que é capaz de fazer-se de cego e surdo somente para justificar sua lógica. Por essa razão vou trazer um exemplo que ilustra com muita clareza tudo isso. Olhem ao seu redor: sangue fluindo como rios e ainda por cima com alegria, como se fosse champanhe! Isto, senhores, é o século XIX, século em que Buckle também viveu. Vejam Napoleão, tanto o Grande como o atual! Vejam a América do Norte, com sua união perpétua! Finalmente, vejam essa caricatura que é Schleswig-Holstein! Em que a civilização nos está abrandando? A civilização desenvolve no homem apenas uma diversidade de sensações... e nada mais. E, graças ao desenvolvimento dessas sensações, é bem possível que o homem acabe por descobrir no derramamento de sangue um certo prazer. Isso já aconteceu. Já notaram que os sanguinários mais refinados quase sempre têm sido os cavalheiros mais civilizados, aos pés dos quais não chegam todos os Átilas e Stenkas Rázin? E que, se eles não chamam muita atenção, como Átila e Stenka Rázin, é justamente porque são muito comuns e frequentes e já nos acostumamos a eles? Pelo menos se pode dizer que, se o homem não se tornou mais sanguinário com a civilização, tornou-se, com certeza, um sanguinário pior, mais hediondo. Antes ele via no derramamento de sangue um modo de fazer justiça e com a consciência tranquila massacrava aqueles que julgava merecê-lo; hoje, ainda que julguemos que derramar sangue seja uma torpeza, mesmo assim o praticamos, e ainda mais do que no passado. O que é pior? Decidam os senhores mesmos. Dizem que Cleópatra (desculpem se dou exemplo da história de Roma), gostava de fincar alfinetes de ouro nos seios de suas escravas e sentia prazer com seus gritos e contorções. Os senhores diriam que isso foi numa época relativamente bárbara; que agora também vivemos numa época bárbara (relativamente, também), pois hoje também se enfiam alfinetes; que também agora, embora o homem tenha aprendido, vez por outra, a enxergar com mais clareza do que nos tempos da barbárie, ele está longe de ter aprendido a proceder da maneira indicada pela razão e pela ciência. Porém, os senhores estão firmemente convencidos de que ele se acostumará, quando alguns hábitos antigos, ruins, tiverem desaparecido completamente, e quando o bom senso e a ciência tiverem reeducado totalmente a natureza humana, direcionando-a para um estado normal. Os senhores estão convencidos de que, então, o homem deixará voluntariamente de errar, e a contragosto, por assim dizer, não irá querer opor sua vontade aos seus interesses normais. E mais: nesse tempo, dizem os senhores, a própria ciência vai ensinar ao homem (embora isso já seja um luxo, na minha opinião) que ele, na verdade, não possui nem vontade, nem caprichos, que, por sinal, nunca os teve, e que ele mesmo não passa de alguma coisa parecida com uma tecla de piano ou um pedal de órgão; e que, ainda por cima, existem também as leis da natureza, de modo que, não importa o que ele faça, isso não é feito por sua vontade, e sim por si mesmo, seguindo as leis da natureza. Consequentemente, basta descobrir essas leis da natureza que o homem não terá mais de responder pelos seus atos, e viver, para ele, será extremamente fácil. Evidentemente, todas as ações humanas serão calculadas matematicamente, de acordo com essas leis, numa espécie de tábua de logaritmos, até 108.000, e serão inscritos nos calendários; ou, algo ainda melhor: surgirão algumas publicações bem-intencionadas, do tipo dos atuais dicionários enciclopédicos, em que tudo estará tão bem calculado e indicado, que no mundo não haverá mais nem ações nem aventuras.
Nesse tempo – isso tudo os senhores é que dizem –, surgirão novas relações econômicas, que serão também completamente calculadas, e com precisão matemática, de modo que, num piscar de olhos, todo tipo de questões deixarão de existir, precisamente porque alguém já terá encontrado todo tipo de respostas para elas. E então será construído um palácio de cristal. Então... Bem, numa palavra: então seremos visitados pelo pássaro azul. Evidentemente, não se pode garantir (isto já sou eu que estou dizendo) que nesse tempo não será, por exemplo, terrivelmente aborrecido (porque, o que haverá para fazer, se tudo estará distribuído numa tabela?), mas, em compensação, tudo será extremamente sensato. Evidentemente, o que não se inventará por puro tédio! Pois alfinetes de ouro são fincados também por tédio, mas isso ainda não é nada. O ruim mesmo (novamente sou eu que estou dizendo) é que pode até acontecer que as pessoas vão se sentir felizes com os alfinetes de ouro. Pois o ser humano é burro, de uma burrice fenomenal. Ou melhor, ele não é nem um pouco burro, mas em compensação é ingrato. Não existe ser mais ingrato que ele. Eu, por exemplo, não me admiraria nada se, de repente, sem nenhum motivo, em meio ao futuro bom senso geral, surgisse um cavalheiro com um rosto nada nobre ou, melhor dizendo, com uma fisionomia retrógrada e zombeteira e, de mãos na cintura, dissesse a todos nós: e então, senhores, que tal dar um pontapé em todo esse bom senso e mandar esses logaritmos para o diabo para que possamos novamente viver segundo a nossa vontade idiota? E não acabaria nisso, pois o mais lamentável é que ele certamente encontraria seguidores: assim é o ser humano. E tudo isso por um motivo insignificante que não valeria a pena mencionar: precisamente pelo fato de que o homem, invariavelmente e em todo lugar, quem quer que ele seja, sempre gostou de fazer o que quis, e não como mandam a razão e o interesse próprio; ele, inclusive, pode querer algo contra seus próprios interesses, e às vezes até deve indubitavelmente querê-lo (isto já é ideia minha). Sua vontade livre, um capricho seu, mesmo que seja o capricho mais estranho, uma fantasia sua, exacerbada às vezes até a loucura – eis a vantagem que é omitida, a vantagem mais vantajosa, que não se submete a nenhuma classificação e que manda para o diabo constantemente todos os sistemas e teorias. E de onde esses sabichões tiraram que o homem necessita não sei de que vontade normal, virtuosa? De onde partiu essa sua ideia de que o homem precisa ter obrigatoriamente uma vontade sensatamente vantajosa? O que o homem precisa é somente de uma vontade independente, custe ela o que custar e não importa aonde possa conduzir. Bom, essa vontade, o diabo conhece bem…
Dostoievski, in Notas do subsolo

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