domingo, 1 de outubro de 2017

Cavaleiros e escudeiros II


Stubb era o segundo imediato. Era natural de Cape Cod; logo, segundo o costume local, era chamado de “homem de Cape Cod”. Confiava na sorte; não era nem covarde, nem corajoso; enfrentava com ar de indiferença os perigos à medida que apareciam; e enquanto estava no meio de uma crise durante a caça trabalhava com calma e recolhimento, como um empregado contratado para trabalhar por um ano. Bem-humorado, dócil e descuidado, ele chefiava seu bote baleeiro como se aqueles encontros mortais fossem apenas jantares, e sua tripulação, hóspedes convidados. Era tão exigente em relação à organização de sua parte do bote quanto um cocheiro velho com sua boleia. Quando se aproximava da baleia, no momento culminante da luta, manejava sua lança implacável com frieza e indiferença, como um caldeireiro assobiando enquanto trabalha com seu martelo. Entoava velhas cantigas enquanto investia contra o monstro exasperado. O costume de longa data, para Stubb, tinha transformado as mandíbulas da morte em confortável poltrona. O que pensava da morte, ninguém sabe. É mesmo duvidoso que pensasse na morte; mas, se lhe ocorresse tal ideia depois de um agradável jantar, consideraria, como um bom marinheiro, que se tratava de um chamado do vigia para subir ao topo do mastro e ocupar-se com algo cuja natureza descobriria ao cumprir a ordem, e não antes.
O que talvez fizesse de Stubb homem tão calmo e destemido, um homem que se dispunha a carregar o fardo da vida com tanta alegria, num mundo cheio de mascates ameaçadores, dobrados até o chão pelo peso de seus fardos; o que o ajudava a manter aquele bom humor quase ímpio; essa coisa era, sem dúvida, seu cachimbo. Porque, tal como o nariz, seu pequeno cachimbo preto era um dos traços característicos de seu rosto. Seria quase esperado que saísse de seu beliche sem o nariz, mas não sem o cachimbo. Tinha uma fileira de cachimbos cheios de fumo, numa prateleira de fácil acesso; quando ia se deitar fumava todos, acendendo um após o outro até o fim do capítulo; depois os enchia de novo para ficarem prontos mais uma vez. Porque quando se vestia, antes de colocar as pernas nas calças, Stubb colocava o cachimbo na boca.
Creio que esse fumar incessante devia ser uma das causas de sua disposição particular; todos sabem que a atmosfera terrestre, seja em terra firme ou no mar, é terrivelmente contaminada pelas misérias anônimas dos inúmeros mortais que aqui morreram exalando-a; e, tal como durante a epidemia de cólera algumas pessoas usavam um lenço com cânfora na boca, da mesma forma o fumo do tabaco de Stubb deve ter agido como uma espécie de agente desinfetante contra adversidades mortais.
O terceiro imediato era Flask, nativo de Tisbury, em Martha’s Vineyard. Um jovem baixinho, robusto e corado, que gostava muito de lutar contra baleias, para quem os grandes Leviatãs pareciam de alguma forma uma afronta pessoal e hereditária; por isso, para ele, era uma questão de honra destruí-los sempre que os encontrasse. Tão infenso era ele a qualquer reverência pelas muitas maravilhas daqueles corpos majestosos e hábitos místicos, tão cego a tudo que pudesse lembrar algum tipo de apreensão diante de algum perigo ao encontrá-los, que, em sua pobre opinião, a maravilhosa baleia não passava de uma espécie de rato gigante, ou, quando muito, um roedor aquático, que com um pouco de perícia, astúcia e tempo, logo era morto e cozido. Este seu destemor ignorante e inconsciente fazia com que se tornasse um pouco brincalhão em relação às baleias; perseguia esses peixes só para se divertir; e uma viagem de três anos em volta do cabo Horn era apenas uma piada bem contada com essa duração. Assim como os pregos de um carpinteiro são divididos em cravos e tachas, a humanidade pode ser dividida de modo similar. O pequeno Flask era um cravo, feito para segurar bem e durar muito. Chamavam-no de King-Post a bordo do Pequod; porque se parecia com o pedacinho de madeira quadrado assim chamado pelos baleeiros do Ártico; e que, graças a numerosos pedaços de madeira nele inseridos, serve para proteger o navio das batidas contra o gelo naqueles mares cheios de blocos de gelo.
Ora, esses três imediatos – Starbuck, Stubb e Flask – eram homens importantes. Eram eles que comandavam três dos botes do Pequod. Na grande ordem da batalha em que o Capitão Ahab ordenaria que suas forças descessem às baleias, esses três líderes eram como capitães de companhia. Ou, estando armados com as suas afiadas lanças baleeiras, formavam um trio seleto de lanceiros, do mesmo modo que os arpoadores eram os atiradores de dardos.
E já que nessa pesca famosa todos os marinheiros ou líderes, como antigos cavaleiros góticos, sempre vão acompanhados de um timoneiro ou arpoador, que em certas circunstâncias lhes dão uma lança nova, quando a outra ficou torcida ou dobrada devido ao ataque; além disso, como geralmente existe entre os dois uma grande intimidade e amizade; é, portanto, oportuno que agora apresentemos os arpoadores do Pequod e digamos quem eram seus líderes.
Em primeiro lugar, havia Queequeg, a quem Starbuck, o primeiro imediato, tinha escolhido para ser o seu escudeiro. Mas Queequeg já é nosso conhecido.
O próximo era Tashtego, um índio puro-sangue de Gay Head, o promontório mais ocidental de Martha’s Vineyard, onde ainda se encontram os últimos remanescentes de uma aldeia de peles-vermelhas, que durante muitos anos forneceu à ilha vizinha de Nantucket seus melhores arpoadores. Na pesca são geralmente conhecidos pelo nome de Gay-Headers. Os cabelos compridos e negros, a maçã do rosto saliente, e os olhos negros redondos de Tashtego – para um índio, Orientais no tamanho, mas Antárticos na expressão –, tudo isto o proclamava herdeiro de um sangue puro de orgulhosos caçadores guerreiros, que, na aventura em busca do grande alce da Nova Inglaterra, percorreram, arco em punho, as florestas aborígines do continente. Não mais farejando a trilha dos animais ferozes da floresta, Tashtego agora caçava no rastro das grandes baleias do mar; o arpão infalível da progenitura substituía adequadamente a flecha infalível dos antepassados. Observando-se os músculos bronzeados de seus membros flexíveis, quase se acreditava nas superstições dos primeiros Puritanos, que pensavam que esses índios selvagens eram filhos do Príncipe das Potências do Ar. Tashtego era o escudeiro de Stubb, o segundo imediato.
O terceiro arpoador era Daggoo, um selvagem negro e gigantesco, cor de carvão, com um andar leonino – parecia Assuero. Das suas orelhas pendiam duas argolas de ouro, tão grandes que os marinheiros as chamavam de arganéus, e diziam que iriam prender nelas as adriças da vela da mezena. Na juventude, Daggoo embarcara voluntariamente num navio baleeiro, ancorado numa enseada solitária de sua costa nativa. E nunca tendo estado em nenhum lugar a não ser na África, em Nantucket e nos portos pagãos mais frequentados pelos baleeiros; e tendo levado por muitos anos a vida ousada da pesca em navios de proprietários de escrúpulo incomum na escolha dos homens que embarcavam; Daggoo conservava intactas suas virtudes bárbaras e, ereto como uma girafa, movimentava-se pelo convés com toda a pompa de seus quase dois metros de altura. Sentia-se uma humildade física ao olhar para ele; e um homem branco em pé diante dele parecia uma bandeira branca que viesse pedir trégua a uma fortaleza. Uma coisa curiosa era que esse negro imperioso, Assuero Daggoo, fosse o Escudeiro do pequenino Flask, que ao seu lado parecia um peão de xadrez. Quanto ao resto da tripulação do Pequod, seja dito que até o dia de hoje nem a metade dos milhares de homens trabalhando diante do mastro na pesca de baleias norte-americanas nasceu na América do Norte, embora quase todos os oficiais sejam norte-americanos. O que acontece com a pesca de baleias dos Estados Unidos também acontece no Exército e Marinha mercante e militar dos Estados Unidos, e nos grupos de engenheiros empregados na construção das Estradas de ferro e Canais norte-americanos. Digo o mesmo porque, em todos esses casos, o norte-americano nativo fornece liberalmente o cérebro, e o resto do mundo generosamente fornece os músculos. Um grande número desses homens do mar em busca de baleias vem dos Açores, onde os navios de Nantucket atracam para aumentar sua tripulação com os valentes habitantes dessas praias rochosas. Do mesmo modo, os baleeiros da Groenlândia, partindo de Hull ou de Londres, detêm-se nas ilhas Shetland para complementar sua tripulação. No caminho de volta, desembarcam-nos outra vez em sua terra natal. Não se sabe o porquê, mas os Ilhéus são os melhores baleeiros. Quase todos os tripulantes do Pequod eram Ilhéus, Isolados, como eu os chamava, porque não tomavam conhecimento do continente dos homens, mas cada um dos Isolados vivia em um continente próprio. Assim, federação formada sobre uma mesma quilha, que curiosa combinação de Isolados eles compunham! Uma verdadeira delegação de Anacharsis Clootz de todas as ilhas do mar e de todos os cantos da terra, acompanhando o velho Ahab no Pequod , para testemunhar os agravos do mundo diante do tribunal do qual poucos regressam. O pobre negrinho Pip – nunca voltou! Pobre menino do Alabama! No soturno castelo de proa do Pequod, você o verá em breve, tocando seu pandeiro, como um prelúdio para a vida eterna, quando, enviado para o grande tombadilho superior, foi-lhe oferecido tocar seu pandeiro com os anjos; chamado aqui de covarde, lá saudado como herói!
Herman Melville, in Moby Dick

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