[…]
Adjaz o campo, então eu subi de lá,
noitinha ― hora em que capivara acorda, sai de seu escondido e vem
pastar. Deus é muito contrariado. Deus deixou que eu fosse, em pé,
por meu querer, como fui.
Eu caminhei para as Veredas-Mortas.
Varei a quissassa; depois, tinha um lance de capoeira. Um caminho
cavado. Depois, era o cerrado mato; fui surgindo. Ali esvoaçavam as
estopas eram uns caborés. E eu ia estudando tudo. Lugar meu tinha de
ser a concruz dos caminhos. A noite viesse rodeando. Aí, friazinha.
E escolher onde ficar o que tinha de ser melhor debaixo dum
pau-cardoso ― que na campina é verde e preto fortemente, e de
ramos muito voantes, conforme o senhor sabe, como nenhuma outra
árvore nomeada. Ainda melhor era a capa-rosa ― porque no chão bem
debaixo dela é que o Careca dansa, e por isso ali fica um círculo
de terra limpa, em que não cresce nem um fio de capim; e que por
isso de capa-rosa-do-judeu nome toma. Não havia. A encruzilhada era
pobre de qualidades dessas. Cheguei lá, a escuridão deu.Talentos de
lua escondida. Medo? Bananeira treme de todo lado. Mas eu tirei de
dentro de meu tremor as espantosas palavras. Eu fosse um homem novo
em folha. Eu não queria escutar meus dentes. Desengasguei outras
perguntas. Minha opinião não era de ferro? Eu podia cortar um cipó
e me enforcar pelo pescoço, pendurado morrendo daqueles galhos!
quem-é-que quem que me impedia?! Eu não ia temer. O que eu estava
tendo era o medo que ele estava tendo de mim! Quem é que era o Demo,
o Sempre-Sério, o Pai da Mentira? Ele não tinha carnes de comida da
terra, não possuía sangue derramável. Viesse, viesse, vinha para
me obedecer. Trato? Mas trato de iguais com iguais. Primeiro, eu era
que dava a ordem. E ele vinha para supilar o ázimo do espírito da
gente? Como podia? Eu era eu ― mais mil vezes ― que estava ali,
querendo, próprio para afrontar relance tão desmarcado. Destes meus
olhos esbarrarem num rôr de nada.
Esperar, era o poder meu; do que eu
vinha em cata. E eu não percebia nada. Isto é, que mesmo com o
escuro e as coisas do escuro, tudo devia de parar por lá, com o
estado e aspecto. O chirilil dos bichos. Arre, quem copia o riso da
coruja, o gritado. Arrepia os cabelos das carnes.
E não conheci arriação, nem
cansaço.
Ele tinha que vir, se existisse.
Naquela hora, existia. Tinha de vir, demorão ou jàjão. Mas, em
que formas? Chão de encruzilhada é posse dele, espojeiro de bestas
na poeira rolarem. De repente, com um catrapuz de sinal, ou
momenteiro com o silêncio das astúcias, ele podia se surgir para
mim. Feito o Bode-Preto? O Morcegão? O Xú? E de um lugar ― tão
longe e perto de mim, das reformas do Inferno ― ele já devia de
estar me vigiando, o cão que me fareja. Como é possível se estar,
desarmado de si, entregue ao que outro queira fazer, no se desmedir
de tapados buracos e tomar pessoa?Tudo era para sobrosso, para mais
medo; ah, aí é que bate o ponto. E por isso eu não tinha licença
de não me ser, não tinha os descansos do ar. A minha ideia não
fraquejasse. Nem eu pensava em outras noções. Nem eu queria me
lembrar de pertencências, e msemo, de quase tudo quanto fosse
diverso, eu já estava perdido provisório de lembrança; e da
primeira razão, por qual era, que eu tinha comparecido ali. E, o que
era que eu queria? Ah, acho que não queria mesmo nada, de tanto que
eu queria só tudo. Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente queria
era ― ficar sendo!
E foi assim que as horas reviraram. ―
A meia-noite vai correndo... ― eu quis falar. O cote que o frio me
apertava por baixo. Tossi, até. ― Estou rouco? ― Pouco...
― eu mesmo sozinho conversei. Ser forte é parar quieto;
permanecer. Decidi o tempo ― espiando para cima, para esse céu:
nem o setestrêlo, nem as três-marias, ― já tinham afundado; mas
o cruzeiro ainda rebrilhava a dois palmos, até que descendo. A
vulto, quase encostada em mim, uma árvore mal vestida; o surro dos
ramos.
E qualquer coisa que não vinha. Não
vendo estranha coisa de se ver.
Ao que não vinha ― a lufa de um
vendaval grande, com Ele em trono, contravisto, sentado de estadela
bem no centro. O que eu agora queria! Ah, acho que o que era meu, mas
que o desconhecido era, duvidável. Eu queria ser mais do que eu. Ah,
eu queria, eu podia. Carecia. Deus ou o demo? ― sofri um velho
pensar. Mas, como era que eu queria, de que jeito, que? Feito o arfo
de meu ar, feito tudo! que eu então havia de achar melhor morrer
duma vez, caso que aquilo agora para mim não fosse constituído. E
em troca eu cedia às arras, tudo meu, tudo o mais ― alma e palma,
e desalma... Deus e o Demo! ― Acabar com o Hermógenes! Reduzir
aquele homem!... ―; e isso figurei mais por precisar de firmar o
espírito em formalidade de alguma razão. Do Hermógenes, mesmo,
existido, eu mero me lembrava ― feito ele fosse para mim uma
criancinha moliçosa e mijona, em seus despropósitos, a formiguinha
passeando por diante da gente ― entre o pé e o pisado. Eu
muxoxava. Espremia, pr ali, amassava. Mas, Ele ― o Dado , o Danado
― sim! para se entestar comigo ― eu mais forte do que o Ele; do
que o pavor dEle ― e lamber o chão e aceitar minhas ordens. Somei
sensatez. Cobra antes de picar tem ódio algum? Não sobra momento.
Cobra desfecha desferido, dá bote, se deu. A já que eu estava ali,
eu queria, eu podia, eu ali ficava. Feito Ele. Nós dois, e tornopío
do pé-de-vento ― o ró-ró girado mundo a fora, no dobar, funil de
final, desses redemoinhos! ...o Diabo, na rua, no meio do
redemunho... Ah, ri; ele não. Ah ― eu, eu, eu! Deus ou o Demo
― para o jagunço Riobaldo! A pé firmado. Eu esperava, eh! De
dentro do resumo, e do mundo em maior, aquela crista eu repuxei,
toda, aquela firmeza me revestiu! fôlego de fôlego de fôlego ―
da mais-força, de maior-coragem. A que vem, tirada a mando, de
setenta e setentas distâncias do profundo mesmo da gente. Como era
que isso se passou? Naquela estação, eu nem sabia maiores havenças;
eu, assim, eu espantava qualquer pássaro.
Sapateei, então me assustando de que
nem gota de nada sucedia, e a hora em vão passava. Então, ele não
queria existir? Existisse. Viesse! Chegasse, para o desenlace desse
passo. Digo direi, de verdade: eu estava bêbado de meu. Ah, esta
vida, às não-vezes, é terrível bonita, horrorosamente, esta vida
é grande. Remordi o ar:
― Lúcifer! Lúcifer!... ― aí eu
bramei, desengulindo.
Não. Nada. O que a noite tem é o
vozeio dum ser-só ― que principia feito grilos e estalinhos, e o
sapo-cachorro, tão arranhão. E que termina num queixume borbulhado
tremido, de passarinho ninhante mal-acordado dum totalzinho sono.
― Lúcifer! Satanaz!...
Só outro silêncio. O senhor sabe o
que o silêncio é? E a gente mesmo, demais.
― Ei, Lúcifer! Satanaz, dos meus
Infernos!
Voz minha se estragasse, em mim tudo
era cordas e cobras. E foi aí. Foi. Ele não existe, e não apareceu
nem respondeu ― que é um falso imaginado. Mas eu supri que ele
tinha me ouvido. Me ouviu, a conforme a ciência da noite e o envir
de espaços, que medeia. Como que adquirisse minhas palavras todas;
fechou o arrocho do assunto. Ao que eu recebi de volta um adêjo, um
gozo de agarro, daí umas tranquilidades ― de pancada. Lembrei dum
rio que viesse adentro a casa de meu pai. Vi as asas, arquei o puxo
do poder meu, naquele átimo. Aí podia ser mais? A peta, eu querer
saldar: que isso não é falável. As coisas assim a gente mesmo não
pega nem abarca. Cabem é no brilho da noite. Aragem do sagrado.
Absolutas estrelas!
Pois ainda tardei, esbarrado lá, no
burro do lugar. Mas como que já estivesse rendido de avesso, de meus
íntimos esvaziado. ― E a noite não descamba!... Assim parava eu,
por reles desânimo de me aluir dali, com efeito; nem firmava em nada
minha tenção. As quantas horas? E aquele frio, me reduzindo. Porque
a noite tinha de fazer para mim um corpo de mãe ― que mais não
fala, pronto de parir, ou, quando o que fala, a gente não entende?
Despresenciei. Aquilo foi um buracão de tempo.
A mór, bem na descida, avante,
branquejavam aqueles grossos de ar, que lubrinam, que corrubiam. Dos
marimbús, das Veredas Mortas. Garôa da madrugada. E, a bem dizer
por um caminho sem expedição, saí, fui vindo m embora. Eu tinha
tanto friúme, assim mesmo me requeimava forte sede. Desci, de
retorno, para a beira dos buritís, aonde o pano dágua. A
claridadezinha das estrelas indicava a raso a lisura daquilo. Ali era
bebedouro de veados e onças. Curvei, bebi, bebi. E a água até nem
não estava de frio geral! não apalpei nela a mornidão que deviade,
nos casos de frio real o tempo estar fazendo. Meu corpo era que
sentia um frio, de si, friôr de dentro e de fora, no me rigir. Nunca
em minha vida eu não tinha sentido a solidão duma friagem assim. E
se aquele gelado inteiriço não me largasse mais.
Foi orvalhando. O ermo do lugar ia
virando visível, com o esboço no céu, no mermar da dalva. As
barras quebrando. Eu encostei na boca o chão, tinha derreado as
forças comuns de meu corpo. Ao perto dágua, piorava aquele desleixo
de frio. Abracei com uma árvore, um pé de breu-branco. Anta por ali
tinha rebentado galhos, e estrumado. ― Posso me esconder de mim?...
Soporado, fiquei permanecendo. O não sei quanto tempo foi que
estive. Desentendi os cantos com que piam, os passarinhos na
madrugança. Eu jazi mole no chato, no folhiço, feito se um morcegão
caiana me tivesse chupado. Só levantei de lá foi com fome. Ao
alembrável, ainda avistei uma meleira de abelha aratim, no baixo do
pau-de-vaca, o mel sumoso se escorria como uma mina dágua, pelo
chão, no meio das folhas secas e verdes. Aquilo se arruinava,
desperdiçado. Senhor, senhor ― o senhor não puxa o céu antes da
hora! Ao que digo, não digo?
[...]
Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas

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