quinta-feira, 2 de maio de 2024

Roçar a língua de Luís de Camões

Este livro não é uma história aprofundada da língua portuguesa — ou da língua portuguesa brasileira, ou ainda da língua brasileira, para quem prefere essas denominações. No momento, eu não quero nem mesmo tentar resolver essa questão dos nomes. No fundo, esse não é o maior dos nossos problemas, nem o mais premente.
Como professor e usuário desse idioma, eu me beneficio o tempo todo da leitura de textos acadêmicos e de interesse geral que, esses sim, têm o tamanho, o escopo e a solidez para permitir análises mais aprofundadas. Muitos deles, inclusive, aparecem na lista de leituras recomendadas no fim deste livro. Eles estão lá para quem sentir vontade de se informar melhor sobre algum dos temas que encontrar por aqui.
O meu objetivo é mais modesto.
Eu pretendo fundamentalmente expor as etapas do trajeto de formação da língua que nós falamos todos os dias. Iluminar quanto de um passado muito antigo às vezes se esconde por trás de algo que, para nós, é tão presente quanto o ar à nossa volta. Elencar, também, as diferentes tradições, culturas e povos que contribuíram para a formação do nosso idioma: a família gigante que possibilitou que hoje você fale o que fala, e que fale como fala.
A ideia, com isso, é te levar a fazer perguntas, a pensar mais detidamente sobre coisas que talvez você nem conhecesse ou que até aqui pode ter visto sem prestar muita atenção. É como naquela famosa piada dos peixes que não sabem responder à questão “Como está a água?” porque nunca pararam para se perguntar o que é a água, de tão literalmente imersos estão nela — nossa relação com o idioma que falamos desde o berço pode nos passar quase despercebida. Esse idioma forma nosso mundo de maneiras tão profundas e tão incontornáveis que talvez, sem ajuda, a gente nunca chegue a parar de verdade para pensar sobre ele.
Mas podemos tentar.
Outro complicador, surgido em várias conversas sobre o tema, é que nós, como sociedade, fazemos com o nosso passado o mesmo que qualquer pessoa faz no nível individual. Com o passar do tempo, vamos montando uma história que parece coerente e que funciona bem para explicar o estado de coisas que queremos compreender hoje, nos termos que queremos ver vigorar hoje. Ou seja, vamos selecionando alguns fatos, deixando outros de fora até serem esquecidos, organizando os restantes em belas cadeias de “explicações” e depois transformando essa narrativa (que nunca deveria deixar de ser vista como apenas uma entre várias possibilidades) numa história com ares de coisa sagrada, inquestionável, exatamente porque ela explica não o mundo como ele é, mas o mundo que corresponde ao que queremos ver. Nós editamos a história para que ela responda às perguntas que são importantes para nós neste momento.
E a história da língua que falamos não é uma exceção a essa regra, sendo também alvo de simplificações e carecendo de necessárias revisões periódicas.
Mas no caso do nosso idioma essa trajetória de visões e revisões, que idealmente seguiria rumo a uma percepção cada vez mais fiel, acaba sendo atravancada de uma maneira toda sua. Isso porque cada falante se sente (devidamente) dono da língua, e assim ele tem, por vezes, dificuldade para ouvir opiniões que contrastem com o que acredita saber perfeitamente bem. Todo falante se julga uma autoridade em questões de língua. E isso pode fazer com que certas “verdades” ganhem uma couraça: fica difícil mostrar que devem ser questionadas.
Dentre as pretensas verdades que existem na relação dos brasileiros com a sua língua está a estranha e paradoxal tendência de descreditar nossa posse do idioma. Assim, parecemos teimosamente dispostos a crer em discursos que relativizem o nosso domínio da língua. Esses discursos podem vir da escola, da imprensa, de certa tradição gramatical, e acabam determinando de maneira muito nítida a imagem que o falante tem de si próprio e de sua competência, criando a mais do que conhecida ideia de que ninguém “fala certo” no Brasil; seja porque o português é uma língua terrivelmente difícil, seja porque somos todos uns broncos, uns ignorantes (ao contrário, é claro, dos portugueses).Podemos dar início à conversa refletindo um pouquinho sobre essa primeira ideia encouraçada, só para ilustrar o tipo de questionamento que pode surgir aqui. Vamos começar pela hipótese (tantas vezes repetida) de que o português é uma língua particularmente complicada.
Talvez a primeira coisa em que as pessoas pensem quando mencionam essa ideia seja a morfologia. Em específico, as formas do verbo. E, até certo ponto, é verdade que a nossa morfologia verbal (aquelas formas todas que o verbo adota quando muda de pessoa, número, e tempo — eu faço, você fazia, eles farão) é relativamente rica. Sobretudo se você a compara com a do inglês, tão mais compacta.
Contudo, vale dizer logo de saída que, na verdade, o inglês é que é a língua anômala nessa comparação. Quem precisa se explicar são eles!
Todas as línguas mais proximamente aparentadas ao inglês (o frísio, o holandês, o sueco, o alemão) se assemelham mais à nossa nesse quesito. Alguma coisa aconteceu na história do inglês para que esse idioma se comporte hoje de maneira tão singular. E esse mesmo acontecimento, que no caso deles ocorreu nada menos que duas vezes, vai aparecer depois em nossa conversa sobre a língua brasileira: trata-se da situação em que um grande grupo de adultos precisa aprender um idioma novo em condições difíceis. Isso não pode deixar de marcar um idioma, e normalmente na direção do que parece ser uma simplificação de suas formas.
A segunda coisa importante a mencionar é que existem muitas, mas muitas línguas com morfologias bem mais complexas do que a nossa (o russo é um caso óbvio). E quando eu digo “bem mais complexas” quero dizer “bem mais complexas”. Mas para ficarmos com um exemplo de fato radical, vamos pegar o archi, língua falada na antiga república soviética do Daguestão. Só para você ter uma ideia, estima-se que em archi um único verbo possa assumir mais de um milhão de formas diferentes em situações reais de uso. Em outro campo, se você acha muito ter que decorar quatro formas de um adjetivo — masculino, feminino, singular e plural (bom, boa, bons, boas) —, imagine esse processo em sânscrito, que, para começo de conversa, tem singular, dual e plural, masculino, neutro e feminino, além de oito casos nominais que variam de acordo com a função da palavra na frase. No limite, isso produz 72 formas diferentes da palavra.
Por outro lado, línguas com sistemas morfológicos que tendem à economia e à contenção, a exemplo do mandarim na China, e mesmo do dinamarquês, podem se caracterizar por um altíssimo grau de complexidade em outros níveis de análise. Como em seus sons. Talvez você até saiba disto, mas em línguas tonais, como o mandarim (e várias línguas asiáticas, africanas e indígenas do Brasil), é preciso, digamos, cantar as sílabas para alterar o sentido ou a função das palavras na frase. E o dinamarquês, embora não seja tonal, tem 27 sons vocálicos distintivos.
[…]

Caetano W. Galindo, in Latim em pó: Um passeio pela formação do nosso português

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