domingo, 13 de abril de 2025
Despedida
Se
tiver que ir,
vai.
O
que fica para trás,
não
sendo mentira,
não
racha,
nem
rompe,
não
cai.
Ninguém
tira.
Já
que vai,
segue
se depurando pelo trajeto,
para
desembarcar passado a limpo,
sem
máscara,
sem
nada,
sem
nenhum desafeto.
Quando
chegar,
sobe
ao ponto mais alto do lugar,
onde
a encosta do mundo
faz
a curva mais pendente.
Então
acena.
De
onde eu estiver, quero enxergar
esse
momento em que você vai constatar
que
a vida vale grandemente a pena.
Flora Figueiredo, em Amor a céu aberto
A língua
Conta-me
Cláudio Mello e Souza. Estando em um café de Lisboa a conversar com
dois amigos brasileiros, foram eles interrompidos pelo garçom, que
perguntou, intrigado: — Que raio de língua é essa que estão aí
a falar, que eu percebo tudo?
Rubem Braga, em Recado de primavera
Propagação e difusão do entendimento
O
sol parece ter se dispersado. De fato, propaga-se em todas as
direções, mas não se dispersa, pois essa propagação é uma
extensão. Seus raios são chamados de “extensões” porque se
“estendem”.
Você
pode observar o que é um raio solar caso enxergue um feixe de luz
atravessando uma abertura estreita e iluminando uma sala escura. Ele
se estende em linha reta e se difunde quando incide sobre qualquer
objeto sólido que o eclipsa e que intercepta o ar. Nessa superfície,
a luz se fixa — não desliza nem desprende.
Assim
deve ser a propagação e a difusão do entendimento. Deve não se
dispersar, mas sim se estender. Não deve colidir violenta ou
impetuosamente com as superfícies. Deve fixar-se sem desprender e
iluminar onde atinge. A superfície que não o absorve se priva da
iluminação.
Marco Aurélio, em Meditações
O Apanhador no Campo de Centeio
6
Tem
coisas difíceis da gente lembrar. Por exemplo, a volta do Stradlater
do encontro com a Jane. Quer dizer, não consigo lembrar direito o
que é que eu estava fazendo quando ouvi a droga dos passos dele no
corredor. Talvez ainda estivesse olhando pela janela, mas juro quê
não me lembro. Estava preocupado demais, é por isso. Não brinco em
serviço quando me preocupo com alguma coisa. Fico até precisando ir
ao banheiro. Só que não vou, porque minha preocupação é tão
grande que não quero interrompê-la só para ir lá. Qualquer um que
conhecesse o Stradlater também ficaria preocupado. Já tínhamos
saído juntos com garotas algumas vezes, e sei o que estou dizendo.
Ele não tinha escrúpulos. Nem um pouco.
Seja
como for, o corredor era forrado de linóleo e tudo, e a gente ouvia
a porcaria dos passos dele se aproximando do quarto. Não me lembro
mais nem onde estava quando ele entrou – se na janela, ou na minha
cadeira, ou na dele. Juro que não me lembro.
Chegou
se queixando do frio lá fora. Aí disse:
– Onde
é que se meteu o pessoal? Isso aqui tá parecendo mais uma droga dum
necrotério.
Nem
me dei ao trabalho de responder. Se a burrice dele não lhe permitiu
ver que era sábado de noite e que quem não tinha ido passar o fim
de semana em casa já estava dormindo – não era eu que ia perder
meu tempo para ensinar isso a ele. Começou a tirar a roupa. Não
disse nem uma porcaria duma palavra sobre a Jane. Nem umazinha. Nem
eu, que fiquei só olhando para ele. Limitou-se a me agradecer pelo
casaco que eu tinha emprestado. Pendurou-o num cabide e guardou no
armário.
Aí,
enquanto tirava a gravata, perguntou se eu havia escrito a droga da
redação para ele. Respondi que estava em cima da porcaria da cama.
Apanhou-a e foi lendo enquanto desabotoava a camisa. Ficou ali, de
pé, lendo e alisando o peito e a barriga, com a maior cara de boçal.
Ele vivia alisando o peito ou a barriga. Ele se adorava.
De
repente, falou:
– Que
negócio é esse, Holden? Você escreveu sobre uma droga duma luva de
beisebol!
– E
daí? – eu disse, com a maior frieza.
– E
daí o quê? Eu te disse que tinha que ser sobre uma porcaria duma
sala, uma casa ou outro troço assim.
– Você
disse que tinha de ser descritiva. Qual é a diferença se é sobre
uma luva de beisebol?
– Merda!
Ele
estava com uma raiva dos diabos. Furioso mesmo.
– Por
que é que tudo que você faz é enrolado, hem? – falou virando-se
para mim. – Não é à toa que você vai ser chutado daqui do
colégio. Não há uma merda duma coisa que você faça direito. É
isso mesmo. Nem uma única porcaria.
– Tá
bem, então me dá aí a redação – falei. Fui até lá, arranquei
o papel da mão dele e rasguei em pedacinhos.
– Pra
quê que você fez isso?
Nem
respondi. Apenas joguei os pedacinhos na cesta de papéis. Aí me
deitei na cama e nenhum de nós falou durante muito tempo. Ele tirou
toda a roupa, ficando só de cuecas, e eu acendi um cigarro, ainda na
cama. Era proibido fumar no dormitório, mas àquela hora da noite,
com todo mundo dormindo ou na rua, ninguém podia sentir o cheiro e
não tinha importância. Mas fumei mesmo só para chatear o
Stradlater, que ficava doente quando a gente não cumpria o
regulamento. Ele nunca fumava no dormitório, era sempre eu.
Ainda
não tinha dito nem uma palavra sobre a Jane. Não me aguentei:
– Você
está chegando um bocado tarde, se é que ela só tinha mesmo licença
para voltar às nove e meia. Ela chegou atrasada por tua causa?
Quando
perguntei, ele estava sentado na beirada da cama, cortando a porcaria
das unhas dos pés.
– Só
uns dois minutos. Também é o tipo da ideia infeliz ir dormir às
nove e meia numa noite de sábado.
Puxa
vida, como eu detestava aquele sujeito.
– Vocês
foram a Nova York? – perguntei.
– Tá
maluco? Como é que a gente podia ir a Nova York se às nove e meia
ela tinha que estar de volta?
– É,
é meio difícil mesmo.
Olhou
para mim.
– Escuta
aqui – ele disse. – Se você está com vontade de fumar, que tal
dar uma chegadinha no banheiro, bem? Você está indo embora daqui,
mas eu ainda preciso aguentar a mão até me formar.
Não
dei pelota. Não dei mesmo. Continuei a fumar como uma chaminé. Só
fiz me virar meio de lado e ficar olhando para ele, enquanto aparava
a droga das unhas. Que colégio! A gente passava o tempo todo vendo
alguém cortar a porcaria das unhas ou espremer as espinhas, ou coisa
que o valha.
– Você
deu minhas lembranças a ela? – perguntei.
– Dei.
Aposto
que não deu, o sacana.
– E
aí, o quê que ela disse? Você perguntou a ela se ainda guarda
todas as damas na última fila?
– Não!
Como é que ia perguntar um troço desses? Que é que você pensa que
nós ficamos fazendo a noite inteira? Jogando damas, é? Essa não!
– Se
você não foi a Nova York, então pra onde foi? – perguntei um
pouco depois. Minha voz já estava saindo trêmula pra burro. Puxa,
como eu estava nervoso. Tinha a impressão de que havia acontecido
alguma coisa esquisita entre eles dois.
Stradlater
acabou de cortar a porcaria das unhas. Levantou-se, só de cuecas e
tudo, e começou a bancar o brincalhão. Chegou junto da minha cama,
se abaixou e ficou dando uns murros de brincadeira no meu ombro.
– Para
com isso – eu disse. – Se não foi a Nova York, pra onde é que
você levou a Jane?
– Pra
lugar nenhum. Ficamos no carro mesmo – respondeu e me deu novamente
um daqueles murrinhos idiotas no ombro.
– Para
com isso! No carro de quem?
– Do
Ed Banky.
Ed
Banky era o técnico de basquete do Pencey. O Stradlater era
protegido dele porque jogava de pivô no time. Por isso o carro do Ed
Banky estava sempre à sua disposição. Era proibido aos alunos
dirigir os carros dos professores, mas os sacanas que praticavam
esporte eram um bocado unidos. Em todos os colégios onde estive,
esses sacanas formavam sempre a sua panelinha.
Stradlater
continuava a dar aqueles saquinhos de brincadeira no meu ombro. Botou
na boca a escova de dentes que estava segurando.
– Você
mandou brasa nela dentro do carro do Ed Banky? – perguntei, com a
voz tremendo mais do que gelatina.
– Isso
é coisa que se diga? Tá querendo que eu lave a tua boca com sabão?
– Mandou
ou não mandou?
– Isso
é segredo profissional, meu chapa.
Não
me lembro direito do que aconteceu depois. Só sei que me levantei da
cama, como se fosse para o banheiro ou coisa parecida, e tentei
dar-lhe um murro de surpresa, com toda força, bem ali na escova de
dentes, para furar a droga da garganta dele. Só que errei. Não
consegui acertar direito. Quando muito, peguei-o no lado da cabeça.
Talvez tivesse machucado um pouquinho, mas não como eu queria. Teria
machucado de verdade, se eu não tivesse usado a direita, que é a
minha mão fraca. Por causa daquele defeito de que eu já falei.
Afinal,
quando vi já estava deitado no chão, e o Stradlater, com o rosto
vermelho pra diabo, sentado em cima do meu peito. Quer dizer, a droga
dos joelhos dele estavam fincados no meu peito e o safado pesava mais
de uma tonelada. Meus pulsos também estavam presos, por isso não
podia lhe dar outro murro. Tive vontade de matá-lo.
– Quê
que há com você? - ele repetia, a cara estúpida cada vez mais
vermelha.
– Tira
essa merda desses joelhos de cima de mim – falei, quase urrando.
Urrando mesmo. - Vamos, sai de cima de mim, seu filho da puta!
Mas
ele não saiu. Continuou prendendo meus pulsos, e eu continuei a
chamá-lo de filho da puta e tudo, durante mais de dez horas. Nem me
lembro direito do que eu disse a ele. Disse que ele pensava que podia
mandar brasa em quem bem entendesse. Disse que não fazia a menor
diferença para ele se uma pequena deixava todas as damas na última
fila ou não, e que ele só não se importava com isso porque era um
imbecil total. Ele ficava furioso quando era chamado de imbecil.
Todos os imbecis detestam ser chamados de imbecis.
– Cala
a boca, Holden! – ele disse, com a carona imbecil toda vermelha. –
Cala a boca!
– Você
nem ao menos sabe se o nome dela é Jane ou Jean, seu boçalão!
– Cala
essa boca, Holden, que merda! Estou avisando – ele disse. O cara
estava alucinado. – Se você não calar a boca vou te dar uma
porrada.
– Tira
a droga desses joelhos de idiota de cima de mim.
– Se
eu te soltar, você fica calado?
Nem
respondi. Ele repetiu:
– Se
eu te soltar, você vai ficar calado, Holden?
– Vou.
Ele
se levantou e eu também. Meu peito estava doendo pra chuchu do peso
dos joelhos dele.
– Você
é um filho da puta dum imbecil – falei.
Aí
o Stradlater virou fera de verdade. Ficou sacudindo o dedão na minha
cara.
– Porra,
Holden, tou te avisando. Pela última vez. Se você não fechar a
matraca, vou te...
– Pra
quê? – perguntei, quase gritando. – Esse é que é o problema
com os imbecis como você. Nunca querem discutir coisa nenhuma. É
assim que a gente descobre quem é boçal. Não discutem nunca um
troço com inteligên...
Aí
ele me mandou um murro tremendo e eu capotei. Não me lembro se
cheguei a perder os sentidos, mas acho que não. Não é nada fácil
nocautear uma pessoa, a não ser no cinema. Mas meu nariz pingava
sangue pelo quarto todo. Quando abri os olhos, o Stradlater estava em
pé, bem ao meu lado.
– Por
que diabo você não cala a boca quando eu mando? – perguntou.
Ele
estava um bocado nervoso. Acho que estava apavorado, com medo que eu
tivesse fraturado o crânio ou coisa parecida quando bati com a
cabeça no chão. É pena que isso não tenha acontecido.
– A
culpa é tua, toda tua – ele disse.
Puxa,
estava preocupado pra burro.
Nem
me dei ao trabalho de levantar do chão. Continuei espichado ali
mesmo, chamando-o de imbecil e filho da puta. Minha raiva era tanta
que eu estava quase berrando.
– Quer
saber de uma coisa, vai lavar a cara – ele falou. – Tá ouvindo?
Disse
que ele, se quisesse, que fosse lavar sua cara de boçal. Era o tipo
da resposta infantil, mas eu estava com uma raiva desgraçada. Disse
ainda que, no caminho do banheiro, desse uma parada e mandasse uma
brasinha na Sra. Schmidt. A Sra. Schmidt era a mulher do zelador.
Andava aí pelos sessenta e cinco anos.
Fiquei
sentado no chão até ouvir o Stradlater fechar a porta e seguir para
o banheiro, no fim do corredor. Então me levantei. Não conseguia
achar a droga do meu chapéu de caça em lugar nenhum. Procurei um
pouco mais e acabei encontrando, debaixo da cama. Botei-o na cabeça
e virei a aba para trás, até ficar como eu gostava. Aí fui até o
espelho dar uma olhada na minha cara de imbecil. Garanto que ninguém
nunca viu ferimento igual àquele. Tinha sangue espalhado pela boca e
pelo queixo, e até no pijama e no roupão. Fiquei meio assustado e
meio fascinado. Todo aquele sangue me dava um jeitão de machão. Na
minha vida inteira só tinha entrado numas duas brigas, e apanhei nas
duas vezes. Não sou muito de briga. Para dizer a verdade, eu sou é
pacifista.
Tinha
a impressão de que o Ackley tinha ouvido a bagunça toda e estava
acordado. Por isso atravessei as cortinas do banheiro que ficavam
entre o quarto dele e o nosso, só para ver o que ele estava fazendo.
Eu quase nunca ia ao quarto dele, porque o sacana era tão relaxado
em seus hábitos pessoais que o quarto dele sempre tinha um fedor
meio esquisito.
J. D. Salinger, em O Apanhador no Campo de Centeio
sexta-feira, 11 de abril de 2025
Bocó
Quando o moço estava a catar caracóis
e pedrinhas
na beira do rio até duas horas da tarde, ali
também Nhá Velina Cuê estava. A velha paraguaia
de ver aquele moço a catar caracóis na beira do
rio até duas horas da tarde, balançou a cabeça
de um lado para o outro ao gesto de quem estivesse
com pena do moço, e disse a palavra bocó. O moço
ouviu a palavra bocó e foi para casa correndo
a ver nos seus trinta e dois dicionários que coisa
era ser bocó. Achou cerca de nove expressões que
sugeriam símiles a tonto. E se riu de gostar. E
separou para ele os nove símiles. Tais: Bocó é
sempre alguém acrescentado de criança. Bocó é
uma exceção de árvore. Bocó é um que gosta de
conversar bobagens profundas com as águas. Bocó
é aquele que fala sempre com com sotaque das suas
origens. É sempre alguém obscuro de mosca. É
alguém que constrói sua casa com pouco cisco.
É um que descobriu que as tardes fazem parte de
haver beleza nos pássaros. Bocó é aquele que
olhando para o chão enxerga um verme sendo-o.
Bocó é uma espécie de sânie com alvoradas. Foi
o que o moço colheu em seus trinta e dois
dicionários. E ele se estimou.
na beira do rio até duas horas da tarde, ali
também Nhá Velina Cuê estava. A velha paraguaia
de ver aquele moço a catar caracóis na beira do
rio até duas horas da tarde, balançou a cabeça
de um lado para o outro ao gesto de quem estivesse
com pena do moço, e disse a palavra bocó. O moço
ouviu a palavra bocó e foi para casa correndo
a ver nos seus trinta e dois dicionários que coisa
era ser bocó. Achou cerca de nove expressões que
sugeriam símiles a tonto. E se riu de gostar. E
separou para ele os nove símiles. Tais: Bocó é
sempre alguém acrescentado de criança. Bocó é
uma exceção de árvore. Bocó é um que gosta de
conversar bobagens profundas com as águas. Bocó
é aquele que fala sempre com com sotaque das suas
origens. É sempre alguém obscuro de mosca. É
alguém que constrói sua casa com pouco cisco.
É um que descobriu que as tardes fazem parte de
haver beleza nos pássaros. Bocó é aquele que
olhando para o chão enxerga um verme sendo-o.
Bocó é uma espécie de sânie com alvoradas. Foi
o que o moço colheu em seus trinta e dois
dicionários. E ele se estimou.
Manoel de Barros, em Memórias Inventadas – A segunda infância
Diário de Bernardo Soares – Ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa
15.
Conquistei,
palmo a pequeno palmo, o terreno interior que nascera meu.
Reclamei,
espaço a pequeno espaço, o pântano em que me quedara nulo.
Pari
meu ser infinito, mas tirei-me a ferros de mim mesmo.
Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego
A Renovação num Boteco do Leblon
— Bem já falavam os antigos, o que
passa devagar é o dia, o ano passa depressa. Num instante, hein,
cara, lá se foi essa desgraça, já foi tarde.
— Pra mim, não. Quer dizer, o ano
não teve nada para comemorar, mas é sempre mais um ano que vai
embora, não é? Na nossa idade, isso já começa a pesar, o cara
fica matutando, fazendo conta... Tu faz conta?
— Faz conta, como? Conta dos anos?
Claro, eu vou contando os anos, é normal, todo mundo sabe quantos
anos tem. Pode até negar, como você, mas sabe.
— Não é isso, cara, eu não estou
me referindo aos anos que a gente tem e, aliás, eu não nego a
idade, quem nega é você, mas deixa isso pra lá. O que eu estou
falando é nos anos que ainda restam, os que vêm pela frente, sacou?
Tu faz conta dos anos que ainda deve ter pela frente, mais ou menos?
— Ah, eu não. Quer dizer, às
vezes. Às vezes eu penso assim... Mas é tudo muito aleatório. Vê
o caso do Caldeira, tu manja bem o Caldeira, todo mundo manja, sempre
de calção, peito cabeludo de fora, nada de cigarro, nada de birita,
nada de perder noite, comida quase que somente capim, mais saúde do
que a zaga da seleção da Nigéria e aí o que é que aconteceu?
Sentiu uma pontadazinha na barriga, foi no médico, o médico mandou
ele fazer uma cacetada de exames tipo Nasa e aí falou que nem
precisava abrir, já estava tudo lá dentro tomado, negócio pra no
máximo mais dois meses. Petê, saudações, como se dizia no tempo
do telegrama. Não deu outra. Tu tem visto ele?
— Não, ele...
— Claro que não, pra ver tu tem de
ir no São João Batista, corredor dos não-fumantes, ala natureba,
quadra da lei seca, superquadra da aeróbica. É lá que ele está.
Quer dizer, não dá pra prever, ficar minhocando esses troços, tu
pode levar bala perdida, pode ser atropelado, pode ter uma porrada de
coisas, quem está vivo está morto, não adianta pensar, só dá
estresse.
— É, eu sei, mas a gente não
comanda os pensamentos, eles pintam sem autorização. Eu fico
pensando assim que, descontando essas possibilidades que tu disse,
mais ou menos dentro da chamada normalidade, eu faço as contas e aí
penso que, com alguma sorte, emplaco mais uns quinze, né não? É,
mais uns quinze está de bom tamanho. Com muita sorte, mas muita
sorte mesmo, mais vinte, daí não pode passar. Tu lê obituário?
— Taí, obituário eu leio. Leio e
observo sempre a idade dos caras. Tem dias que é todo mundo na faixa
dos oitentinha, são os melhores dias. Mas tem uns infartos com 50,
55, umas tais “prolongadas doenças” que todo mundo sabe quais
são, tem umas coisas assim, o melhor seria não ler merda de
obituário nenhum. Mas é vício, peguei o vício e agora é uma
desgraça, vou em cima direto, leio eles antes de saber qual é a
manchete.
— Eu também leio, cara, também sou
viciado. É isso e as contas, não tem jeito. Eu não quero, mas faço
essas contas todo dia, quase toda hora.
— Pô, não fala mais nesse troço,
que eu também já estou aqui querendo entrar nessa de fazer conta,
isso não tá com nada, cara, vamos parar com isso, é ano novo!
Lembra o ditado: ano novo, vida nova! É isso aí, vida nova!
— Isso tu repete sem notar que é
besteira. Não tem nada de novo, está tudo ficando mais velho, nós
e o mundo, tudo mais velho.
— Eu tou falando no sentido
filosófico, tua grossura nata não te permite penetrar no sentido
filosófico. E no sentido prático também, de um pólo a outro. A
renovação é um fato. Tu já soube da última moda em matéria de
cirurgia plástica? Nos Estados Unidos, está uma verdadeira febre.
— Pode estar, mas não na frente do
Brasil. Nesse ponto, o Brasil sempre esteve muito bem.
— Não na parte a que eu vou me
referir. Agora a moda é operação plástica vaginal, meu amigo, é
isso aí. Quer mais renovação do que isso?
— Plástica vaginal? Mas para
corrigir defeitos de anatomia, essas coisas, né não? É cirurgia
corretiva.
— Nada disso, cirurgia estética! É
a evolução natural. Primeiro foram os pêlos, tu sabe que o
pentelheiro é hoje um especialista importante, ou não sabe? Já
estão até propondo um nome mais respeitável, vai ver regulamentam
a profissão. O nome é “pectineocista”, chique, não é? É
outro ponto em que o Brasil está na vanguarda, tem até um corte
chamado Brazilian, isto aqui não é só Santos Dumont, não, cara.
Nós hoje dispomos de grandes profissionais.
— É, isso eu acompanho mais ou
menos nas revistas.
— Pois é, tem o Brazilian, tem
aquele que parece cabelo de índio seminole, tem o bigodinho do
Hitler, tem o coração, tem muita criatividade. E agora eles vão
mais fundo, já é especialidade médica, pode esperar que vai pegar
aqui e vai ser já este ano. E tu ainda acha que não há renovação?
Já imaginou?
— É, vai ter modelos, vai ter gente
querendo uma igual à da fulana...
— Claro, o céu é o limite! Eu não
manjo muito, a não ser como amador fanático, mas fico imaginando
que pode pintar tudo. Siliconada, lipoaspirada, repuxadinha, com
botox... Hein, com botox deve ter uns efeitos colaterais
interessantes, tá sentindo aonde eu quero chegar? A paciente, ali
meio derrubadinha, toma uma aplicada de botox, sai da frente! E tu
não vê renovação? Tu é muito derrotista, essa área vai trazer
novidades sensacionais em 2005. O Homem tem toda a razão, será um
grande ano. A brasileira é uma grande mulher, vai encarar essa com
brilhantismo. E, com os craques da plástica que nós temos, aí
mesmo é que vamos atingir o sonho de grande potência, sacou? Se não
dá de um jeito, dá de outro, o bonde da História é que nós não
vamos perder.
João Ubaldo Ribeiro, em O rei da noite
CAPÍTULO XV. Em que se conta a desgraçada aventura, que a D. Quixote ocorreu com uns desalmados iangueses.
Conta o sábio Cid Hamete Benengeli
que assim que D. Quixote se despediu dos seus hospedeiros, e de todos
os que se acharam ao enterro do pastor Crisóstomo, ele e o seu
escudeiro se entranharam no mesmo bosque onde tinham visto
desaparecer a pastora Marcela; e, havendo andado por ele passante de
duas horas a procurá-la por todos os sítios, sem poderem dar com
ela, chegaram a um prado cheio de viçosa erva, por onde corria um
arroio fresco e deleitoso; tanto, que incitou e obrigou a passarem
ali a hora da sesta, que já principiava de apertar.
Apearam-se; e, deixando o jumento e
Rocinante à vontade pastar da muita verdura que por ali crescia,
foram-se aos alforjes, e, sem cerimônia alguma, em boa paz e
sociedade, amo e servo comeram do que neles acharam.
Não tratara Sancho de pear o
Rocinante, em razão de o conhecer por tão manso e pouco rinchão,
que todas as éguas da devesa de Córdova o não fariam desmandar-se.
Ordenou pois a sorte, e o diabo (que nem sempre dorme), que andasse
então por aquele vale pascendo uma manada de poldras galisianas de
uns arrieiros iangueses, os quais têm por costume tomarem com suas
récovas a sombra no verão em sítios mimosos de erva e água; e
aquele onde acertou de estar D. Quixote era um desses.
Sucedeu que ao Rocinante apeteceu
refocilar-se com as senhoras facas; e, saindo, apenas as farejou, do
seu natural passo e costume, sem pedir licença ao dono, deu o seu
trotezinho algum tanto picadete, e foi declarar a elas a sua
necessidade. Elas, porém, que pelas mostras deviam ter mais vontade
de pastar que de outra coisa, receberam-no com as ferraduras e à
dentada, de modo que em breves audiências lhe rebentaram as silhas,
e o deixaram sem sela e em pêlo. O que porém mais o deveu magoar
foi que, vendo os arrieiros que se lhes iam forçar as éguas,
acudiram com arrochos; e tanta lambada lhe deram que o estenderam no
chão numa lástima.
Já neste comenos D. Quixote e
Saricho, que tinham visto a tunda de Rocinante, chegavam esbaforidos;
e disse D. Quixote para Sancho:
— Pelo que vejo, amigo Sancho, estes
não são cavaleiros; são gente soez e de baixa ralé. Digo-te,
porque desta feita podes ajudar-me a tomar devida vingança do
agravo, que diante dos nossos olhos se há feito a Rocinante.
— Que diabo de vingança havemos de
tomar — respondeu Sancho — se eles são mais de vinte, e nós só
dois, e bem pode ser que só um e meio?
— Eu valho por cem — respondeu D.
Quixote.
E, metendo logo mão à espada,
arremeteu aos iangueses, e o mesmo fez Sancho Pança, influído do
exemplo do amo. Logo no primeiro rompante deu D. Quixote uma cutilada
num, que lhe abriu um saio de couro que trazia vestido, e boa parte
do ombro.
Os iangueses, que se viram investidos
de dois homens sós, sendo eles tantos, tornaram-se aos bordões e,
metendo aos dois no meio, começaram a malhar neles com grande afinco
e veemência. A verdade é que, logo à segunda lambada, deram com
Sancho em baixo, e o mesmo aconteceu a D. Quixote, sem lhe valer sua
destreza e bom ânimo; e quis a sua sorte que viesse a cair aos pés
de Rocinante, que ainda se não tinha erguido; por onde se vê a
fúria, com que maçam bordões postos em mãos rústicas e
enraivecidas.
Vendo pois os iangueses a má obra que
tinham feito, tornaram a carregar a récova, e seguiram jornada,
deixando aos dois aventureiros em pouco bom estado, e de estômago
ainda pior.
O primeiro que deu sinal de si foi
Sancho Pança, que, vendo perto o amo, lhe disse com tom de enfermo e
lastimado:
— Senhor D. Quixote! ah senhor D.
Quixote!…
— Que tens, Sancho mano? —
respondeu D. Quixote com o mesmo tom afeminado e dorido de Sancho.
— Queria, se pudesse ser —
respondeu este — que Vossa Mercê me desse dois golos daquela
bebida do feio Brás, se a tem aí à mão; talvez seja tão boa para
os ossos quebrados como para as feridas.
— Pois se eu aqui a tivesse, pobre
de mim! que mais nos era preciso? — respondeu D. Quixote — Mas eu
te juro, Sancho, palavra de cavaleiro andante, que, antes de passarem
dois dias, se a fortuna não ordenar o contrário, ou a hei-de ter em
meu poder, ou ruins mãos serão as minhas.
— E em quantos dias lhe parece a
Vossa Mercê que poderemos mover os pés? — replicou Sancho Pança.
— De mim sei eu dizer — respondeu
o moído cavaleiro D. Quixote — que não saberei acertar agora esse
cómputo de dias. Mas a culpa de tudo isto tenho-a eu, que meti mão
à espada contra homens que não eram armados cavaleiros como eu;
pelo que entendo que, em pena de ter infringido as leis da cavalaria,
é que o deus das batalhas permitiu que se me desse este castigo. Por
isso, irmão Sancho, deves ter sempre bem presente o que te vou
dizer, por interessar muito à saúde de ambos nós: em vendo que
semelhante canalha nos faz algum agravo, não esperes até eu pór
mão à espada contra eles, porque o não farei de sorte alguma; mas
desembainha tu logo a tua e regala-te de os castigar. Se em sua ajuda
e defensa acudirem cavaleiros, então eu te saberei defender e
ofendê-los com todo o meu poder, que já tens visto por mil sinais e
experiências até onde chega o valor deste meu forte braço.
Tal ficara de arrogante o pobre
fidalgo depois da vitória do valente biscainho!
Mas a Sancho é que não pareceu tão
bem o conselho do amo, que deixasse de lhe replicar, dizendo:
— Senhor, eu sou homem pacífico,
manso e sossegado, e sei disfarçar qualquer injúria, porque tenho
mulher e filhos que manter e criar; e portanto fique a Vossa Mercê
também de advertência, pois mando não pode ser, que de modo nenhum
meterei mão à espada, nem contra vilão nem contra cavaleiro; e que
daqui em diante Deus perdoe quantos agravos se me têm feito e se me
hão-de fazer, embora mos tenha feito, faça ou haja de fazer pessoa
alta ou baixa, rico ou pobre, fidalgo ou mecânico, sem excetuar
nenhum estado nem condição.
Ouvindo o amo aquilo, respondeu:
— Quisera ter forças para poder
falar com algum descanso, e que a dor que tenho nestas costelas se me
aplacasse, para te eu dar a entender, Pança, o erro em que estás.
Vem cá, pecador; se o vento da fortuna, tão contrário até aqui,
vira de rumo para nos favorecer, enchendo-nos as velas do desejo,
para que seguramente, e sem contraste algum, aportemos em algumas das
ilhas que já te prometi, que seria de ti se, ganhando-a, eu te
fizesse senhor dela? pois hás-de tu mesmo impossibilitar-me de o
realizar, por não seres armado cavaleiro nem quereres sê-lo, nem
teres valor nem tenção de vingar as tuas injúrias, e defender os
teus domínios?! porque hás-de saber que nos reinos e províncias
recém-conquistadas nunca os ânimos dos seus naturais estão
sossegados, nem tão favoráveis ao novo senhor, que se não tema
alguma novidade para se alterarem de novo as coisas, e se tornar,
como dizem, a tentar de novo fortuna; e portanto é necessário que o
novo possessor tenha entendimento para se saber governar, e valor
para ofender e defender-se em qualquer contingência.
— Nisto que nos agora aconteceu —
tornou Sancho — quisera eu ter tido esse entendimento e esse valor
que Vossa Mercê diz; mas eu lhe juro, à fé de pobre homem, que
mais estou eu para emplastros, que para arrazoados. Olhe Vossa Mercê
se se pode levantar, e ajudaremos ao Rocinante a pór-se em pé
(ainda que bem pouco o merece por ter sido o causador desse barulho).
Nunca tal esperei de Rocinante; tinha-o por pessoa casta, e tão
pacífica de si como eu próprio. Enfim, bem dizem lá que é preciso
muito tempo para se acabar de conhecer os indivíduos, e que não há
coisa segura nesta vida. Quem havia de dizer que atrás daquelas tão
grandes cutiladas, como as que Vossa Mercê deu naquele desgraçado
cavaleiro andante, nos havia de vir pela porta, e no alcance, este
temporal tamanho de pauladas que nos desabou nos espinhaços?
— Ainda o teu, Sancho — replicou
D. Quixote — deve estar acostumado a borrascas destas; porém o
meu, criado entre esguiões e holandas finas, claro está que há-de
sentir mais a dor desta desgraça; e se não fosse por imaginar (que
digo? imaginar!) por saber, que todos estes descómodos andam muito
anexos ao exercício das armas, aqui me deixara morrer de pura
vergonha.
Respondeu o escudeiro:
— Senhor meu, já que estas
desgraças são fruto da cavalaria, diga-me Vossa Mercê se costuma
haver muitas sáfaras delas, ou se têm suas estações fora das
quais se não apanham; porque a mim me parece que, depois de duas
colheitas assim, já nos podemos dar por dispensados para terceira,
se Deus com sua infinita misericórdia nos não socorre.
— Sabe, amigo Sancho — respondeu
D. Quixote — que a vida dos cavaleiros andantes está sujeita a mil
perigos e desventuras, assim como, nem mais nem menos, estão eles
também sempre em contingências muito próximas de subirem a Reis e
Imperadores, como a experiência o tem mostrado em diversos e muitos
cavaleiros, de cujas histórias eu tenho inteira notícia. Pudera
contar-te agora, se a dor me desse vaga, de alguns que, só pelo
valor do seu braço, têm subido aos altos estados que te disse; e
esses mesmos se viram, antes e depois, em diversas calamidades e
misérias; porque o valoroso Amadis de Gaula caiu em poder do seu
mortal inimigo Arcalau o encantador, a respeito do qual se tem por
averiguado que, tendo-o preso e atado numa coluna de um pátio, lhe
deu para cima de duzentos açoites com as rédeas do seu cavalo; e
até há um autor secreto de não pequeno crédito, que diz que,
tendo o cavaleiro del Febo topado em certo alçapão que se lhe abriu
debaixo dos pés em certo castelo, ao cair se achou numa profunda
cova subterrânea atado de pés e mãos; e ali lhe deram um destes
clisteres que chamam de água de neve e areia, que o deixou nas
últimas; e se não fora socorrido naquela grande tribulação por um
grande sábio seu amigo, muito mal iria ao pobre cavaleiro. Portanto,
Sancho, por onde tanta gente boa tem passado, bem posso passar eu
também. Maiores foram os impropérios por eles curtidos, que estes
nossos agora. Hás-de saber, Sancho, que as feridas que afrontam não
são as que se fazem com os instrumentos que se acham à mão; o que
se contém na lei dos duelos escrito por estes próprios termos: que
se o sapateiro dá noutrem com a forma que na mão tem, posto que ela
seja realmente de pau, nem por isso se dirá que levou paulada aquele
em quem deu. Digo isto para que não cuides que, se bem saímos desta
pendência moídos, ficamos por isso afrontados; porque as armas que
traziam aqueles homens, e com que nos machucaram, não eram outras
senão os seus bordões; e nenhum deles (se bem me lembra) continha
estoque, espada, nem punhal.
— A mim não me deram vagar —
respondeu Sancho — para reparar nisso, porque apenas meti mão à
minha tisona, quando logo me benzeram os lombos com os paus,
por modo que se me foi o lume dos olhos e a força dos pés, pregando
comigo onde agora jazo; e pouco me importa saber se foram afronta, ou
não, as bordoadas; o que me importa são as dores delas, que hão-de
ficar tão impressas na memória, como no espinhaço.
— Com tudo isso, sabe, irmão Pança
— replicou D. Quixote — que não há lembrança que se não gaste
com o tempo, nem dor que por morte não desapareça.
— E pois, que desgraça pode haver
maior — replicou Sancho — que a que só o tempo cura, e só a
morte acaba? Se este nosso contratempo fora daqueles que se curam com
um par de emplastros, ainda não fora tão mau, mas já vou vendo que
nem todos os emplastros de um hospital hão-de bastar para nos pór
sequer a bom caminho.
— Deixa-te disso, e faze das
fraquezas forças, Sancho — respondeu D. Quixote — que assim
farei eu também; e vejamos como está o Rocinante que, ao que me
parece, o coitado não apanhou menor quinhão que nós outros.
— Não admira — respondeu Sancho —
por isso é também andante; o que a mim me espanta é que o meu
jumento escapasse com as costas inteiras, donde nós outros trouxemos
quebradas as costelas.
— Nas desgraças — respondeu D.
Quixote — sempre a ventura deixa uma porta aberta pararemédio; e
digo assim, porque esta bestiaga nos poderá agora suprir a falta de
Rocinante, levando-me daqui para algum castelo, onde seja curado das
feridas; e nem por isso haverei por desonra tal cavalgadura, porque
me lembro de ter lido que aquele bom velho de Sileno, aio e pedagogo
do alegre deus da folgança, quando entrou na cidade das cem portas
ia muito a seu gosto escarranchado num formosíssimo asno.
— Iria escarranchado como Vossa
Mercê diz — respondeu Sancho — porém é muito diferente ir
escarranchado, de ir atravessado como uma sacada de trapos velhos.
Ao que D. Quixote respondeu:
— As feridas que nas batalhas se
recebem antes dão honra do que a tiram; e assim, Pança amigo, não
me repliques mais; e, segundo já te disse, levanta-te como puderes,
e põe-me do modo que melhor te parecer em cima do teu jumento.
Vamo-nos daqui antes que a noite chegue e nos apanhe neste
despovoado.
— Pois eu não ouvi dizer a Vossa
Mercê — disse Pança — que era muito próprio de cavaleiros
andantes o dormirem nos andurriais e desertos o mais do ano, e que
eles o reputavam por grande ventura?
— Isso é — disse D. Quixote —
quando de outro modo se não pode, ou quando estão enamorados; e é
tão verdade isto, que tem havido cavaleiro que esteve sobre uma
penha ao sol, à sombra, e às inclemências do tempo, dois anos, sem
que o soubesse sua senhora; e um deles foi Amadis, quando,
chamando-se Beltenebrós, se alojou na Penha-pobre não sei se oito
anos, ou oito meses (da conta é que não estou bem certo); basta que
esteve ali fazendo penitência por não sei que desgosto que lhe deu
a senhora Oriana. Mas deixemos já isto, Sancho, e conclui antes que
suceda ao jumento alguma outra desgraça como a de Rocinante.
— Essa fora do diabo — disse
Sancho.
E, despedindo trinta ais, sessenta
suspiros, e cento e vinte “más horas” e “t'arrenegos” contra
quem ali o trouxera, lá se foi levantando derreado e curvo como arco
turquesco, sem poder acabar de endireitar-se; e com todo este
trabalho aparelhou o seu asno, que também tinha andado seu tanto
distraído com a demasiada liberdade daquele dia.
Depois levantou a Rocinante, o qual,
se tivera língua com que se queixar, à fé que nem Sancho nem seu
amo seriam capazes de lhe tapar a boca.
Em conclusão: Sancho acomodou ao
fidalgo sobre o asno, e, prendendo-lhe o Rocinante pela arreata, e
levando o asno pelo cabresto, se dirigiu por onde pouco mais ou menos
lhe pareceu que devia ir a estrada real. A sorte, que as suas coisas
ia encaminhando de bem a melhor, ainda não tinham andado uma pequena
légua, quando lhes deparou o caminho; nele descobriram uma venda,
que, a pesar seu, e a contento de D. Quixote, devia ser um castelo.
Sancho porfiava que era venda, e seu
amo que não, porém castelo; e tanto durou a teima, que antes de se
acabar, lhes deu tempo de chegarem lá. Entrou Sancho, sem mais
averiguação, com toda a sua récua.
Miguel de Cervantes, em Dom Quixote de La Mancha
quinta-feira, 10 de abril de 2025
Louvação para uma cor
o amarelo furável.
Ao meio-dia as abelhas, o doce ferrão e o mel.
Os ovos todos e seu núcleo, o óvulo.
Este, dentro, o minúsculo.
Da negritude das vísceras cegas,
amarelo e quente, o minúsculo ponto,
o grão luminoso.
Distende e amacia em bátegas
a pura luz de seu nome,
a cor tropicardiosa.
Acende o cio,
é uma flauta encantada,
um oboé em Bach.
O amarelo engendra.
Adélia Prado, em Bagagem
Solo
Os mortos são ridículos como bonecos
de engonço a que cortassem os fios... Os seus amores estão
esperando, os seus negócios, os seus amigos estão esperando, e eles
ali caídos, esquecidos de tudo! Como lhes pôde vir de repente esse
desapego infinito por tudo o que mais queriam? Ou eles estavam
fingindo antes, os sonsos, ou estão fingindo agora! Não posso
absolutamente compreender que o dr. Gouvarinho haja esquecido as
nossas partidas de solo, que haja desistido de tirar revanche,
desistido dos seus calos, que marcavam chuva, e do seu guarda-chuva,
que nunca abria direito! Não posso, não posso compreender...
Observo-lhe os sapatos novos... Conto as tábuas do teto... (É a
primeira vez que os nossos silêncios em comum me deixam
constrangido.) Puxo o relógio. Escondo-o vivamente. Cruzo os
dedos... descruzo os dedos... Retiro-me.
Paro, um instante, no portal...
Mas ele nem me fez um psiu!
Mário Quintana, em Sapato Florido
Espere um instante
Suspiros, o ritmo dos nossos
batimentos cardíacos, as contrações do parto, orgasmos, tudo entra
no mesmo compasso como relógios de pêndulo postos um ao lado do
outro logo batem em uníssono. Vaga-lumes numa árvore acendem e
apagam ao mesmo tempo. O sol se levanta e se põe. A lua cresce e
míngua e geralmente o jornal da manhã pousa em frente à porta às
seis e trinta e cinco.
O tempo para quando alguém morre.
Claro que para para quem morre, talvez, mas para quem fica de luto o
tempo entra em parafuso. A morte vem cedo demais. Ela esquece das
marés, dos dias que estão ficando mais curtos ou mais longos, da
lua. Rasga o calendário. Você não está diante da sua mesa, nem no
metrô, nem preparando o jantar das crianças. Você está lendo
People na sala de espera de um centro cirúrgico, ou tremendo de frio
numa varanda fumando a noite inteira. Você está olhando para o
vazio, sentado no seu quarto de criança com o globo em cima da mesa.
Pérsia, Congo Belga. O lado ruim é que, quando você volta à sua
vida normal, todas as rotinas, todos os marcos do dia ficam parecendo
mentiras sem sentido. Tudo é suspeito, tudo é um truque para nos
acalmar, nos ninar e nos restituir à plácida inexorabilidade do
tempo.
Quando alguém tem uma doença
terminal, a reconfortante agitação do tempo é estilhaçada. Rápido
demais, não dá tempo, eu te amo, preciso terminar isso, diga aquilo
para ele. Espere um instante! Eu quero explicar. Onde é que está o
Toby, afinal? Ou então o tempo se torna sadicamente lento. A morte
só fica ali, pairando, enquanto você espera que anoiteça e depois
que amanheça. Todo dia você se despede um pouco. Ah, pelo amor de
Deus, acaba com isso de uma vez. Você não para de olhar para o
quadro de Chegadas e Partidas. As noites são intermináveis porque
você acorda com qualquer tossezinha ou soluço, depois fica acordada
ouvindo a pessoa respirar suavemente, como uma criança. Em tardes
passadas ao lado de uma cama, você sabe que horas são pela passagem
da luz do sol, agora na Virgem de Guadalupe, agora no nu a carvão,
no espelho, na caixa de joias trabalhada, ofuscante no frasco de
Fracas. O vendedor de camote apita na rua lá embaixo e então você
ajuda sua irmã a ir para a sala para assistir às notícias da
Cidade do México e depois às notícias dos Estados Unidos com Peter
Jennings. Os gatos vêm se sentar no colo dela. Ela tem um tanque de
oxigênio, mas mesmo assim o pelo deles dificulta sua respiração.
“Não! Não os leve embora. Espere um instante.”
Toda noite, depois dos noticiários,
Sally chorava. Debulhava-se em lágrimas. Provavelmente não era um
choro demorado, mas, na dobra temporal da doença dela, era
interminável, dolorido e rouco. Não consigo me lembrar se, no
início, minha sobrinha Mercedes e eu chorávamos com ela. Acho que
não. Nem eu nem ela somos muito de chorar. Mas nós a abraçávamos
e beijávamos, cantávamos para ela. Tentávamos fazer piadas.
“Talvez fosse melhor a gente ver o noticiário do Tom Brokaw.”
Fazíamos sucos, chás e chocolate quente para ela. Não lembro
quando exatamente ela parou de chorar, pouco antes de morrer, mas,
quando parou, aí sim foi horrível de verdade, aquele silêncio, e
durou muito tempo.
Quando chorava, ela às vezes dizia
coisas como “Desculpe, deve ser a quimioterapia. É uma espécie de
reflexo. Não liguem”. Outras vezes, porém, ela implorava que
chorássemos com ela.
“Não consigo, mi Argentina”,
Mercedes dizia. “Mas o meu coração está chorando. Como sabemos
que vai acontecer, nós automaticamente endurecemos.” Era gentil da
parte dela dizer isso. O choro simplesmente me deixava maluca.
Uma vez, enquanto chorava, Sally
disse: “Eu nunca mais vou ver jumentos!”, o que eu e Mercedes
achamos engraçadíssimo. Sally ficou furiosa, atirou sua xícara e
seus pratos, nossos copos e o cinzeiro na parede. Virou a mesa com um
chute, berrando conosco. Suas malvadas, frias, calculistas. Vocês
não têm um pingo de compaixão, de piedade.
“Nem uma mísera lágrima. Vocês
nem parecem tristes.” Ela estava sorrindo a essa altura. “Vocês
são como sargentonas. ‘Beba isto. Tome aqui um lenço. Vomite na
bacia.’”
Mais tarde, nós a preparávamos para
ir para a cama, dávamos os remédios, uma injeção. Eu dava um
beijo nela e a cobria. “Boa noite. Eu te amo, minha irmã, my
sister, mi cisterna.” Eu dormia num quartinho, um closet, ao
lado do quarto dela, e a ouvia por trás da parede de compensado,
lendo, cantando baixinho, escrevendo. Às vezes ela chorava na cama,
e esses eram os piores momentos, porque ela tentava abafar esses
choros tristes e silenciosos com o travesseiro.
No início eu ia para perto dela e
tentava consolá-la, mas isso parecia fazer com que ela chorasse
mais, ficasse mais nervosa. O remédio para dormir acabava fazendo o
efeito oposto e a deixava desperta, agitada e enjoada. Então passei
a só falar com ela: “Sally. Minha querida Sal y pimienta,
Salsa, não fique triste”. Coisas assim.
“Lembra que a Rosa costumava pôr
tijolos quentes na nossa cama, no Chile?”
“Eu tinha me esquecido disso!”
“Você quer que eu procure um tijolo
pra você?”
“Não, mi vida, eu já estou
quase dormindo.”
Ela havia feito mastectomia e
radioterapia e depois, durante cinco anos, tinha ficado bem. Bem de
verdade. Radiante e bonita, extremamente feliz com um homem gentil,
Andrés. Ela e eu nos tornamos amigas, pela primeira vez desde a
nossa difícil infância. Tinha sido como se apaixonar, nossa
descoberta uma da outra, o modo como nos abrimos. Fomos a Yucatán e
a Nova York juntas. Eu ia para o México ou ela ia para Oakland.
Quando nossa mãe morreu, passamos uma semana em Zihuatanejo, onde
conversávamos dia e noite. Exorcizamos nossos pais e nossas próprias
rivalidades, e acho que nós duas crescemos.
Eu estava em Oakland quando ela
telefonou. O câncer estava nos pulmões agora. Em toda parte. Não
restava mais muito tempo. Apúrate. Vem para cá agora!
Levei três dias para sair do meu
emprego, arrumar as malas e entregar o apartamento. No avião rumo à
Cidade do México, eu pensava em como a morte despedaça o tempo.
Minha vida normal tinha desaparecido. Terapia, aulas de natação.
Que tal um almoço na sexta? A festa de Gloria, dentista amanhã,
lavar roupa, pegar livros com Moe, limpar a casa, comprar ração de
gato, tomar conta dos netos no sábado, encomendar gaze e sondas de
gastrostomia no trabalho, escrever para August, falar com Josee,
assar bolinhos, C. J. está vindo aí. Mais estranho ainda foi, um
ano depois, encontrar com funcionários da mercearia ou da livraria
ou com amigos na rua que não tinham sequer percebido que eu tinha
estado fora.
Telefonei para Pedro, o oncologista de
Sally, do aeroporto no México, querendo saber o que esperar. Tinha
parecido que era uma questão de semanas ou, no máximo, um mês. “Ni
modo”, disse ele. “Nós vamos continuar com a químio. Pode levar
seis meses, um ano, talvez mais.”
“Era só você ter falado ‘Eu
quero que você venha agora’, eu teria vindo”, eu disse a ela
mais tarde naquela noite.
“Não teria não!”, ela disse,
rindo. “Você é realista. Você sabe que eu tenho empregadas para
fazer tudo, e enfermeiras, médicos, amigos. Você ia achar que eu
não precisava de você ainda. Mas eu quero você agora, para me
ajudar a botar tudo em ordem. Eu quero que cozinhe para que a Alicia
e o Sergio venham comer aqui. Eu quero que leia pra mim e cuide de
mim. Agora é que eu estou sozinha e apavorada. Eu preciso de você
agora.”
Todos nós temos álbuns de
fotografias mentais. Instantâneos. Imagens de pessoas que amamos em
diferentes épocas. Essa é Sally com roupa de corrida verde-escura,
sentada de pernas cruzadas na cama dela. A pele luminosa, os olhos
verdes delineados por lágrimas enquanto ela falava comigo. Sem
dissimulações nem autopiedade. Eu a abracei, grata pela confiança
que ela tinha em mim.
No Texas, quando eu tinha oito anos e
ela três, eu odiava Sally, sentia um ciúme violento dela. Nossa avó
me deixava por minha própria conta, à mercê dos outros adultos,
mas protegia a pequena Sally, penteava o cabelo dela e fazia tortas
só para ela, ninava-a e cantava “Way Down in Missoura” para ela
dormir. Mas eu tenho instantâneos dela mesmo dessa época, sorrindo,
me oferecendo um pedaço de bolo com uma inegável doçura que ela
nunca perdeu.
Na Cidade do México, os primeiros
meses passaram voando, como quando os calendários vão perdendo as
folhas em filmes antigos. Como num filme de Charlie Chaplin
acelerado, carpinteiros martelavam na cozinha, encanadores ribombavam
no banheiro. Homens vieram consertar todas as maçanetas e janelas
quebradas, lixar os assoalhos. Mirna, Belen e eu atacamos o quarto de
cacarecos, o topanco, os armários, as estantes e gavetas. Jogamos
fora sapatos, chapéus, coleiras de cachorro, túnicas. Mercedes,
Alicia e eu tiramos todas as roupas e joias de Sally dos armários e
etiquetamos as que ela queria dar para diferentes amigas.
Doces tardes preguiçosas no chão do
quarto de Sally, separando fotografias, lendo cartas, poemas,
fofocando, contando histórias. O telefone e a campainha tocavam o
dia inteiro. Eu filtrava as ligações e as visitas, era quem as
interrompia se ela estava cansada, ou não interrompia se ela estava
feliz, como sempre ficava com Gustavo.
Assim que uma pessoa é diagnosticada
com uma doença fatal, ela recebe uma avalanche de telefonemas,
cartas, visitas. Mas, conforme os meses vão passando e o tempo vai
se transformando em tempos difíceis, cada vez menos gente aparece. É
quando a doença está avançando e o tempo é lento e barulhento.
Você ouve os relógios, os sinos das igrejas, os vômitos, cada
respiração áspera.
O ex-marido de Sally, Miguel, e Andrés
vinham todos os dias, mas em horários diferentes. Só uma vez as
visitas deles coincidiram. Fiquei espantada com a maneira como a
prioridade foi automaticamente dada ao ex-marido. Ele havia se casado
de novo fazia muito tempo, mas ainda era preciso tomar cuidado para
não ferir o orgulho dele. Andrés tinha entrado no quarto de Sally
fazia poucos minutos. Eu trouxe café e pan dulce para ele.
Assim que pousei a bandeja em cima da mesa, Mirna entrou para dizer
“O señor está vindo!”.
“Rápido, para o seu quarto!”,
disse Sally. Andrés correu para o meu quarto, carregando o café e o
pan dulce. Eu tinha acabado de fechá-lo lá dentro quando
Miguel chegou.
“Café! Eu preciso de café!”, ele
disse. Então, eu entrei no meu quarto, tirei o café e o pan
dulce de Andrés e os levei para Miguel. Andrés desapareceu.
Fiquei muito fraca e com dificuldade
de andar. Achamos que fosse estress (não há nenhuma palavra em
espanhol para stress), mas acabei desmaiando na rua e sendo levada
para a emergência de um hospital. Eu estava com uma anemia grave por
causa de uma hérnia esofágica com sangramento. Fiquei internada
alguns dias para fazer transfusões de sangue.
Estava me sentindo muito mais forte
quando voltei, mas a minha doença tinha deixado Sally assustada. A
morte havia nos lembrado que ela ainda estava lá. O tempo acelerou
de novo. Eu achava que Sally tinha pegado no sono e me levantava para
ir para a minha cama.
“Não vá embora!”
“Eu só vou ao banheiro e já
volto.” Durante a noite, se ela se engasgava ou tossia, eu acordava
e ia até lá para ver como ela estava.
Ela estava usando oxigênio agora e
raramente saía da cama. Eu lhe dava banho no quarto dela, dava
injeções para amenizar a dor e a náusea. Ela tomava um pouco de
sopa, comia bolachas de água e sal às vezes. Gelo moído. Eu botava
gelo numa toalha e batia, batia, batia a toalha contra a parede de
concreto. Mercedes se deitava ao lado dela e eu me deitava no chão,
lendo para elas. Quando elas pareciam estar dormindo, eu parava, mas
as duas diziam “Não pare!”.
Bueno. “Eu desafio qualquer
um a dizer que a nossa Becky, que certamente tem lá seus defeitos,
não foi apresentada ao público de uma maneira absolutamente
elegante e inofensiva…”
Pedro aspirou o pulmão dela, mas
mesmo assim Sally estava tendo cada vez mais dificuldade de respirar.
Eu decidi que nós devíamos fazer uma limpeza de verdade no quarto
dela. Mercedes ficou com ela na sala enquanto Mirna, Belen e eu
varríamos e tirávamos o pó, lavávamos as paredes, as janelas e o
chão. Eu mudei a cama dela de lugar, botando-a na horizontal debaixo
da janela; agora Sally ia poder ver o céu. Belen botou lençóis
limpos e passados e cobertas macias na cama e nós levamos Sally de
volta para o quarto. Ela se recostou no travesseiro, e o sol da
primavera bateu em cheio no seu rosto.
“El sol”, disse Sally. “Eu
posso sentir o sol daqui.”
Eu me sentei encostada na outra parede
e fiquei vendo Sally olhar pela janela. Avião. Pássaros. Um rastro
de jato. O pôr do sol!
Bem mais tarde, eu lhe dei um beijo de
boa-noite e fui para o meu quartinho. O umidificador do tanque de
oxigênio dela borbulhava como uma fonte. Fiquei esperando para ouvir
o tipo de respiração que significava que ela tinha adormecido. O
colchão dela rangeu. Ela arfou e depois gemeu, respirando
ruidosamente. Fiquei ouvindo e esperando e, então, escutei o
tlim-tlim das argolas da cortina acima da cama dela.
“Sally? Salamandra, o que você está
fazendo?”
“Estou olhando para o céu!”
Perto dela, olhei lá para fora pela
minha própria janelinha.
“Oye, irmã…”
“O que foi?”, perguntei.
“Eu estou ouvindo. Você está
chorando por mim!”
Faz sete anos que você morreu. Claro
que a próxima coisa que eu vou dizer é que o tempo voou. Fiquei
velha. De repente. Ando com dificuldade. Babo até. Deixo a porta
destrancada para o caso de eu morrer enquanto estiver dormindo, mas o
mais provável é que eu continue assim indefinidamente até ser
internada em algum lugar. Já estou caducando. Outro dia estacionei
meu carro numa transversal porque a vaga onde eu costumo parar já
estava ocupada. Mais tarde, quando vi a vaga vazia, fiquei me
perguntando para onde eu tinha ido. Não é tão estranho eu falar
com o meu gato, mas me sinto idiota porque ele é completamente
surdo.
Mas nunca há tempo suficiente. “Tempo
de verdade”, como os prisioneiros para quem eu dava aula diziam,
explicando como só parecia que eles tinham todo o tempo do mundo. O
tempo nunca era deles.
Estou dando aula agora numa
cidadezinha de montanha bonita, fresa. Nas mesmas montanhas
Rochosas onde papai minerava, só que muito diferente de Butte ou
Coer d’Alene. Mas tenho sorte. Tenho bons amigos aqui. Moro no
sopé, onde cervos passam, elegantes e discretos, pela minha janela.
Vi cangambás cruzando ao luar; seus gritos ásperos eram como
instrumentos orientais.
Sinto saudades dos meus filhos e de
suas famílias. Vejo-os talvez uma vez por ano e é sempre ótimo,
mas não faço mais realmente parte da vida deles. Nem da vida dos
seus filhos, Sally, embora Mercedes e Enrique tenham vindo se casar
aqui!
Tantas outras pessoas se foram. Eu
costumava achar estranho quando alguém dizia “Eu perdi meu
marido”. Mas essa é a sensação que dá. Alguém desapareceu.
Paul, tia Chata, Buddy. Eu entendo as pessoas que acreditam em
fantasmas ou fazem sessões espíritas para invocar os mortos. Passo
meses sem pensar em ninguém a não ser nos vivos e então Buddy
aparece com uma piada, ou você surge vividamente na minha frente,
evocada por um tango ou uma agua de sandía. Se pelo menos
você pudesse falar comigo. Você é tão inútil quanto o meu gato
surdo.
Você veio pela última vez alguns
dias depois da nevasca. Gelo e neve ainda cobriam o chão, mas nós
tivemos a sorte inesperada de um dia quente. Esquilos e pegas-rabudas
estavam matraqueando e pardais e tentilhões cantavam em árvores
desfolhadas. Abri todas as portas e cortinas. Tomei chá na mesa da
cozinha sentindo o sol nas minhas costas. Vespas saíram do ninho na
varanda da frente, atravessaram a minha casa planando sonolentamente
e ficaram voando em círculos modorrentos pela cozinha inteira. Bem
nessa hora a bateria do detector de fumaça descarregou, e então o
alarme começou a cricrilar feito um grilo no verão. O sol alcançou
o bule de chá, o pote de farinha, o vaso de flores prateado.
Uma iluminação preguiçosa, como uma
tarde mexicana no seu quarto. Eu vi o sol no seu rosto.
Lucia Berlin, em Manual da faxineira: Contos escolhidos