domingo, 23 de dezembro de 2012

"A Vela de Sebo", o primeiro conto de Andersen

O historiador dinamarquês Esben Brage, 72, fazia uma pesquisa no arquivo público de Funen, em Odense, quando, no fundo de uma caixa, um documento amarelado atraiu sua atenção. Após dois meses de estudo, na semana passada, especialistas na obra de Hans Christian Andersen (1805-75) anunciaram que se tratava do primeiro conto escrito pelo autor.




O manuscrito encontrado - e cedido pelo Arquivo Nacional da Dinamarca para esta tradução, feita diretamente do idioma original - não saiu, porém, da pena do escritor. Trata-se de uma cópia feita por um parente da viúva Bunkeflod - figura fundamental na formação de Andersen, que a ela dedica o texto - e entregue à família Plum, cuja genealogia Brage estudava ao fazer o achado.

Ilustração de Felipe Cohen para o conto "A Vela de Sebo", do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen
Ilustração: Felipe Cohen

Para a senhora Bunkeflod
com a dedicação de seu
H. C. Andersen

Aquilo chiava e fervia enquanto o fogo dançava debaixo do caldeirão; era o berço da vela de sebo - e do interior do berço cálido surgiu a vela perfeita, elegante, brilhando branca e esguia. A julgar por seu aspecto, todos os que a contemplavam se convenciam de que ali estava a promessa de um futuro feliz e radioso - uma promessa que, como todos viam muito bem, ela não deixaria de cumprir.
A ovelha - uma linda ovelhinha - era a mãe da vela, enquanto o caldeirão onde se derretia o sebo era seu pai. Da mãe ela herdara o admirável corpo branco e uma certa noção da vida; mas do pai recebera o desejo de ter uma chama ardente, capaz de penetrar medula e ossos - e de "brilhar" vida afora.
Sim, essa era sua feição, assim ela se formara: entregara-se à vida impregnada das melhores e mais luminosas esperanças. E nela encontrara um número incrivelmente vasto de outras estranhas criaturas às quais se misturara, desejosa de aprender a conhecer a vida e, quem sabe, dessa maneira encontrar o lugar que melhor lhe correspondia.
Contudo, acreditava demais no mundo; e o mundo só se interessa por si mesmo, não quer saber de velas de sebo... Porque, incapaz de entender qual era a finalidade da vela, o mundo tratou de usá-la em proveito próprio e manuseou-a de forma errada, sem cuidado; seus dedos sujos foram manchando cada vez mais a cor imaculada da inocência, que acabou desaparecendo por completo, coberta pela imundície do mundo inteiro, com o qual a vela mantivera um contato próximo demais, ela que nunca soubera a diferença entre o sujo e o limpo... mas que mesmo assim, por dentro, continuava inocente e pura.
Os falsos amigos perceberam que eram incapazes de atingir o que havia por dentro da vela e, furiosos, descartaram-na como uma coisa inútil.
Mas a superfície externa, negra de sujeira, não deixou que os bons entrassem - os bons ficaram com medo de se contaminar com aquele pretume, não quiseram ficar manchados - e por isso guardaram distância.
E a pobre vela de sebo ficou sozinha e abandonada, sem saber o que fazer. Sentia-se desprezada pelos bons; agora entendia que não passara de um instrumento para que os maus fossem mais fundo em sua maldade; sentiu-se, com isso, tremendamente infeliz, vendo que não dedicara a vida a nada de útil, talvez até tivesse conspurcado o que havia de melhor ao seu redor - era incapaz de compreender para que ou para onde afinal se dirigia, ou por que razão vivia neste mundo - e estragado a si mesma e aos outros.
Cada vez mais e com maior profundidade ela refletia, mas quanto mais pensava, maior era seu abatimento, pois era incapaz de encontrar alguma coisa boa, algum sentido autêntico para sua existência - ou de divisar a meta que lhe fora destinada ao nascer. Era como se aquela camada negra também tivesse coberto seus olhos.
Foi então que ela encontrou uma chamazinha, um pavio; ele conhecia a vela de sebo melhor do que ela própria; aquele pavio percebia as coisas com enorme clareza --inclusive através da camada externa - e, lá dentro, encontrou uma grande bondade; sendo assim, aproximou-se dela; luminosas esperanças despertaram na vela; que se acendeu - e o coração, dentro dela, derreteu-se.
A chama explodiu, como uma tocha de júbilo num matrimônio abençoado, e tudo ao redor se iluminou e ficou claro; desvendando os caminhos para os que a levavam, seus amigos de verdade - que agora também buscavam a verdade guiados pelo clarão da vela.
Contudo, o vigor do corpo também era suficiente para nutrir e carregar a chama ardente. Gotas e mais gotas, como sementes de uma nova vida, escorreram ao longo da vela e recobriram com sua substância - a sujeira passada.
Elas não eram apenas a matéria daquele matrimônio, mas também seu enlace espiritual.
Agora a vela de sebo encontrara o lugar que lhe cabia na vida - mostrando que era uma vela de verdade, que brilhou durante muito tempo para sua própria alegria e a das outras criaturas...
Fonte: www.folha.uol.com.br/ilustrissima

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