Este
livro não é uma história aprofundada da língua portuguesa — ou
da língua portuguesa brasileira, ou ainda da língua brasileira,
para quem prefere essas denominações. No momento, eu não quero nem
mesmo tentar resolver essa questão dos nomes. No fundo, esse não é
o maior dos nossos problemas, nem o mais premente.
Como
professor e usuário desse idioma, eu me beneficio o tempo todo da
leitura de textos acadêmicos e de interesse geral que, esses sim,
têm o tamanho, o escopo e a solidez para permitir análises mais
aprofundadas. Muitos deles, inclusive, aparecem na lista de leituras
recomendadas no fim deste livro. Eles estão lá para quem sentir
vontade de se informar melhor sobre algum dos temas que encontrar por
aqui.
O
meu objetivo é mais modesto.
Eu
pretendo fundamentalmente expor as etapas do trajeto de formação da
língua que nós falamos todos os dias. Iluminar quanto de um passado
muito antigo às vezes se esconde por trás de algo que, para nós, é
tão presente quanto o ar à nossa volta. Elencar, também, as
diferentes tradições, culturas e povos que contribuíram para a
formação do nosso idioma: a família gigante que possibilitou que
hoje você fale o que fala, e que fale como fala.
A
ideia, com isso, é te levar a fazer perguntas, a pensar mais
detidamente sobre coisas que talvez você nem conhecesse ou que até
aqui pode ter visto sem prestar muita atenção. É como naquela
famosa piada dos peixes que não sabem responder à questão “Como
está a água?” porque nunca pararam para se perguntar o que é a
água, de tão literalmente imersos estão nela — nossa relação
com o idioma que falamos desde o berço pode nos passar quase
despercebida. Esse idioma forma nosso mundo de maneiras tão
profundas e tão incontornáveis que talvez, sem ajuda, a gente nunca
chegue a parar de verdade para pensar sobre ele.
Mas
podemos tentar.
Outro
complicador, surgido em várias conversas sobre o tema, é que nós,
como sociedade, fazemos com o nosso passado o mesmo que qualquer
pessoa faz no nível individual. Com o passar do tempo, vamos
montando uma história que parece coerente e que funciona bem para
explicar o estado de coisas que queremos compreender hoje, nos termos
que queremos ver vigorar hoje. Ou seja, vamos selecionando alguns
fatos, deixando outros de fora até serem esquecidos, organizando os
restantes em belas cadeias de “explicações” e depois
transformando essa narrativa (que nunca deveria deixar de ser vista
como apenas uma entre várias possibilidades) numa história com ares
de coisa sagrada, inquestionável, exatamente porque ela explica não
o mundo como ele é, mas o mundo que corresponde ao que queremos ver.
Nós editamos a história para que ela responda às perguntas que são
importantes para nós neste momento.
E
a história da língua que falamos não é uma exceção a essa
regra, sendo também alvo de simplificações e carecendo de
necessárias revisões periódicas.
Mas
no caso do nosso idioma essa trajetória de visões e revisões, que
idealmente seguiria rumo a uma percepção cada vez mais fiel, acaba
sendo atravancada de uma maneira toda sua. Isso porque cada falante
se sente (devidamente) dono da língua, e assim ele tem, por vezes,
dificuldade para ouvir opiniões que contrastem com o que acredita
saber perfeitamente bem. Todo falante se julga uma autoridade em
questões de língua. E isso pode fazer com que certas “verdades”
ganhem uma couraça: fica difícil mostrar que devem ser
questionadas.
Dentre
as pretensas verdades que existem na relação dos brasileiros com a
sua língua está a estranha e paradoxal tendência de descreditar
nossa posse do idioma. Assim, parecemos teimosamente dispostos a crer
em discursos que relativizem o nosso domínio da língua. Esses
discursos podem vir da escola, da imprensa, de certa tradição
gramatical, e acabam determinando de maneira muito nítida a imagem
que o falante tem de si próprio e de sua competência, criando a
mais do que conhecida ideia de que ninguém “fala certo” no
Brasil; seja porque o português é uma língua terrivelmente
difícil, seja porque somos todos uns broncos, uns ignorantes (ao
contrário, é claro, dos portugueses).Podemos dar início à
conversa refletindo um pouquinho sobre essa primeira ideia
encouraçada, só para ilustrar o tipo de questionamento que pode
surgir aqui. Vamos começar pela hipótese (tantas vezes repetida) de
que o português é uma língua particularmente complicada.
Talvez
a primeira coisa em que as pessoas pensem quando mencionam essa ideia
seja a morfologia. Em específico, as formas do verbo. E, até certo
ponto, é verdade que a nossa morfologia verbal (aquelas formas todas
que o verbo adota quando muda de pessoa, número, e tempo — eu
faço, você fazia, eles farão) é relativamente rica. Sobretudo
se você a compara com a do inglês, tão mais compacta.
Contudo,
vale dizer logo de saída que, na verdade, o inglês é que é a
língua anômala nessa comparação. Quem precisa se explicar são
eles!
Todas
as línguas mais proximamente aparentadas ao inglês (o frísio, o
holandês, o sueco, o alemão) se assemelham mais à nossa nesse
quesito. Alguma coisa aconteceu na história do inglês para que esse
idioma se comporte hoje de maneira tão singular. E esse mesmo
acontecimento, que no caso deles ocorreu nada menos que duas vezes,
vai aparecer depois em nossa conversa sobre a língua brasileira:
trata-se da situação em que um grande grupo de adultos precisa
aprender um idioma novo em condições difíceis. Isso não pode
deixar de marcar um idioma, e normalmente na direção do que parece
ser uma simplificação de suas formas.
A
segunda coisa importante a mencionar é que existem muitas, mas
muitas línguas com morfologias bem mais complexas do que a nossa (o
russo é um caso óbvio). E quando eu digo “bem mais complexas”
quero dizer “bem mais complexas”. Mas para ficarmos com um
exemplo de fato radical, vamos pegar o archi, língua falada na
antiga república soviética do Daguestão. Só para você ter uma
ideia, estima-se que em archi um único verbo possa assumir mais de
um milhão de formas diferentes em situações reais de uso. Em outro
campo, se você acha muito ter que decorar quatro formas de um
adjetivo — masculino, feminino, singular e plural (bom, boa,
bons, boas) —, imagine esse processo em sânscrito, que, para
começo de conversa, tem singular, dual e plural, masculino,
neutro e feminino, além de oito casos nominais que variam de
acordo com a função da palavra na frase. No limite, isso produz 72
formas diferentes da palavra.
Por
outro lado, línguas com sistemas morfológicos que tendem à
economia e à contenção, a exemplo do mandarim na China, e mesmo do
dinamarquês, podem se caracterizar por um altíssimo grau de
complexidade em outros níveis de análise. Como em seus sons. Talvez
você até saiba disto, mas em línguas tonais, como o mandarim (e
várias línguas asiáticas, africanas e indígenas do Brasil), é
preciso, digamos, cantar as sílabas para alterar o sentido ou a
função das palavras na frase. E o dinamarquês, embora não seja
tonal, tem 27 sons vocálicos distintivos.
[…]
Caetano W. Galindo, in Latim em pó: Um passeio pela formação do nosso português
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