quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

A morte da porta-estandarte, de Aníbal Machado


Que adianta ao negro ficar olhando para as bandas do Mangue ou para os lados da Central?
Madureira é longe e a amada só pela madrugada entrará na praça, à frente do seu cordão.
Se o negro soubesse que luz sinistra estão destilando seus olhos e deixando escapar como as primeiras fumaças pelas frestas de uma casa onde o incêndio apenas começou!…
Todos percebem que ele está desassossegado, que uma paixão o está queimando por dentro. Mas só pelo olhar se pode ler na alma dele, porque, em tudo mais, o preto se conserva misterioso, fechado em sua própria pele, como uma caixa de ébano.
Por que não se incorporou ao seu bloco? E por que não está dançando? Há pouco não passou uma morena que o puxou pelo braço, convidando-o? Era a rapariga do momento, devia tê-la seguido… Ah, negro, não deixes a alegria morrer… É a imagem da outra que não tira do pensamento, que não lhe deixa ver mais nada. Afinal, a outra não lhe pertence ainda, pertence ao seu cordão; não devia proibi-la de sair. Pois ela já não lhe dera todas as provas? Que tenha um pouco de paciência: aquele corpo já lhe foi prometido, será dele mais tarde…
Andar na praça assim, todos desconfiam… Quanto mais agora, que estão tocando o seu samba… Está sombrio, inquieto, sem ouvir a sua música, na obsessão de que a amada pode ser de outrem, se abraçar com outro… O negro não tem razão. Os navais não são mais fortes que ele, nem os estivadores… Nem há nenhum tão alinhado. E Rosinha gosta é dele, se reserva para ele. Será medo do vestido com que ela deve sair hoje, aquele vestido em que fica maravilhosa, “rainha da cabeça aos pés”? Sua agonia vem da certeza de que é impossível que alguém possa olhar para Rosinha sem se apaixonar. E nem de longe admite que ela queira repartir o amor.
O negro fica triste.
E está até amedrontado com as ameaças da noite, com essa Praça Onze que cresce numa preamar louca.
A Praça transbordava. Dos afluentes que vinham enchê-las, eram os do Norte da cidade e os que vinham dos morros que traziam maior caudal de gente. O céu baixo absorvia as vozes dos cantos e o som em fusão de centenas de pandeiros, de cuícas gemendo e de tamborins metralhando. O negro, indiferente à alegria dos outros, estava com o coração batendo, à espera. Só depois que Rosinha chegasse, começaria o Carnaval. O grito dos clarins lhe produz um estremecimento nos músculos e um estado de nostalgia vaga, de heroísmo sem aplicação. Ó Praça Onze, ardente e tenebrosa, haverá ponto no Brasil em que, por esta noite sem fim, haja mais vida explodindo, mais movimento e tumulto humano, do que nesse aquário reboante e multicor em que as casas, as pontes, as árvores, os postes parecem tremer e dançar em conivência com as criaturas, e a convite de um Deus obscuro que convocou a todos pela voz desse clarim de fim do mundo?…
A Praça inteira está cantando, tremendo. O corpo de Rosinha não tardaria a boiar sobre ela como uma pétala. O povo dá passagem aos blocos que abrem esteiras na multidão, entre apertos e gritos.
– Isso não é assim à beça, Jerônimo! Cuidado com essa aí! É virgem…
Rompem novos cantos. Os “Destemidos de Quintino”, os “Endiabrados de Ramos” estão desfilando. Há correria do povo para ver. Os companheiros se separam, as filhas perdem-se das mães, as crianças se extraviam. Acima das vagas humanas os estandartes palpitam como velas. E é pela ondulação dessas flâmulas que os que não podem se aproximar deduzem os movimentos das portas-estandartes.
Não se vê o corpo delas, vê-se-lhes o ritmo dos passos no pano alto. Mas era como se fossem vistas de corpo inteiro, tão fiel a imagem delas na agitação das bandeiras.
– Oh, aquela lá, que colosso!… É pena não poder vê-la;; mas é mulata, te garanto…
– Ih, como deve estar dançando aquela do outro lado!… Dezoito anos com certeza… Coxas firmes… Meio maluca…
– A que está empunhando o estandarte que vem vindo aí é que deve ser do outro mundo. Preta com certeza… Veja só como a bandeira se agita, como a bandeira samba com ela…
– Pelo frenesi, a gente conhece logo.
Dezenas de estandartes pareciam falar, transmitiam mensagens ardentes, sacudiam-se, giravam, paravam, desfalecendo, reclinavam-se para beijar, fugiam…
– Imagino como estão tremelicando os seios daquela, lá longe; aquela diaba deve estar suando… Eta gostosura de raça!
– Cala a boca, Jerônimo… Você acaba apanhando…
Conto completo aqui.

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