sábado, 17 de setembro de 2016

Edmundo Barata dos Reis

José Buchmann apareceu esta noite na companhia de um velho de longas barbas brancas, uma trunfa grisalha, que lhe caía pelos ombros em tranças selvagens. Reconheci nele, imediatamente, o mendigo que o fotógrafo perseguira, semanas a fio, mostrando-o, numa imagem extraordinária, a emergir de uma sarjeta. Um deus antigo, vingador, de cabeleira em desordem e bruscos olhos acesos.
Quero apresentar-lhe o meu amigo Edmundo Barata dos Reis, ex-agente do Ministério da Segurança do Estado.
Ex-gente!, diga antes, ex-gente! Ex-cidadão exemplar. Expoente dos excluídos, excremento existencial, excrescência exígua e explosiva. Em duas palavras: vadio profissional. Muito prazer...
Félix Ventura estendeu-lhe a ponta dos dedos. Perplexo, enojado. Edmundo Barata dos Reis prendeu-lhe a mão entre as dele, firmemente, longamente, olhando-o de lado (como um pássaro) e todavia atento, trocista, saboreando o desconforto do outro. José Buchmann, vestido com um belo casaco de bombazina cor de mel, os braços cruzados sobre o peito, parecia igualmente divertido. Os olhos pequenos e redondos luziam na penumbra da sala como contas de vidro:
Achei que gostasse de o conhecer. A vida deste homem parece inventada por si...
Desculpe?
Sou-Todo-Ouvidos. Era assim que me chamavam. Meu nome de guerra. Eu gostava. Gostava de ouvir. E então, zás!, caiu-nos em cima o muro de Berlim. Pópilas, paizinho! Num dia agente, no outro ex-gente. Félix Ventura estremeceu:
Você foi aluno do professor Gaspar?
Edmundo Barata dos Reis sorriu surpreso:
Oh! sim, sim. O camarada também?
Os dois homens abraçaram-se numa alegria sincera. Trocaram memórias. Barata dos Reis, mais velho um bom par de anos do que Félix Ventura, frequentara as aulas do professor Gaspar numa época em que no Liceu Salvador Correia os estudantes negros se contavam pelos dedos de uma mão. Terminado o liceu empregou-se nos serviços de meteorologia. Preso em sessenta e poucos, acusado de tentar estabelecer em Luanda uma rede bombista, passou sete anos no campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde. “Um galinheiro”, resumiu: “mas a praia era boa.” Poucas semanas após a independência já o conheciam, amigos e inimigos, e sempre foram mais estes do que aqueles, como o senhor Sou-Todo-Ouvidos. Dois anos em Havana, nove meses em Berlim (Leste), outros seis em Moscou, e assim, temperado o aço, retornou à trincheira firme do socialismo em África.
Um comunista! Acredita? Sou o último comunista a sul do equador...
Aquela teimosia é que o perdeu. Transformou-se em poucos meses num estorvo ideológico. Um tipo incômodo. Não tinha vergonha de gritar – “sou comunista!”, numa altura em que os seus chefes já só murmuravam, baixinho, “fui comunista”, e continuou a bradar, “sou comunista, sim, sou muito marxista-leninista!”, mesmo depois que a versão oficial passou a negar o passado socialista do país.
Vi coisas, meu pai!
José Buchmann sentara-se, de perna traçada, no grande cadeirão de verga que o bisavô de Félix Ventura trouxe do Brasil. Afundou a mão direita no bolso interior do casaco, tirou uma cigarreira de prata, abriu-a, separou lentamente o tabaco e enrolou um cigarro. Um sorriso malicioso iluminou-lhe o rosto:
Conta-lhe o que me contaste a mim, Edmundo, a história do Presidente...
Edmundo Barata dos Reis olhou-o num silêncio grave, indignado, repuxando com violência os fios da barba. Pensei por instantes que se fosse levantar. Receei vê-lo sair. José Buchmann encolheu os ombros:
Podes falar, caramba!, não há maca. Aqui o Félix é um tipo fixe. É da família. Aliás, vocês foram ambos alunos desse famoso professor Gaspar, não foram?, isso já quer dizer alguma coisa. Disse-me o Félix que é como pertencer à mesma tribo...
Substituíram o Presidente por um duplo. – Edmundo Barata dos Reis disse isto de um jacto e depois calou-se. Os olhos dele voltejaram pela sala numa aflição. Parecia um pardal à procura de uma janela aberta, uma luz, um pedacinho de céu por onde escapar. Baixou a voz: – Substituíram o velho. Puseram um sósia no lugar dele, um espantalho, sei lá como dizer, a porra de uma réplica.
Foda-se! – Félix explodiu numa gargalhada.
Eu nunca o ouvira dizer obscenidades. Também nunca o ouvira rir assim, com tamanha violência. José Buchmann assustou-se. Depois imitou-o. Riram os dois. Rimo-nos os três. Uma gargalhada puxando a outra. Por fim Félix sossegou.
Temos então um presidente de fantasia –, disse, enxugando as lágrimas com um lenço. – Isso eu já suspeitava. Temos um governo de fantasia. Um sistema judicial de fantasia. Temos, em resumo, um país de fantasia. Mas conte-me – quem substituiu o presidente?
Edmundo Barata dos Reis encolhera-se na cadeira. Já não lembrava um deus, muito menos um deus guerreiro, parecia-se mais com um cachorro humilhado. Fedia. Um cheiro a urina, a folhas e a frutos em decomposição. Ergueu-se, e, em vez de responder ao albino, voltou-se contra José Buchmann, o dedo estendido:
Essa gargalhada... Estou a olhar para essa gargalhada, paizinho, e estou a ver outra pessoa, há muito, muito tempo. No outro tempo. No tempo antigo. Não nos conhecemos já?
Não creio. – O fotógrafo ficou tenso. – Eu sou da Chibia. Você é da Chibia?
O que é isso, paizinho?! Eu sou luandense puro...
Então não pode ser.
Sim –, confirmou Félix Ventura: – o Buchmann veio lá das províncias, do sul profundo. É matuense...
Matuense? O nosso mato parece um jardim. Já os vossos jardins, aqui em Luanda, os poucos que existem, parecem é mato.
Calma. Abaixo o tribalismo. Abaixo o regionalismo. Viva o poder popular – não era assim que se dizia antes? O que eu queria é que aqui o camarada Edmundo respondesse à minha pergunta. Afinal, quem substituiu o presidente por um duplo?
Edmundo Barata dos Reis suspirou profundamente:
Os russos, eu acho. Talvez os israelitas. A máfia do armamento, a Mossad, eu sei lá, as duas desgraças juntas.
Pode ser. Faz sentido. E como é que você descobriu o golpe?
Eu conheço o duplo. Contratei-o! Contratei outros também. O velho nunca aparecia em público. Eram os duplos dele quem apareciam. Aquele, o Três, foi sempre o melhor. O único que podia falar sem levantar suspeitas, os outros ficavam em silêncio, só os utilizávamos em cerimônias de corpo presente. O Três era um caso especial, um talento raro, um verdadeiro ator, assisti à formação dele. Levou-nos cinco meses. Aprendeu rápido. Como se mover, como se dirigir às pessoas, o tom de voz, o protocolo, a biografia do velho, isso tudo. Ficou perfeito. Ou quase – o muadiê tinha um problema, quero dizer, tem um problema, é canhoto. Até nisso se parece com a imagem do presidente no espelho. Por isso eu o reconheci. Você não percebeu que o presidente agora deu em canhoto? Não, não percebeu. Ninguém percebeu.
Quando é que descobriu isso?
Faz um ano, ano e pouco.
Você ainda trabalhava para a segurança?
Eu?! Cota, estou a viver de vadio já tem mais de sete anos. Vê esta camisa? Virou pele. É uma camisa do Partido Comunista da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Vesti-a no dia em que me despediram e nunca mais a despi. Jurei que não a despia enquanto a Rússia não voltasse a ser comunista. Agora, mesmo que queira já não a consigo tirar. Virou pele, está a ver? Tenho a foice e o martelo tatuados no peito. Isto já não sai.
Não saía mesmo. Félix Ventura olhava para ele atordoado. José Buchmann sorria como se dissesse, “e então – não é um caso?” Edmundo Barata dos Reis reassumiu a postura de velho deus guerreiro. Sacudiu as fortes tranças grisalhas, com violência, espalhando à sua volta um terrível fedor.
Sopa?, perguntou. – Não tem sopa?
É louco! –, assegurou Félix depois que Edmundo Barata dos Reis saiu. Repetiu isto uma e outra vez, firmemente. Não estava disposto a perder mais tempo com o assunto. Todavia, José Buchmann insistiu:
Conheço coisas mais estranhas.
Oiça, o homem é completamente doido. Cacimbou. Você esteve muito tempo fora, a viajar, não faz ideia daquilo por que passamos neste maldito país. Luanda está cheia de pessoas que parecem muito lúcidas e de repente desatam a falar línguas impossíveis, ou a chorar sem motivo aparente, ou a rir, ou a praguejar. Algumas fazem tudo isso ao mesmo tempo. Umas julgam que estão mortas. Outras estão mesmo mortas e ainda ninguém teve coragem de as informar. Umas acreditam que podem voar. Outras acreditam tanto nisso que realmente voam. É uma feira de loucos, esta cidade, há por aí, por essas ruas em escombros, por esses musseques em volta, patologias que ainda nem sequer estão catalogadas. Não leve a sério tudo o que lhe dizem. Aliás, aceita um conselho?, não leve ninguém a sério.
Talvez ele não seja realmente louco. Talvez esteja a fazer-se de louco.
Não vejo a diferença. Um sujeito que escolheu viver na rua, dentro de uma sarjeta, que acredita na reconversão da Rússia ao comunismo, e que além do mais quer ser confundido com um louco – para mim é louco.
Talvez seja. Talvez não. – José Buchmann parecia desiludido: – Gostaria de o conhecer melhor.
José Eduardo Agualusa, in O vendedor de passados

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