O
homem selvagem, quando acabou de comer, está em paz com toda a natureza, e é
amigo de todos os seus semelhantes. Se, algumas vezes, tem de disputar o seu
alimento, não chega nunca ao
extremo sem ter antes comparado a dificuldade de vencer com a de encontrar
noutro lugar a sua subsistência; e, como o orgulho não se mistura ao combate,
ele termina por alguns socos. O vencedor come e o vencido vai procurar fortuna
noutra parte, e tudo está pacificado. Mas, no homem da sociedade, é tudo bem
diferente; trata-se, primeiramente, de prover ao necessário, depois, ao
supérfluo. Em seguida, vêm as delícias, depois as imensas riquezas, e depois
súditos e escravos. Não há um momento de descanso. O que há de mais original é
que, quanto menos as necessidades são naturais e prementes, tanto mais as paixões
aumentam, e o que é pior, o poder de as satisfazer. De sorte que, após longas
prosperidades, depois de haver devorado muitos tesouros e desolado muitos
homens, o meu herói acabará por tudo arruinar, até que seja o único senhor do
universo. Tal é, abreviadamente, o quadro moral, senão da vida humana, pelo
menos das pretensões secretas do coração de todo homem civilizado.
Comparai, sem preconceitos, o estado do
homem civilizado com o do homem selvagem, e investigai, se o puderdes, como
além da sua maldade, das suas necessidades e das suas misérias, o primeiro
abriu novas portas à miséria e à morte. Se considerardes os sofrimentos do
espírito que nos consomem, as paixões violentas que nos esgotam e nos desolam,
os trabalhos excessivos de que os pobres estão sobrecarregados, a moleza ainda
mais perigosa à qual os ricos se abandonam, uns morrendo de necessidades e
outros de excessos; se pensardes nas monstruosas misturas de alimentos, na sua
perniciosa condimentação, nos alimentos corrompidos, nas drogas falsificadas,
nas velhacarias dos que as vendem, nos erros daqueles que as administram, no
veneno do vasilhame no qual são preparadas; se prestardes atenção nas moléstias
epidêmicas oriundas da falta de ar entre multidões de seres humanos reunidos,
nas que ocasionam a nossa maneira delicada do viver, as passagens alternadas
das nossas casas para o ar livre, o uso de roupas vestidas ou despidas sem
precauções, e todos os cuidados que a nossa sensualidade excessiva transformou
em hábitos necessários, e cuja negligência ou privação nos custa imediatamente
a vida ou a saúde; se puserdes em linha de conta os incêndios e os tremores de
terra que, consumindo ou derrubando cidades inteiras, fazem morrer os
habitantes aos milhares; em uma palavra, se reunirdes os perigos que todas
essas causas acumulam continuamente sobre as nossas cabeças, sentireis como a
natureza nos faz pagar caro o desprezo que temos dado às suas lições.
Jean-Jacques
Rousseau, in Discurso Sobre a Origem da Desigualdade
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