Eu
tinha lido que, lá na Índia, elefantes olhando o crepúsculo, às
vezes, choram.
Mas
agora está aí esse filme “Camelos também choram”.
A
gente sabe que porcos e cabritos quando estão sendo mortos soltam
gemidos e berros dilacerantes. Mas quem mata galinha, no interior,
nunca relatou ter visto lágrimas nos olhos delas.
Contudo,
esse filme feito sobre uma comunidade de pastores de ovelhas e
camelos, lá na Mongólia, mostra que os camelos choram, mas choram
não diante da morte, mas em certa circunstância que faria chorar
qualquer ser humano. E, na plateia, eu vi, os não camelos também
choravam.
Para
nós, tão afastados da natureza, olhando a dureza do asfalto e a
indiferença dos muros e vitrines; para nós que perdemos o diálogo
com plantas e animais, e, por consequência, conosco mesmos,
testemunhar com aquela bela família de mongóis o nascimento de um
filhote de camelo e sua relação com a mãe, é uma forma de
reencontrar a nossa própria e destroçada humanidade.
É
isto: eles vivem num deserto. Terra árida, pedregosa. Eles, dentro
daquelas casas redondas de lona e madeira, que podem ser montadas e
desmontadas. Lá fora um vento permanente ou o assombro do silêncio
e da escuridão. E as ovelhas e carneiros ali em torno, pontuando a
paisagem e sendo a fonte de vida dos humanos.
Sucede,
então, que a rotina é quebrada com o parto difícil de um
camelinho. Por isto, a mãe camela o rejeita. O filho ali,
branquinho, mal se sustentando sobre as pernas, querendo mamar e ela
fugindo, dando patadas e indo acariciar outro filhote, enquanto o
rejeitado geme e segue inutilmente a mãe na seca paisagem. A família
mongol e vizinhos tentam forçar a mãe camela a alimentar o filho.
Em vão.
“Só
há uma solução”, diz alguém da família: “mandar chamar o
músico!". Ao ouvir isto estremeci como se me preparasse para
testemunhar um milagre. E o milagre começou musicalmente a
acontecer.
Dois
meninos montam agilmente seus camelos e vão a uma vila próxima
chamar o músico. É uma vila pobre, mas já com coisas da
modernidade, motos, televisão, e, na escola de música, dentro
daquele deserto, jovens tocam instrumentos e dançam, como se a arte
brotasse lindamente das pedras.
O
professor de música, como se fosse um médico de aldeia chamado para
uma emergência, viaja com seu instrumento de arco e cordas para
tentar resolver a questão da rejeição materna.
Chega.
E, ali no descampado, primeiro coloca o instrumento com uma bela fita
azul sobre o dorso da mãe camela. A família mongol assiste à cena.
Um vento suave começa a tanger as cordas do instrumento.
A
natureza por si mesma harpeja sua harmônica sabedoria. A camela
percebe. Todos os camelos percebem uma música reordenando suavemente
os sentidos. Erguem a cabeça, aguçam os ouvidos, e esperam.
A
seguir, o músico retoma seu instrumento e começa a tocá-lo,
enquanto a dona da camela afaga o animal e canta. E enquanto cordas e
voz soam, a mãe camela começa a acolher o filhote, empurrando-o
docemente para suas tetas.
E
o filhote, antes rejeitado e infeliz, vem e mama, mama, mama
desesperadamente feliz!... E enquanto ele mama e a música continua,
a câmara mostra em primeiro plano que lágrimas desbordam umas após
outras dos olhos da mãe camela, dando sinais de que a natureza se
reencontrou a si mesma, a rejeição foi superada, o afeto reuniu num
todo amoroso os apartados elementos.
Nós,
humanos, na plateia, olhamos aquilo estarrecidos. Maravilhados! Os
mongóis na cena constatam apenas mais um exercício de sua milenar
sabedoria.
E
nós que perdemos o contato com o micro e o macrocosmos ficamos
bestificados com nossa ignorância de coisas tão simples e
essenciais.
Bem
que os antigos falavam da terapêutica musical. Casos de instrumentos
que abrandavam a fúria, curavam a surdez, a hipocondria, e saravam
até a mania de perseguição.
Bem
que o pensamento místico hindu dizia que a vida se consubstancia no
universo com o primeiro som audível - um ré bemol - e que a palavra
só surgiria mais tarde.
Bem
que os pitagóricos, na Grécia, sustentavam que o universo era uma
partitura musical, que o intervalo musical entre a Terra e a Lua era
de um tom e que o cosmos era regido pela harmonia das esferas.
Os
primitivos na Mongólia sabem disto. Os camelos também.
Mas
nós, os pós-modernos, cultivamos a rejeição, a ruptura e o ruído.
Haja
professor de música para consertar isto.
Affonso
Romano de Sant’Anna, in Tempo de delicadeza
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