Despedida

Se tiver que ir,
vai.
O que fica para trás,
não sendo mentira,
não racha,
nem rompe,
não cai.
Ninguém tira.
Já que vai,
segue se depurando pelo trajeto,
para desembarcar passado a limpo,
sem máscara,
sem nada,
sem nenhum desafeto.
Quando chegar,
sobe ao ponto mais alto do lugar,
onde a encosta do mundo
faz a curva mais pendente.
Então acena.
De onde eu estiver, quero enxergar
esse momento em que você vai constatar
que a vida vale grandemente a pena.

Flora Figueiredo, em Amor a céu aberto

A língua

Conta-me Cláudio Mello e Souza. Estando em um café de Lisboa a conversar com dois amigos brasileiros, foram eles interrompidos pelo garçom, que perguntou, intrigado: — Que raio de língua é essa que estão aí a falar, que eu percebo tudo?

Rubem Braga, em Recado de primavera

Propagação e difusão do entendimento

O sol parece ter se dispersado. De fato, propaga-se em todas as direções, mas não se dispersa, pois essa propagação é uma extensão. Seus raios são chamados de “extensões” porque se “estendem”.
Você pode observar o que é um raio solar caso enxergue um feixe de luz atravessando uma abertura estreita e iluminando uma sala escura. Ele se estende em linha reta e se difunde quando incide sobre qualquer objeto sólido que o eclipsa e que intercepta o ar. Nessa superfície, a luz se fixa — não desliza nem desprende.
Assim deve ser a propagação e a difusão do entendimento. Deve não se dispersar, mas sim se estender. Não deve colidir violenta ou impetuosamente com as superfícies. Deve fixar-se sem desprender e iluminar onde atinge. A superfície que não o absorve se priva da iluminação.

Marco Aurélio, em Meditações

O Apanhador no Campo de Centeio


6

Tem coisas difíceis da gente lembrar. Por exemplo, a volta do Stradlater do encontro com a Jane. Quer dizer, não consigo lembrar direito o que é que eu estava fazendo quando ouvi a droga dos passos dele no corredor. Talvez ainda estivesse olhando pela janela, mas juro quê não me lembro. Estava preocupado demais, é por isso. Não brinco em serviço quando me preocupo com alguma coisa. Fico até precisando ir ao banheiro. Só que não vou, porque minha preocupação é tão grande que não quero interrompê-la só para ir lá. Qualquer um que conhecesse o Stradlater também ficaria preocupado. Já tínhamos saído juntos com garotas algumas vezes, e sei o que estou dizendo. Ele não tinha escrúpulos. Nem um pouco.
Seja como for, o corredor era forrado de linóleo e tudo, e a gente ouvia a porcaria dos passos dele se aproximando do quarto. Não me lembro mais nem onde estava quando ele entrou – se na janela, ou na minha cadeira, ou na dele. Juro que não me lembro.
Chegou se queixando do frio lá fora. Aí disse:
Onde é que se meteu o pessoal? Isso aqui tá parecendo mais uma droga dum necrotério.
Nem me dei ao trabalho de responder. Se a burrice dele não lhe permitiu ver que era sábado de noite e que quem não tinha ido passar o fim de semana em casa já estava dormindo – não era eu que ia perder meu tempo para ensinar isso a ele. Começou a tirar a roupa. Não disse nem uma porcaria duma palavra sobre a Jane. Nem umazinha. Nem eu, que fiquei só olhando para ele. Limitou-se a me agradecer pelo casaco que eu tinha emprestado. Pendurou-o num cabide e guardou no armário.
Aí, enquanto tirava a gravata, perguntou se eu havia escrito a droga da redação para ele. Respondi que estava em cima da porcaria da cama. Apanhou-a e foi lendo enquanto desabotoava a camisa. Ficou ali, de pé, lendo e alisando o peito e a barriga, com a maior cara de boçal. Ele vivia alisando o peito ou a barriga. Ele se adorava.
De repente, falou:
Que negócio é esse, Holden? Você escreveu sobre uma droga duma luva de beisebol!
E daí? – eu disse, com a maior frieza.
E daí o quê? Eu te disse que tinha que ser sobre uma porcaria duma sala, uma casa ou outro troço assim.
Você disse que tinha de ser descritiva. Qual é a diferença se é sobre uma luva de beisebol?
Merda!
Ele estava com uma raiva dos diabos. Furioso mesmo.
Por que é que tudo que você faz é enrolado, hem? – falou virando-se para mim. – Não é à toa que você vai ser chutado daqui do colégio. Não há uma merda duma coisa que você faça direito. É isso mesmo. Nem uma única porcaria.
Tá bem, então me dá aí a redação – falei. Fui até lá, arranquei o papel da mão dele e rasguei em pedacinhos.
Pra quê que você fez isso?
Nem respondi. Apenas joguei os pedacinhos na cesta de papéis. Aí me deitei na cama e nenhum de nós falou durante muito tempo. Ele tirou toda a roupa, ficando só de cuecas, e eu acendi um cigarro, ainda na cama. Era proibido fumar no dormitório, mas àquela hora da noite, com todo mundo dormindo ou na rua, ninguém podia sentir o cheiro e não tinha importância. Mas fumei mesmo só para chatear o Stradlater, que ficava doente quando a gente não cumpria o regulamento. Ele nunca fumava no dormitório, era sempre eu.
Ainda não tinha dito nem uma palavra sobre a Jane. Não me aguentei:
Você está chegando um bocado tarde, se é que ela só tinha mesmo licença para voltar às nove e meia. Ela chegou atrasada por tua causa?
Quando perguntei, ele estava sentado na beirada da cama, cortando a porcaria das unhas dos pés.
Só uns dois minutos. Também é o tipo da ideia infeliz ir dormir às nove e meia numa noite de sábado.
Puxa vida, como eu detestava aquele sujeito.
Vocês foram a Nova York? – perguntei.
Tá maluco? Como é que a gente podia ir a Nova York se às nove e meia ela tinha que estar de volta?
É, é meio difícil mesmo.
Olhou para mim.
Escuta aqui – ele disse. – Se você está com vontade de fumar, que tal dar uma chegadinha no banheiro, bem? Você está indo embora daqui, mas eu ainda preciso aguentar a mão até me formar.
Não dei pelota. Não dei mesmo. Continuei a fumar como uma chaminé. Só fiz me virar meio de lado e ficar olhando para ele, enquanto aparava a droga das unhas. Que colégio! A gente passava o tempo todo vendo alguém cortar a porcaria das unhas ou espremer as espinhas, ou coisa que o valha.
Você deu minhas lembranças a ela? – perguntei.
Dei.
Aposto que não deu, o sacana.
E aí, o quê que ela disse? Você perguntou a ela se ainda guarda todas as damas na última fila?
Não! Como é que ia perguntar um troço desses? Que é que você pensa que nós ficamos fazendo a noite inteira? Jogando damas, é? Essa não!
Se você não foi a Nova York, então pra onde foi? – perguntei um pouco depois. Minha voz já estava saindo trêmula pra burro. Puxa, como eu estava nervoso. Tinha a impressão de que havia acontecido alguma coisa esquisita entre eles dois.
Stradlater acabou de cortar a porcaria das unhas. Levantou-se, só de cuecas e tudo, e começou a bancar o brincalhão. Chegou junto da minha cama, se abaixou e ficou dando uns murros de brincadeira no meu ombro.
Para com isso – eu disse. – Se não foi a Nova York, pra onde é que você levou a Jane?
Pra lugar nenhum. Ficamos no carro mesmo – respondeu e me deu novamente um daqueles murrinhos idiotas no ombro.
Para com isso! No carro de quem?
Do Ed Banky.
Ed Banky era o técnico de basquete do Pencey. O Stradlater era protegido dele porque jogava de pivô no time. Por isso o carro do Ed Banky estava sempre à sua disposição. Era proibido aos alunos dirigir os carros dos professores, mas os sacanas que praticavam esporte eram um bocado unidos. Em todos os colégios onde estive, esses sacanas formavam sempre a sua panelinha.
Stradlater continuava a dar aqueles saquinhos de brincadeira no meu ombro. Botou na boca a escova de dentes que estava segurando.
Você mandou brasa nela dentro do carro do Ed Banky? – perguntei, com a voz tremendo mais do que gelatina.
Isso é coisa que se diga? Tá querendo que eu lave a tua boca com sabão?
Mandou ou não mandou?
Isso é segredo profissional, meu chapa.
Não me lembro direito do que aconteceu depois. Só sei que me levantei da cama, como se fosse para o banheiro ou coisa parecida, e tentei dar-lhe um murro de surpresa, com toda força, bem ali na escova de dentes, para furar a droga da garganta dele. Só que errei. Não consegui acertar direito. Quando muito, peguei-o no lado da cabeça. Talvez tivesse machucado um pouquinho, mas não como eu queria. Teria machucado de verdade, se eu não tivesse usado a direita, que é a minha mão fraca. Por causa daquele defeito de que eu já falei.
Afinal, quando vi já estava deitado no chão, e o Stradlater, com o rosto vermelho pra diabo, sentado em cima do meu peito. Quer dizer, a droga dos joelhos dele estavam fincados no meu peito e o safado pesava mais de uma tonelada. Meus pulsos também estavam presos, por isso não podia lhe dar outro murro. Tive vontade de matá-lo.
Quê que há com você? - ele repetia, a cara estúpida cada vez mais vermelha.
Tira essa merda desses joelhos de cima de mim – falei, quase urrando. Urrando mesmo. - Vamos, sai de cima de mim, seu filho da puta!
Mas ele não saiu. Continuou prendendo meus pulsos, e eu continuei a chamá-lo de filho da puta e tudo, durante mais de dez horas. Nem me lembro direito do que eu disse a ele. Disse que ele pensava que podia mandar brasa em quem bem entendesse. Disse que não fazia a menor diferença para ele se uma pequena deixava todas as damas na última fila ou não, e que ele só não se importava com isso porque era um imbecil total. Ele ficava furioso quando era chamado de imbecil. Todos os imbecis detestam ser chamados de imbecis.
Cala a boca, Holden! – ele disse, com a carona imbecil toda vermelha. – Cala a boca!
Você nem ao menos sabe se o nome dela é Jane ou Jean, seu boçalão!
Cala essa boca, Holden, que merda! Estou avisando – ele disse. O cara estava alucinado. – Se você não calar a boca vou te dar uma porrada.
Tira a droga desses joelhos de idiota de cima de mim.
Se eu te soltar, você fica calado?
Nem respondi. Ele repetiu:
Se eu te soltar, você vai ficar calado, Holden?
Vou.
Ele se levantou e eu também. Meu peito estava doendo pra chuchu do peso dos joelhos dele.
Você é um filho da puta dum imbecil – falei.
Aí o Stradlater virou fera de verdade. Ficou sacudindo o dedão na minha cara.
Porra, Holden, tou te avisando. Pela última vez. Se você não fechar a matraca, vou te...
Pra quê? – perguntei, quase gritando. – Esse é que é o problema com os imbecis como você. Nunca querem discutir coisa nenhuma. É assim que a gente descobre quem é boçal. Não discutem nunca um troço com inteligên...
Aí ele me mandou um murro tremendo e eu capotei. Não me lembro se cheguei a perder os sentidos, mas acho que não. Não é nada fácil nocautear uma pessoa, a não ser no cinema. Mas meu nariz pingava sangue pelo quarto todo. Quando abri os olhos, o Stradlater estava em pé, bem ao meu lado.
Por que diabo você não cala a boca quando eu mando? – perguntou.
Ele estava um bocado nervoso. Acho que estava apavorado, com medo que eu tivesse fraturado o crânio ou coisa parecida quando bati com a cabeça no chão. É pena que isso não tenha acontecido.
A culpa é tua, toda tua – ele disse.
Puxa, estava preocupado pra burro.
Nem me dei ao trabalho de levantar do chão. Continuei espichado ali mesmo, chamando-o de imbecil e filho da puta. Minha raiva era tanta que eu estava quase berrando.
Quer saber de uma coisa, vai lavar a cara – ele falou. – Tá ouvindo?
Disse que ele, se quisesse, que fosse lavar sua cara de boçal. Era o tipo da resposta infantil, mas eu estava com uma raiva desgraçada. Disse ainda que, no caminho do banheiro, desse uma parada e mandasse uma brasinha na Sra. Schmidt. A Sra. Schmidt era a mulher do zelador. Andava aí pelos sessenta e cinco anos.
Fiquei sentado no chão até ouvir o Stradlater fechar a porta e seguir para o banheiro, no fim do corredor. Então me levantei. Não conseguia achar a droga do meu chapéu de caça em lugar nenhum. Procurei um pouco mais e acabei encontrando, debaixo da cama. Botei-o na cabeça e virei a aba para trás, até ficar como eu gostava. Aí fui até o espelho dar uma olhada na minha cara de imbecil. Garanto que ninguém nunca viu ferimento igual àquele. Tinha sangue espalhado pela boca e pelo queixo, e até no pijama e no roupão. Fiquei meio assustado e meio fascinado. Todo aquele sangue me dava um jeitão de machão. Na minha vida inteira só tinha entrado numas duas brigas, e apanhei nas duas vezes. Não sou muito de briga. Para dizer a verdade, eu sou é pacifista.
Tinha a impressão de que o Ackley tinha ouvido a bagunça toda e estava acordado. Por isso atravessei as cortinas do banheiro que ficavam entre o quarto dele e o nosso, só para ver o que ele estava fazendo. Eu quase nunca ia ao quarto dele, porque o sacana era tão relaxado em seus hábitos pessoais que o quarto dele sempre tinha um fedor meio esquisito.

J. D. Salinger, em O Apanhador no Campo de Centeio

Bocó

Quando o moço estava a catar caracóis e pedrinhas
na beira do rio até duas horas da tarde, ali
também Nhá Velina Cuê estava. A velha paraguaia
de ver aquele moço a catar caracóis na beira do
rio até duas horas da tarde, balançou a cabeça
de um lado para o outro ao gesto de quem estivesse
com pena do moço, e disse a palavra bocó. O moço
ouviu a palavra bocó e foi para casa correndo
a ver nos seus trinta e dois dicionários que coisa
era ser bocó. Achou cerca de nove expressões que
sugeriam símiles a tonto. E se riu de gostar. E
separou para ele os nove símiles. Tais: Bocó é
sempre alguém acrescentado de criança. Bocó é
uma exceção de árvore. Bocó é um que gosta de
conversar bobagens profundas com as águas. Bocó
é aquele que fala sempre com com sotaque das suas
origens. É sempre alguém obscuro de mosca. É
alguém que constrói sua casa com pouco cisco.
É um que descobriu que as tardes fazem parte de
haver beleza nos pássaros. Bocó é aquele que
olhando para o chão enxerga um verme sendo-o.
Bocó é uma espécie de sânie com alvoradas. Foi
o que o moço colheu em seus trinta e dois
dicionários. E ele se estimou.

Manoel de Barros, em Memórias Inventadas – A segunda infância

Diário de Bernardo Soares – Ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa

15.

Conquistei, palmo a pequeno palmo, o terreno interior que nascera meu.
Reclamei, espaço a pequeno espaço, o pântano em que me quedara nulo.
Pari meu ser infinito, mas tirei-me a ferros de mim mesmo.

Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego

A Renovação num Boteco do Leblon

Bem já falavam os antigos, o que passa devagar é o dia, o ano passa depressa. Num instante, hein, cara, lá se foi essa desgraça, já foi tarde.
Pra mim, não. Quer dizer, o ano não teve nada para comemorar, mas é sempre mais um ano que vai embora, não é? Na nossa idade, isso já começa a pesar, o cara fica matutando, fazendo conta... Tu faz conta?
Faz conta, como? Conta dos anos? Claro, eu vou contando os anos, é normal, todo mundo sabe quantos anos tem. Pode até negar, como você, mas sabe.
Não é isso, cara, eu não estou me referindo aos anos que a gente tem e, aliás, eu não nego a idade, quem nega é você, mas deixa isso pra lá. O que eu estou falando é nos anos que ainda restam, os que vêm pela frente, sacou? Tu faz conta dos anos que ainda deve ter pela frente, mais ou menos?
Ah, eu não. Quer dizer, às vezes. Às vezes eu penso assim... Mas é tudo muito aleatório. Vê o caso do Caldeira, tu manja bem o Caldeira, todo mundo manja, sempre de calção, peito cabeludo de fora, nada de cigarro, nada de birita, nada de perder noite, comida quase que somente capim, mais saúde do que a zaga da seleção da Nigéria e aí o que é que aconteceu? Sentiu uma pontadazinha na barriga, foi no médico, o médico mandou ele fazer uma cacetada de exames tipo Nasa e aí falou que nem precisava abrir, já estava tudo lá dentro tomado, negócio pra no máximo mais dois meses. Petê, saudações, como se dizia no tempo do telegrama. Não deu outra. Tu tem visto ele?
Não, ele...
Claro que não, pra ver tu tem de ir no São João Batista, corredor dos não-fumantes, ala natureba, quadra da lei seca, superquadra da aeróbica. É lá que ele está. Quer dizer, não dá pra prever, ficar minhocando esses troços, tu pode levar bala perdida, pode ser atropelado, pode ter uma porrada de coisas, quem está vivo está morto, não adianta pensar, só dá estresse.
É, eu sei, mas a gente não comanda os pensamentos, eles pintam sem autorização. Eu fico pensando assim que, descontando essas possibilidades que tu disse, mais ou menos dentro da chamada normalidade, eu faço as contas e aí penso que, com alguma sorte, emplaco mais uns quinze, né não? É, mais uns quinze está de bom tamanho. Com muita sorte, mas muita sorte mesmo, mais vinte, daí não pode passar. Tu lê obituário?
Taí, obituário eu leio. Leio e observo sempre a idade dos caras. Tem dias que é todo mundo na faixa dos oitentinha, são os melhores dias. Mas tem uns infartos com 50, 55, umas tais “prolongadas doenças” que todo mundo sabe quais são, tem umas coisas assim, o melhor seria não ler merda de obituário nenhum. Mas é vício, peguei o vício e agora é uma desgraça, vou em cima direto, leio eles antes de saber qual é a manchete.
Eu também leio, cara, também sou viciado. É isso e as contas, não tem jeito. Eu não quero, mas faço essas contas todo dia, quase toda hora.
Pô, não fala mais nesse troço, que eu também já estou aqui querendo entrar nessa de fazer conta, isso não tá com nada, cara, vamos parar com isso, é ano novo! Lembra o ditado: ano novo, vida nova! É isso aí, vida nova!
Isso tu repete sem notar que é besteira. Não tem nada de novo, está tudo ficando mais velho, nós e o mundo, tudo mais velho.
Eu tou falando no sentido filosófico, tua grossura nata não te permite penetrar no sentido filosófico. E no sentido prático também, de um pólo a outro. A renovação é um fato. Tu já soube da última moda em matéria de cirurgia plástica? Nos Estados Unidos, está uma verdadeira febre.
Pode estar, mas não na frente do Brasil. Nesse ponto, o Brasil sempre esteve muito bem.
Não na parte a que eu vou me referir. Agora a moda é operação plástica vaginal, meu amigo, é isso aí. Quer mais renovação do que isso?
Plástica vaginal? Mas para corrigir defeitos de anatomia, essas coisas, né não? É cirurgia corretiva.
Nada disso, cirurgia estética! É a evolução natural. Primeiro foram os pêlos, tu sabe que o pentelheiro é hoje um especialista importante, ou não sabe? Já estão até propondo um nome mais respeitável, vai ver regulamentam a profissão. O nome é “pectineocista”, chique, não é? É outro ponto em que o Brasil está na vanguarda, tem até um corte chamado Brazilian, isto aqui não é só Santos Dumont, não, cara. Nós hoje dispomos de grandes profissionais.
É, isso eu acompanho mais ou menos nas revistas.
Pois é, tem o Brazilian, tem aquele que parece cabelo de índio seminole, tem o bigodinho do Hitler, tem o coração, tem muita criatividade. E agora eles vão mais fundo, já é especialidade médica, pode esperar que vai pegar aqui e vai ser já este ano. E tu ainda acha que não há renovação? Já imaginou?
É, vai ter modelos, vai ter gente querendo uma igual à da fulana...
Claro, o céu é o limite! Eu não manjo muito, a não ser como amador fanático, mas fico imaginando que pode pintar tudo. Siliconada, lipoaspirada, repuxadinha, com botox... Hein, com botox deve ter uns efeitos colaterais interessantes, tá sentindo aonde eu quero chegar? A paciente, ali meio derrubadinha, toma uma aplicada de botox, sai da frente! E tu não vê renovação? Tu é muito derrotista, essa área vai trazer novidades sensacionais em 2005. O Homem tem toda a razão, será um grande ano. A brasileira é uma grande mulher, vai encarar essa com brilhantismo. E, com os craques da plástica que nós temos, aí mesmo é que vamos atingir o sonho de grande potência, sacou? Se não dá de um jeito, dá de outro, o bonde da História é que nós não vamos perder.

João Ubaldo Ribeiro, em O rei da noite

CAPÍTULO XV. Em que se conta a desgraçada aventura, que a D. Quixote ocorreu com uns desalmados iangueses.


Conta o sábio Cid Hamete Benengeli que assim que D. Quixote se despediu dos seus hospedeiros, e de todos os que se acharam ao enterro do pastor Crisóstomo, ele e o seu escudeiro se entranharam no mesmo bosque onde tinham visto desaparecer a pastora Marcela; e, havendo andado por ele passante de duas horas a procurá-la por todos os sítios, sem poderem dar com ela, chegaram a um prado cheio de viçosa erva, por onde corria um arroio fresco e deleitoso; tanto, que incitou e obrigou a passarem ali a hora da sesta, que já principiava de apertar.
Apearam-se; e, deixando o jumento e Rocinante à vontade pastar da muita verdura que por ali crescia, foram-se aos alforjes, e, sem cerimônia alguma, em boa paz e sociedade, amo e servo comeram do que neles acharam.
Não tratara Sancho de pear o Rocinante, em razão de o conhecer por tão manso e pouco rinchão, que todas as éguas da devesa de Córdova o não fariam desmandar-se. Ordenou pois a sorte, e o diabo (que nem sempre dorme), que andasse então por aquele vale pascendo uma manada de poldras galisianas de uns arrieiros iangueses, os quais têm por costume tomarem com suas récovas a sombra no verão em sítios mimosos de erva e água; e aquele onde acertou de estar D. Quixote era um desses.
Sucedeu que ao Rocinante apeteceu refocilar-se com as senhoras facas; e, saindo, apenas as farejou, do seu natural passo e costume, sem pedir licença ao dono, deu o seu trotezinho algum tanto picadete, e foi declarar a elas a sua necessidade. Elas, porém, que pelas mostras deviam ter mais vontade de pastar que de outra coisa, receberam-no com as ferraduras e à dentada, de modo que em breves audiências lhe rebentaram as silhas, e o deixaram sem sela e em pêlo. O que porém mais o deveu magoar foi que, vendo os arrieiros que se lhes iam forçar as éguas, acudiram com arrochos; e tanta lambada lhe deram que o estenderam no chão numa lástima.
Já neste comenos D. Quixote e Saricho, que tinham visto a tunda de Rocinante, chegavam esbaforidos; e disse D. Quixote para Sancho:
Pelo que vejo, amigo Sancho, estes não são cavaleiros; são gente soez e de baixa ralé. Digo-te, porque desta feita podes ajudar-me a tomar devida vingança do agravo, que diante dos nossos olhos se há feito a Rocinante.
Que diabo de vingança havemos de tomar — respondeu Sancho — se eles são mais de vinte, e nós só dois, e bem pode ser que só um e meio?
Eu valho por cem — respondeu D. Quixote.
E, metendo logo mão à espada, arremeteu aos iangueses, e o mesmo fez Sancho Pança, influído do exemplo do amo. Logo no primeiro rompante deu D. Quixote uma cutilada num, que lhe abriu um saio de couro que trazia vestido, e boa parte do ombro.
Os iangueses, que se viram investidos de dois homens sós, sendo eles tantos, tornaram-se aos bordões e, metendo aos dois no meio, começaram a malhar neles com grande afinco e veemência. A verdade é que, logo à segunda lambada, deram com Sancho em baixo, e o mesmo aconteceu a D. Quixote, sem lhe valer sua destreza e bom ânimo; e quis a sua sorte que viesse a cair aos pés de Rocinante, que ainda se não tinha erguido; por onde se vê a fúria, com que maçam bordões postos em mãos rústicas e enraivecidas.
Vendo pois os iangueses a má obra que tinham feito, tornaram a carregar a récova, e seguiram jornada, deixando aos dois aventureiros em pouco bom estado, e de estômago ainda pior.
O primeiro que deu sinal de si foi Sancho Pança, que, vendo perto o amo, lhe disse com tom de enfermo e lastimado:
Senhor D. Quixote! ah senhor D. Quixote!…
Que tens, Sancho mano? — respondeu D. Quixote com o mesmo tom afeminado e dorido de Sancho.
Queria, se pudesse ser — respondeu este — que Vossa Mercê me desse dois golos daquela bebida do feio Brás, se a tem aí à mão; talvez seja tão boa para os ossos quebrados como para as feridas.
Pois se eu aqui a tivesse, pobre de mim! que mais nos era preciso? — respondeu D. Quixote — Mas eu te juro, Sancho, palavra de cavaleiro andante, que, antes de passarem dois dias, se a fortuna não ordenar o contrário, ou a hei-de ter em meu poder, ou ruins mãos serão as minhas.
E em quantos dias lhe parece a Vossa Mercê que poderemos mover os pés? — replicou Sancho Pança.
De mim sei eu dizer — respondeu o moído cavaleiro D. Quixote — que não saberei acertar agora esse cómputo de dias. Mas a culpa de tudo isto tenho-a eu, que meti mão à espada contra homens que não eram armados cavaleiros como eu; pelo que entendo que, em pena de ter infringido as leis da cavalaria, é que o deus das batalhas permitiu que se me desse este castigo. Por isso, irmão Sancho, deves ter sempre bem presente o que te vou dizer, por interessar muito à saúde de ambos nós: em vendo que semelhante canalha nos faz algum agravo, não esperes até eu pór mão à espada contra eles, porque o não farei de sorte alguma; mas desembainha tu logo a tua e regala-te de os castigar. Se em sua ajuda e defensa acudirem cavaleiros, então eu te saberei defender e ofendê-los com todo o meu poder, que já tens visto por mil sinais e experiências até onde chega o valor deste meu forte braço.
Tal ficara de arrogante o pobre fidalgo depois da vitória do valente biscainho!
Mas a Sancho é que não pareceu tão bem o conselho do amo, que deixasse de lhe replicar, dizendo:
Senhor, eu sou homem pacífico, manso e sossegado, e sei disfarçar qualquer injúria, porque tenho mulher e filhos que manter e criar; e portanto fique a Vossa Mercê também de advertência, pois mando não pode ser, que de modo nenhum meterei mão à espada, nem contra vilão nem contra cavaleiro; e que daqui em diante Deus perdoe quantos agravos se me têm feito e se me hão-de fazer, embora mos tenha feito, faça ou haja de fazer pessoa alta ou baixa, rico ou pobre, fidalgo ou mecânico, sem excetuar nenhum estado nem condição.
Ouvindo o amo aquilo, respondeu:
Quisera ter forças para poder falar com algum descanso, e que a dor que tenho nestas costelas se me aplacasse, para te eu dar a entender, Pança, o erro em que estás. Vem cá, pecador; se o vento da fortuna, tão contrário até aqui, vira de rumo para nos favorecer, enchendo-nos as velas do desejo, para que seguramente, e sem contraste algum, aportemos em algumas das ilhas que já te prometi, que seria de ti se, ganhando-a, eu te fizesse senhor dela? pois hás-de tu mesmo impossibilitar-me de o realizar, por não seres armado cavaleiro nem quereres sê-lo, nem teres valor nem tenção de vingar as tuas injúrias, e defender os teus domínios?! porque hás-de saber que nos reinos e províncias recém-conquistadas nunca os ânimos dos seus naturais estão sossegados, nem tão favoráveis ao novo senhor, que se não tema alguma novidade para se alterarem de novo as coisas, e se tornar, como dizem, a tentar de novo fortuna; e portanto é necessário que o novo possessor tenha entendimento para se saber governar, e valor para ofender e defender-se em qualquer contingência.
Nisto que nos agora aconteceu — tornou Sancho — quisera eu ter tido esse entendimento e esse valor que Vossa Mercê diz; mas eu lhe juro, à fé de pobre homem, que mais estou eu para emplastros, que para arrazoados. Olhe Vossa Mercê se se pode levantar, e ajudaremos ao Rocinante a pór-se em pé (ainda que bem pouco o merece por ter sido o causador desse barulho). Nunca tal esperei de Rocinante; tinha-o por pessoa casta, e tão pacífica de si como eu próprio. Enfim, bem dizem lá que é preciso muito tempo para se acabar de conhecer os indivíduos, e que não há coisa segura nesta vida. Quem havia de dizer que atrás daquelas tão grandes cutiladas, como as que Vossa Mercê deu naquele desgraçado cavaleiro andante, nos havia de vir pela porta, e no alcance, este temporal tamanho de pauladas que nos desabou nos espinhaços?
Ainda o teu, Sancho — replicou D. Quixote — deve estar acostumado a borrascas destas; porém o meu, criado entre esguiões e holandas finas, claro está que há-de sentir mais a dor desta desgraça; e se não fosse por imaginar (que digo? imaginar!) por saber, que todos estes descómodos andam muito anexos ao exercício das armas, aqui me deixara morrer de pura vergonha.
Respondeu o escudeiro:
Senhor meu, já que estas desgraças são fruto da cavalaria, diga-me Vossa Mercê se costuma haver muitas sáfaras delas, ou se têm suas estações fora das quais se não apanham; porque a mim me parece que, depois de duas colheitas assim, já nos podemos dar por dispensados para terceira, se Deus com sua infinita misericórdia nos não socorre.
Sabe, amigo Sancho — respondeu D. Quixote — que a vida dos cavaleiros andantes está sujeita a mil perigos e desventuras, assim como, nem mais nem menos, estão eles também sempre em contingências muito próximas de subirem a Reis e Imperadores, como a experiência o tem mostrado em diversos e muitos cavaleiros, de cujas histórias eu tenho inteira notícia. Pudera contar-te agora, se a dor me desse vaga, de alguns que, só pelo valor do seu braço, têm subido aos altos estados que te disse; e esses mesmos se viram, antes e depois, em diversas calamidades e misérias; porque o valoroso Amadis de Gaula caiu em poder do seu mortal inimigo Arcalau o encantador, a respeito do qual se tem por averiguado que, tendo-o preso e atado numa coluna de um pátio, lhe deu para cima de duzentos açoites com as rédeas do seu cavalo; e até há um autor secreto de não pequeno crédito, que diz que, tendo o cavaleiro del Febo topado em certo alçapão que se lhe abriu debaixo dos pés em certo castelo, ao cair se achou numa profunda cova subterrânea atado de pés e mãos; e ali lhe deram um destes clisteres que chamam de água de neve e areia, que o deixou nas últimas; e se não fora socorrido naquela grande tribulação por um grande sábio seu amigo, muito mal iria ao pobre cavaleiro. Portanto, Sancho, por onde tanta gente boa tem passado, bem posso passar eu também. Maiores foram os impropérios por eles curtidos, que estes nossos agora. Hás-de saber, Sancho, que as feridas que afrontam não são as que se fazem com os instrumentos que se acham à mão; o que se contém na lei dos duelos escrito por estes próprios termos: que se o sapateiro dá noutrem com a forma que na mão tem, posto que ela seja realmente de pau, nem por isso se dirá que levou paulada aquele em quem deu. Digo isto para que não cuides que, se bem saímos desta pendência moídos, ficamos por isso afrontados; porque as armas que traziam aqueles homens, e com que nos machucaram, não eram outras senão os seus bordões; e nenhum deles (se bem me lembra) continha estoque, espada, nem punhal.
A mim não me deram vagar — respondeu Sancho — para reparar nisso, porque apenas meti mão à minha tisona, quando logo me benzeram os lombos com os paus, por modo que se me foi o lume dos olhos e a força dos pés, pregando comigo onde agora jazo; e pouco me importa saber se foram afronta, ou não, as bordoadas; o que me importa são as dores delas, que hão-de ficar tão impressas na memória, como no espinhaço.
Com tudo isso, sabe, irmão Pança — replicou D. Quixote — que não há lembrança que se não gaste com o tempo, nem dor que por morte não desapareça.
E pois, que desgraça pode haver maior — replicou Sancho — que a que só o tempo cura, e só a morte acaba? Se este nosso contratempo fora daqueles que se curam com um par de emplastros, ainda não fora tão mau, mas já vou vendo que nem todos os emplastros de um hospital hão-de bastar para nos pór sequer a bom caminho.
Deixa-te disso, e faze das fraquezas forças, Sancho — respondeu D. Quixote — que assim farei eu também; e vejamos como está o Rocinante que, ao que me parece, o coitado não apanhou menor quinhão que nós outros.
Não admira — respondeu Sancho — por isso é também andante; o que a mim me espanta é que o meu jumento escapasse com as costas inteiras, donde nós outros trouxemos quebradas as costelas.
Nas desgraças — respondeu D. Quixote — sempre a ventura deixa uma porta aberta pararemédio; e digo assim, porque esta bestiaga nos poderá agora suprir a falta de Rocinante, levando-me daqui para algum castelo, onde seja curado das feridas; e nem por isso haverei por desonra tal cavalgadura, porque me lembro de ter lido que aquele bom velho de Sileno, aio e pedagogo do alegre deus da folgança, quando entrou na cidade das cem portas ia muito a seu gosto escarranchado num formosíssimo asno.
Iria escarranchado como Vossa Mercê diz — respondeu Sancho — porém é muito diferente ir escarranchado, de ir atravessado como uma sacada de trapos velhos.
Ao que D. Quixote respondeu:
As feridas que nas batalhas se recebem antes dão honra do que a tiram; e assim, Pança amigo, não me repliques mais; e, segundo já te disse, levanta-te como puderes, e põe-me do modo que melhor te parecer em cima do teu jumento. Vamo-nos daqui antes que a noite chegue e nos apanhe neste despovoado.
Pois eu não ouvi dizer a Vossa Mercê — disse Pança — que era muito próprio de cavaleiros andantes o dormirem nos andurriais e desertos o mais do ano, e que eles o reputavam por grande ventura?
Isso é — disse D. Quixote — quando de outro modo se não pode, ou quando estão enamorados; e é tão verdade isto, que tem havido cavaleiro que esteve sobre uma penha ao sol, à sombra, e às inclemências do tempo, dois anos, sem que o soubesse sua senhora; e um deles foi Amadis, quando, chamando-se Beltenebrós, se alojou na Penha-pobre não sei se oito anos, ou oito meses (da conta é que não estou bem certo); basta que esteve ali fazendo penitência por não sei que desgosto que lhe deu a senhora Oriana. Mas deixemos já isto, Sancho, e conclui antes que suceda ao jumento alguma outra desgraça como a de Rocinante.
Essa fora do diabo — disse Sancho.
E, despedindo trinta ais, sessenta suspiros, e cento e vinte “más horas” e “t'arrenegos” contra quem ali o trouxera, lá se foi levantando derreado e curvo como arco turquesco, sem poder acabar de endireitar-se; e com todo este trabalho aparelhou o seu asno, que também tinha andado seu tanto distraído com a demasiada liberdade daquele dia.
Depois levantou a Rocinante, o qual, se tivera língua com que se queixar, à fé que nem Sancho nem seu amo seriam capazes de lhe tapar a boca.
Em conclusão: Sancho acomodou ao fidalgo sobre o asno, e, prendendo-lhe o Rocinante pela arreata, e levando o asno pelo cabresto, se dirigiu por onde pouco mais ou menos lhe pareceu que devia ir a estrada real. A sorte, que as suas coisas ia encaminhando de bem a melhor, ainda não tinham andado uma pequena légua, quando lhes deparou o caminho; nele descobriram uma venda, que, a pesar seu, e a contento de D. Quixote, devia ser um castelo.
Sancho porfiava que era venda, e seu amo que não, porém castelo; e tanto durou a teima, que antes de se acabar, lhes deu tempo de chegarem lá. Entrou Sancho, sem mais averiguação, com toda a sua récua.

Miguel de Cervantes, em Dom Quixote de La Mancha

Louvação para uma cor


O amarelo faz decorrer de si os mamões e sua polpa,
o amarelo furável.
Ao meio-dia as abelhas, o doce ferrão e o mel.
Os ovos todos e seu núcleo, o óvulo.
Este, dentro, o minúsculo.
Da negritude das vísceras cegas,
amarelo e quente, o minúsculo ponto,
o grão luminoso.
Distende e amacia em bátegas
a pura luz de seu nome,
a cor tropicardiosa.
Acende o cio,
é uma flauta encantada,
um oboé em Bach.
O amarelo engendra.

Adélia Prado, em Bagagem

Solo

Os mortos são ridículos como bonecos de engonço a que cortassem os fios... Os seus amores estão esperando, os seus negócios, os seus amigos estão esperando, e eles ali caídos, esquecidos de tudo! Como lhes pôde vir de repente esse desapego infinito por tudo o que mais queriam? Ou eles estavam fingindo antes, os sonsos, ou estão fingindo agora! Não posso absolutamente compreender que o dr. Gouvarinho haja esquecido as nossas partidas de solo, que haja desistido de tirar revanche, desistido dos seus calos, que marcavam chuva, e do seu guarda-chuva, que nunca abria direito! Não posso, não posso compreender... Observo-lhe os sapatos novos... Conto as tábuas do teto... (É a primeira vez que os nossos silêncios em comum me deixam constrangido.) Puxo o relógio. Escondo-o vivamente. Cruzo os dedos... descruzo os dedos... Retiro-me.
Paro, um instante, no portal...
Mas ele nem me fez um psiu!

Mário Quintana, em Sapato Florido

Espere um instante


Suspiros, o ritmo dos nossos batimentos cardíacos, as contrações do parto, orgasmos, tudo entra no mesmo compasso como relógios de pêndulo postos um ao lado do outro logo batem em uníssono. Vaga-lumes numa árvore acendem e apagam ao mesmo tempo. O sol se levanta e se põe. A lua cresce e míngua e geralmente o jornal da manhã pousa em frente à porta às seis e trinta e cinco.
O tempo para quando alguém morre. Claro que para para quem morre, talvez, mas para quem fica de luto o tempo entra em parafuso. A morte vem cedo demais. Ela esquece das marés, dos dias que estão ficando mais curtos ou mais longos, da lua. Rasga o calendário. Você não está diante da sua mesa, nem no metrô, nem preparando o jantar das crianças. Você está lendo People na sala de espera de um centro cirúrgico, ou tremendo de frio numa varanda fumando a noite inteira. Você está olhando para o vazio, sentado no seu quarto de criança com o globo em cima da mesa. Pérsia, Congo Belga. O lado ruim é que, quando você volta à sua vida normal, todas as rotinas, todos os marcos do dia ficam parecendo mentiras sem sentido. Tudo é suspeito, tudo é um truque para nos acalmar, nos ninar e nos restituir à plácida inexorabilidade do tempo.
Quando alguém tem uma doença terminal, a reconfortante agitação do tempo é estilhaçada. Rápido demais, não dá tempo, eu te amo, preciso terminar isso, diga aquilo para ele. Espere um instante! Eu quero explicar. Onde é que está o Toby, afinal? Ou então o tempo se torna sadicamente lento. A morte só fica ali, pairando, enquanto você espera que anoiteça e depois que amanheça. Todo dia você se despede um pouco. Ah, pelo amor de Deus, acaba com isso de uma vez. Você não para de olhar para o quadro de Chegadas e Partidas. As noites são intermináveis porque você acorda com qualquer tossezinha ou soluço, depois fica acordada ouvindo a pessoa respirar suavemente, como uma criança. Em tardes passadas ao lado de uma cama, você sabe que horas são pela passagem da luz do sol, agora na Virgem de Guadalupe, agora no nu a carvão, no espelho, na caixa de joias trabalhada, ofuscante no frasco de Fracas. O vendedor de camote apita na rua lá embaixo e então você ajuda sua irmã a ir para a sala para assistir às notícias da Cidade do México e depois às notícias dos Estados Unidos com Peter Jennings. Os gatos vêm se sentar no colo dela. Ela tem um tanque de oxigênio, mas mesmo assim o pelo deles dificulta sua respiração. “Não! Não os leve embora. Espere um instante.”
Toda noite, depois dos noticiários, Sally chorava. Debulhava-se em lágrimas. Provavelmente não era um choro demorado, mas, na dobra temporal da doença dela, era interminável, dolorido e rouco. Não consigo me lembrar se, no início, minha sobrinha Mercedes e eu chorávamos com ela. Acho que não. Nem eu nem ela somos muito de chorar. Mas nós a abraçávamos e beijávamos, cantávamos para ela. Tentávamos fazer piadas. “Talvez fosse melhor a gente ver o noticiário do Tom Brokaw.” Fazíamos sucos, chás e chocolate quente para ela. Não lembro quando exatamente ela parou de chorar, pouco antes de morrer, mas, quando parou, aí sim foi horrível de verdade, aquele silêncio, e durou muito tempo.
Quando chorava, ela às vezes dizia coisas como “Desculpe, deve ser a quimioterapia. É uma espécie de reflexo. Não liguem”. Outras vezes, porém, ela implorava que chorássemos com ela.
Não consigo, mi Argentina”, Mercedes dizia. “Mas o meu coração está chorando. Como sabemos que vai acontecer, nós automaticamente endurecemos.” Era gentil da parte dela dizer isso. O choro simplesmente me deixava maluca.
Uma vez, enquanto chorava, Sally disse: “Eu nunca mais vou ver jumentos!”, o que eu e Mercedes achamos engraçadíssimo. Sally ficou furiosa, atirou sua xícara e seus pratos, nossos copos e o cinzeiro na parede. Virou a mesa com um chute, berrando conosco. Suas malvadas, frias, calculistas. Vocês não têm um pingo de compaixão, de piedade.
Nem uma mísera lágrima. Vocês nem parecem tristes.” Ela estava sorrindo a essa altura. “Vocês são como sargentonas. ‘Beba isto. Tome aqui um lenço. Vomite na bacia.’”
Mais tarde, nós a preparávamos para ir para a cama, dávamos os remédios, uma injeção. Eu dava um beijo nela e a cobria. “Boa noite. Eu te amo, minha irmã, my sister, mi cisterna.” Eu dormia num quartinho, um closet, ao lado do quarto dela, e a ouvia por trás da parede de compensado, lendo, cantando baixinho, escrevendo. Às vezes ela chorava na cama, e esses eram os piores momentos, porque ela tentava abafar esses choros tristes e silenciosos com o travesseiro.
No início eu ia para perto dela e tentava consolá-la, mas isso parecia fazer com que ela chorasse mais, ficasse mais nervosa. O remédio para dormir acabava fazendo o efeito oposto e a deixava desperta, agitada e enjoada. Então passei a só falar com ela: “Sally. Minha querida Sal y pimienta, Salsa, não fique triste”. Coisas assim.
Lembra que a Rosa costumava pôr tijolos quentes na nossa cama, no Chile?”
Eu tinha me esquecido disso!”
Você quer que eu procure um tijolo pra você?”
Não, mi vida, eu já estou quase dormindo.”
Ela havia feito mastectomia e radioterapia e depois, durante cinco anos, tinha ficado bem. Bem de verdade. Radiante e bonita, extremamente feliz com um homem gentil, Andrés. Ela e eu nos tornamos amigas, pela primeira vez desde a nossa difícil infância. Tinha sido como se apaixonar, nossa descoberta uma da outra, o modo como nos abrimos. Fomos a Yucatán e a Nova York juntas. Eu ia para o México ou ela ia para Oakland. Quando nossa mãe morreu, passamos uma semana em Zihuatanejo, onde conversávamos dia e noite. Exorcizamos nossos pais e nossas próprias rivalidades, e acho que nós duas crescemos.
Eu estava em Oakland quando ela telefonou. O câncer estava nos pulmões agora. Em toda parte. Não restava mais muito tempo. Apúrate. Vem para cá agora!
Levei três dias para sair do meu emprego, arrumar as malas e entregar o apartamento. No avião rumo à Cidade do México, eu pensava em como a morte despedaça o tempo. Minha vida normal tinha desaparecido. Terapia, aulas de natação. Que tal um almoço na sexta? A festa de Gloria, dentista amanhã, lavar roupa, pegar livros com Moe, limpar a casa, comprar ração de gato, tomar conta dos netos no sábado, encomendar gaze e sondas de gastrostomia no trabalho, escrever para August, falar com Josee, assar bolinhos, C. J. está vindo aí. Mais estranho ainda foi, um ano depois, encontrar com funcionários da mercearia ou da livraria ou com amigos na rua que não tinham sequer percebido que eu tinha estado fora.
Telefonei para Pedro, o oncologista de Sally, do aeroporto no México, querendo saber o que esperar. Tinha parecido que era uma questão de semanas ou, no máximo, um mês. “Ni modo”, disse ele. “Nós vamos continuar com a químio. Pode levar seis meses, um ano, talvez mais.”
Era só você ter falado ‘Eu quero que você venha agora’, eu teria vindo”, eu disse a ela mais tarde naquela noite.
Não teria não!”, ela disse, rindo. “Você é realista. Você sabe que eu tenho empregadas para fazer tudo, e enfermeiras, médicos, amigos. Você ia achar que eu não precisava de você ainda. Mas eu quero você agora, para me ajudar a botar tudo em ordem. Eu quero que cozinhe para que a Alicia e o Sergio venham comer aqui. Eu quero que leia pra mim e cuide de mim. Agora é que eu estou sozinha e apavorada. Eu preciso de você agora.”
Todos nós temos álbuns de fotografias mentais. Instantâneos. Imagens de pessoas que amamos em diferentes épocas. Essa é Sally com roupa de corrida verde-escura, sentada de pernas cruzadas na cama dela. A pele luminosa, os olhos verdes delineados por lágrimas enquanto ela falava comigo. Sem dissimulações nem autopiedade. Eu a abracei, grata pela confiança que ela tinha em mim.
No Texas, quando eu tinha oito anos e ela três, eu odiava Sally, sentia um ciúme violento dela. Nossa avó me deixava por minha própria conta, à mercê dos outros adultos, mas protegia a pequena Sally, penteava o cabelo dela e fazia tortas só para ela, ninava-a e cantava “Way Down in Missoura” para ela dormir. Mas eu tenho instantâneos dela mesmo dessa época, sorrindo, me oferecendo um pedaço de bolo com uma inegável doçura que ela nunca perdeu.
Na Cidade do México, os primeiros meses passaram voando, como quando os calendários vão perdendo as folhas em filmes antigos. Como num filme de Charlie Chaplin acelerado, carpinteiros martelavam na cozinha, encanadores ribombavam no banheiro. Homens vieram consertar todas as maçanetas e janelas quebradas, lixar os assoalhos. Mirna, Belen e eu atacamos o quarto de cacarecos, o topanco, os armários, as estantes e gavetas. Jogamos fora sapatos, chapéus, coleiras de cachorro, túnicas. Mercedes, Alicia e eu tiramos todas as roupas e joias de Sally dos armários e etiquetamos as que ela queria dar para diferentes amigas.
Doces tardes preguiçosas no chão do quarto de Sally, separando fotografias, lendo cartas, poemas, fofocando, contando histórias. O telefone e a campainha tocavam o dia inteiro. Eu filtrava as ligações e as visitas, era quem as interrompia se ela estava cansada, ou não interrompia se ela estava feliz, como sempre ficava com Gustavo.
Assim que uma pessoa é diagnosticada com uma doença fatal, ela recebe uma avalanche de telefonemas, cartas, visitas. Mas, conforme os meses vão passando e o tempo vai se transformando em tempos difíceis, cada vez menos gente aparece. É quando a doença está avançando e o tempo é lento e barulhento. Você ouve os relógios, os sinos das igrejas, os vômitos, cada respiração áspera.
O ex-marido de Sally, Miguel, e Andrés vinham todos os dias, mas em horários diferentes. Só uma vez as visitas deles coincidiram. Fiquei espantada com a maneira como a prioridade foi automaticamente dada ao ex-marido. Ele havia se casado de novo fazia muito tempo, mas ainda era preciso tomar cuidado para não ferir o orgulho dele. Andrés tinha entrado no quarto de Sally fazia poucos minutos. Eu trouxe café e pan dulce para ele. Assim que pousei a bandeja em cima da mesa, Mirna entrou para dizer “O señor está vindo!”.
Rápido, para o seu quarto!”, disse Sally. Andrés correu para o meu quarto, carregando o café e o pan dulce. Eu tinha acabado de fechá-lo lá dentro quando Miguel chegou.
Café! Eu preciso de café!”, ele disse. Então, eu entrei no meu quarto, tirei o café e o pan dulce de Andrés e os levei para Miguel. Andrés desapareceu.

Fiquei muito fraca e com dificuldade de andar. Achamos que fosse estress (não há nenhuma palavra em espanhol para stress), mas acabei desmaiando na rua e sendo levada para a emergência de um hospital. Eu estava com uma anemia grave por causa de uma hérnia esofágica com sangramento. Fiquei internada alguns dias para fazer transfusões de sangue.
Estava me sentindo muito mais forte quando voltei, mas a minha doença tinha deixado Sally assustada. A morte havia nos lembrado que ela ainda estava lá. O tempo acelerou de novo. Eu achava que Sally tinha pegado no sono e me levantava para ir para a minha cama.
Não vá embora!”
Eu só vou ao banheiro e já volto.” Durante a noite, se ela se engasgava ou tossia, eu acordava e ia até lá para ver como ela estava.
Ela estava usando oxigênio agora e raramente saía da cama. Eu lhe dava banho no quarto dela, dava injeções para amenizar a dor e a náusea. Ela tomava um pouco de sopa, comia bolachas de água e sal às vezes. Gelo moído. Eu botava gelo numa toalha e batia, batia, batia a toalha contra a parede de concreto. Mercedes se deitava ao lado dela e eu me deitava no chão, lendo para elas. Quando elas pareciam estar dormindo, eu parava, mas as duas diziam “Não pare!”.
Bueno. “Eu desafio qualquer um a dizer que a nossa Becky, que certamente tem lá seus defeitos, não foi apresentada ao público de uma maneira absolutamente elegante e inofensiva…”
Pedro aspirou o pulmão dela, mas mesmo assim Sally estava tendo cada vez mais dificuldade de respirar. Eu decidi que nós devíamos fazer uma limpeza de verdade no quarto dela. Mercedes ficou com ela na sala enquanto Mirna, Belen e eu varríamos e tirávamos o pó, lavávamos as paredes, as janelas e o chão. Eu mudei a cama dela de lugar, botando-a na horizontal debaixo da janela; agora Sally ia poder ver o céu. Belen botou lençóis limpos e passados e cobertas macias na cama e nós levamos Sally de volta para o quarto. Ela se recostou no travesseiro, e o sol da primavera bateu em cheio no seu rosto.
El sol”, disse Sally. “Eu posso sentir o sol daqui.”
Eu me sentei encostada na outra parede e fiquei vendo Sally olhar pela janela. Avião. Pássaros. Um rastro de jato. O pôr do sol!
Bem mais tarde, eu lhe dei um beijo de boa-noite e fui para o meu quartinho. O umidificador do tanque de oxigênio dela borbulhava como uma fonte. Fiquei esperando para ouvir o tipo de respiração que significava que ela tinha adormecido. O colchão dela rangeu. Ela arfou e depois gemeu, respirando ruidosamente. Fiquei ouvindo e esperando e, então, escutei o tlim-tlim das argolas da cortina acima da cama dela.
Sally? Salamandra, o que você está fazendo?”
Estou olhando para o céu!”
Perto dela, olhei lá para fora pela minha própria janelinha.
Oye, irmã…”
O que foi?”, perguntei.
Eu estou ouvindo. Você está chorando por mim!”
Faz sete anos que você morreu. Claro que a próxima coisa que eu vou dizer é que o tempo voou. Fiquei velha. De repente. Ando com dificuldade. Babo até. Deixo a porta destrancada para o caso de eu morrer enquanto estiver dormindo, mas o mais provável é que eu continue assim indefinidamente até ser internada em algum lugar. Já estou caducando. Outro dia estacionei meu carro numa transversal porque a vaga onde eu costumo parar já estava ocupada. Mais tarde, quando vi a vaga vazia, fiquei me perguntando para onde eu tinha ido. Não é tão estranho eu falar com o meu gato, mas me sinto idiota porque ele é completamente surdo.
Mas nunca há tempo suficiente. “Tempo de verdade”, como os prisioneiros para quem eu dava aula diziam, explicando como só parecia que eles tinham todo o tempo do mundo. O tempo nunca era deles.
Estou dando aula agora numa cidadezinha de montanha bonita, fresa. Nas mesmas montanhas Rochosas onde papai minerava, só que muito diferente de Butte ou Coer d’Alene. Mas tenho sorte. Tenho bons amigos aqui. Moro no sopé, onde cervos passam, elegantes e discretos, pela minha janela. Vi cangambás cruzando ao luar; seus gritos ásperos eram como instrumentos orientais.
Sinto saudades dos meus filhos e de suas famílias. Vejo-os talvez uma vez por ano e é sempre ótimo, mas não faço mais realmente parte da vida deles. Nem da vida dos seus filhos, Sally, embora Mercedes e Enrique tenham vindo se casar aqui!
Tantas outras pessoas se foram. Eu costumava achar estranho quando alguém dizia “Eu perdi meu marido”. Mas essa é a sensação que dá. Alguém desapareceu. Paul, tia Chata, Buddy. Eu entendo as pessoas que acreditam em fantasmas ou fazem sessões espíritas para invocar os mortos. Passo meses sem pensar em ninguém a não ser nos vivos e então Buddy aparece com uma piada, ou você surge vividamente na minha frente, evocada por um tango ou uma agua de sandía. Se pelo menos você pudesse falar comigo. Você é tão inútil quanto o meu gato surdo.
Você veio pela última vez alguns dias depois da nevasca. Gelo e neve ainda cobriam o chão, mas nós tivemos a sorte inesperada de um dia quente. Esquilos e pegas-rabudas estavam matraqueando e pardais e tentilhões cantavam em árvores desfolhadas. Abri todas as portas e cortinas. Tomei chá na mesa da cozinha sentindo o sol nas minhas costas. Vespas saíram do ninho na varanda da frente, atravessaram a minha casa planando sonolentamente e ficaram voando em círculos modorrentos pela cozinha inteira. Bem nessa hora a bateria do detector de fumaça descarregou, e então o alarme começou a cricrilar feito um grilo no verão. O sol alcançou o bule de chá, o pote de farinha, o vaso de flores prateado.
Uma iluminação preguiçosa, como uma tarde mexicana no seu quarto. Eu vi o sol no seu rosto.

Lucia Berlin, em Manual da faxineira: Contos escolhidos