70.
Quando outra virtude não haja em mim,
há pelo menos a da perpétua novidade da sensação liberta.
Descendo hoje a Rua Nova do Almada,
reparei de repente nas costas do homem que a descia adiante de mim.
Eram as costas vulgares de um homem qualquer, o casaco de um fato
modesto num dorso de transeunte ocasional. Levava uma pasta velha
debaixo do braço esquerdo, e punha no chão, no ritmo de andando, um
guarda-chuva enrolado, que trazia pela curva na mão direita.
Senti de repente uma coisa parecida
com ternura por esse homem. Senti nele a ternura que se sente pela
comum vulgaridade humana, pelo banal quotidiano do chefe de família
que vai para o trabalho, pelo lar humilde e alegre dele, pelos
prazeres alegres e tristes de que forçosamente se compõe a sua
vida, pela inocência de viver sem analisar, pela naturalidade animal
daquelas costas vestidas.
Volvi os olhos para as costas do
homem, janela por onde vi estes pensamentos.
A sensação era exatamente idêntica
àquela que nos assalta perante alguém que dorme. Tudo o que dorme é
criança de novo. Talvez porque no sono não se possa fazer mal, e se
não dá conta da vida, o maior criminoso, o mais fechado egoísta é
sagrado, por uma magia natural, enquanto dorme. Entre matar quem
dorme e matar uma criança não conheço diferença que se sinta.
Ora as costas deste homem dormem. Todo
ele, que caminha adiante de mim com passada igual à minha, dorme.
Vai inconsciente. Vive inconsciente.
Dorme, porque todos dormimos. Toda a
vida é um sonho. Ninguém sabe o que faz, ninguém sabe o que quer,
ninguém sabe o que sabe. Dormimos a vida, eternas crianças do
Destino. Por isso sinto, se penso com esta sensação, uma ternura
informe e imensa por toda a humanidade infantil, por toda a vida
social dormente, por todos, por tudo.
É um humanitarismo direto, sem
conclusões nem propósitos, o que me assalta neste momento. Sofro
uma ternura como se um deus visse. Vejo-os a todos através de uma
compaixão de único consciente, os pobres diabos homens, o pobre
diabo humanidade. O que está tudo isto a fazer aqui?
Todos os movimentos e intenções da
vida, desde a simples vida dos pulmões até à construção de
cidades e de impérios, considero-os como uma sonolência, coisas
como sonhos ou repousos, passadas involuntariamente no intervalo
entre uma realidade e outra realidade, entre um dia e outro dia do
Absoluto. E, como alguém abstratamente materno, debruço-me de noite
sobre os filhos maus como sobre os bons, comuns no sono em que são
meus. Enterneço-me com uma largueza de coisa infinita.
Desvio os olhos das costas do meu
adiantado, e passando-os a todos mais, quantos vão andando nesta
rua, a todos abarco nitidamente na mesma ternura absurda e fria que
me veio dos ombros do inconsciente a quem sigo. Tudo isto é o mesmo
que ele; todas estas raparigas que falam para o atelier, estes
empregados jovens que riem para o escritório, estas criadas de seios
que regressam das compras pesadas, estes moços dos primeiros fretes,
tudo isto é uma mesma inconsciência diversificada por caras e
corpos que se distinguem, como fantoches movidos pelas cordas que vão
dar aos mesmos dedos da mão de quem é invisível. Passam com todas
as atitudes com que se define a consciência, e não têm consciência
de nada, porque não têm consciência de ter consciência. Uns
inteligentes, outros estúpidos, são todos igualmente estúpidos.
Uns velhos, outros jovens, são da mesma idade. Uns homens, outros
mulheres, são do mesmo sexo que não existe.
Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego
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