quinta-feira, 2 de maio de 2024

Canção da vida breve


... cousas do mundo, humas que vão, outras que vem, outras que atravessão, e todas passão.
Padre Antonio Vieira: Sermão da Sexagésima, 1655

Ao pôr do sol, na hora doce da luz tépida, o quintal se cobriu de neve. Uma neve branca, perolada, com longes de azul e nácar, descendo em ondas sucessivas e frementes, numa agitação que enchia de sussurrante música imperceptível os galhos oscilantes e as coisas imóveis. Tijolos, telhas, a face do tanque humilde, a pirâmide residencial, os tufos das samambaias, as folhas dos crótons e dos tinhorões, o triste capim atapetador, as roseiras floridas no abandono, recobriram-se de um manto trêmulo e sutilmente sonoro de asas inquietas.
Eram as efeméridas.
A aragem lenta da tarde arrastando-as da lagoa, atirava-as como nuvens palpitantes de confete para a melancolia dos quintais despovoados. Tudo se transformou sob aquela grandeza feita de mínimos, oceano sem fim onde se viam as gotas que o constituíam. Uma como cantiga silenciosa e perceptível tremulava no ar, fazendo-o colorido e palpável pelas miríades e miríades de efeméridas volteando, tontas e leves, na ânsia do amor e da morte na tarde vagarosa de verão.
Viveram em metamorfoses, da larva aquática ao animal adulto, vinte mudanças de pele, três de forma, em 36 meses de mutação. Agora, com dois pares de asas reticuladas, o corpo de um centímetro prolongando-se em três fios delicados e impalpáveis, atravessam o espaço num bailado deslumbrado de emancipação e de sacrifício.
Todos esses anos de preparação orgânica convergiam para o destino de fazê-las nascer no mesmo dia para que tivessem o esplendor de uma única iniciação coletiva.
Este é o dia da maravilha do voo, ostentação suntuosa de cores claras, cintilantes e luminosas, nas derradeiras claridades do crepúsculo. É sua festa única, primeira e final, experiência e despedida da força impulsionadora das asas e do sexo. Durante três anos foram criadas para viver uma hora frenética, impaciente, imortal. Uma hora de intensidade total como nenhuma outra espécie. Toda a tentação da Natureza generosa sacode-lhes o corpo num desejo que deve ser satisfeito em minutos. Desejo de movimento com as asas de seda transparente. Fome de amor para a vibração do sexo ainda virgem de contato.
Não se alimentarão. Não têm boca nem aparelho intestinal. Não levarão da terra senão as lembranças do voo espiralado e junção fulminante. Sua massa impalpável e sem conta cairá sobre as águas da lagoa num lençol de metros e metros e numa elevação de centímetros, cevando, fartando todos os peixes. Os quintais vizinhos estão mudados em jardins suspensos e ondulantes, naquela palpitação que enche os telhados, escorrega pelos beirais, juncando o solo de prata que estremece. Para qualquer direção o olhar avista somente o turbilhão das asas minúsculas esvoaçando sua dança de alegria mortal.
Milhões de casais revoluteiam nas núpcias luminosas e trágicas. As fêmeas fecundadas deporão na água o ovo brilhante e pequenino como uma joia, para viver três anos e sonhar a participação naquele espetáculo tempestuoso de júbilo e de dor instantâneos.
E todos desaparecerão, esgotados, evaporada a essência vital nos diminutos corpos de seda reluzente.
Que mudança nos hábitos do canto de muro! Todos os animais deixaram suas tocas. Os pássaros prolongaram o expediente das caçadas. Os insetos e batráquios anteciparam os horários da colheita vivente. Mandíbulas e bicos fartam-se naquele pasto inesgotável e fácil. As efeméridas voam ao rés do chão, tentando os apetites. Na altura dos ninhos, outras colunas densas piruetam, sedutoras.
O ar fica cheio de asas, somente asas sem corpos, flutuando como destroços do mundo desaparecido e veloz. E vêm descendo como pétalas brancas, lentas, bem lentas, para enfeitar o chão.
Toda a região teve a visita da multidão estranha. Os ventos da noite levaram para longe os cadáveres alados que desafiavam a gravidade. Ainda pela manhã a luz mostrará uma ou outra asa pairando, indecisa, no alto, inacreditável, tênue, melancólico vestígio da prodigiosa aventura…
Não raro, nem comum é o vento nordeste sacudir uma onda interminável de borboletas alaranjadas, com laivos de açafrão nas asas impacientes. O grosso da expedição passa mais alto, por cima das árvores, dando uma breve sombra fugidia de sua multidão. Miríades pousam em descanso fortuito que a fome animal muda definitivamente a estada. Diz-se apenas “enxame de borboletas” mas é o panapaná, a migração em massa, miraculoso caudal, vida que alaga o quintal como numa ruptura de porta de água. São como uma vaga de asas trêmulas, oscilando em cadência ou ficando paradas, a prumo sobre o corpo, expondo as cores atraentes numa amostra curta de beleza emigrante. Árvores, telhas, recantos desaparecem sob as camadas vivas que ficam, num frenesi, voejando rasteiras, subindo em perpendicular e caindo nas verticais como se faltasse alento substancial para a jornada maravilhosa.
Gabriel Soares de Sousa viu-as (1587) cobrindo dez léguas de lonjura entre a cidade do Salvador à outra banda a baía, num dia inteiro de desfile. Henry Walter Bates olhou-as, de sol a sol, perto de Óbidos, em dois dias de trânsito incessante. Detiveram, com sua massa palpitante, o navio em que viajava Teófilo de Andrade no Rio Paraná, em ciclo de desova que lhes custava a vida.
Vão do norte para o sul e não deixam no recinto do quintal nem uma relíquia de sua futura descendência. Trata-se de migração misteriosa, para fins de acomodação vital, fugindo a algum inimigo invencível e novo. Não são comuns nem raras. Afogam com o volume exuberante as fomes das espécies famintas. Durante horas atravessam os terrenos, abatendo-se aos milhares, perdendo-se no capim curto, entre as pedras, nas barrocas lacustres, imóveis nos montões de folhas secas que o vento amontoou. São as patrulhas exaustas, as colunas trôpegas, extenuadas, pousando para sacrificar-se no descanso que significa possibilidade de morte. As águas da lagoa próxima e do pequeno tanque desaparecem sob suas asas de cores pálidas, levemente agitadas por um sopro de vida.
Os animais, vorazes e atrevidos nos primeiros momentos, recuam diante daquela caça que se tornou agressiva na passividade e desprestigiada pela esmagadora abundância. O chão parece vestido de asas de ouro-claro e açafrão. Bruscamente retomam o voo lerdo, batendo muito as asas, tentando acompanhar o estado-maior distanciado no céu crepuscular. Vão ficando pelo caminho, perdendo a formação regular, abatendo-se nas curvas, desgarradas e fracas, semeando no percurso da viagem um raro terreno de corpos e asas despedaçadas.
Na manhã seguinte ou no correr do dia inesperadamente reaparece uma borboleta aturdida de sol, retardatária, em voo desesperado e último ao rés do campo, despedindo-se da vida breve. É uma surpresa vê-la erguer-se dos recantos ignorados e mostrar um instante, como cavaleiro perdido em campo inimigo e cruel, as cores heroicas de sua falange desaparecida.
Os que habitam o canto de muro sabem destas vidas intensas e luminosamente passageiras. Apenas homens de estudo conhecem outras existências que a limitação do volume tornou invisíveis para os interesses comuns da terra. Jamais figurarão nos livros de imaginação, romance ou poemas, porque não apareceram ao alcance dos olhos criadores de romancistas e de poetas. No comum dos volumes estão indicados nos vagos etc. generalizadores. São quase animálculos, revelados pelas réstias de sol, tornados sensíveis quando próximos, passeando num rebordo de folha ou subindo, laboriosamente, por um grão de areia. Voando, soltos, libertos, em pleno ar, são invisíveis. Parecem grãos microscópios de uma semente que estremece sob nossos dedos rústicos. Têm uma história, uma fisiologia, uma vida organizada, costumes, idiossincrasias, prazeres, vícios, paixão, lutas, amores. Têm um lar, uma fêmea, filhos, épocas de paixão, ciúmes, zonas ecológicas em que vivem, migrações, viagens e, quem sabe lá, heróis famosos, memórias de façanhas, de jornadas valentes através de mundos terríveis, talvez do tronco da mangueira ao primeiro tijolo da pirâmide. Conhecem animais monstruosos como Licosa e Titius, numa sensação semelhante à nossa deparando dinossauros em vez de elefantes e plesiossauros no canto dos lagartos familiares. Devem sentir dor, sono, cansaço, raiva, ódio, fome. Devem ter amigos, desafetos, antipatias, companheiros, aliados, cúmplices. Nunca os podemos ver, a olhos nus, como realmente são. Obras-primas de delicadeza organizada, de precisão fisiológica, de exatidão funcional, têm raríssimos amigos entre os homens e nunca mereceram, numa página exclusiva, o registro indispensável de sua biografia sedutora.
Todo este esplendor vive horas, dias, semanas, meses apenas. Sem ele várias espécies pereceriam e na falta destas uma cadeia inteira de utilidades relativas ao homem deixaria de existir. Aquela partícula vibrante que se debate, como uma poeira que é o seu grupo, num raio de sol, é o alimento que, de grau em grau, atinge o rei da Criação numa dependência de necessariedade preciosa.
Há nele substâncias químicas indispensáveis a outras vidas superiores e escravas de sua existência. Sua presença invisível é tão poderosa como um ácido para os mistérios da fermentação, de uma base, de um sal. Ele representa na sua humildade um elo infalível na seriação vital.
Estes bandos de libélulas lembram os velhos monoplanos do meu tempo de menino. Monoplano de Blériot que atravessou o Canal da Mancha, o Demoiselle de Santos Dumont. As duas asas extensas garantem aos olhos profanos uma base de sustentação absoluta. Os dois grandes olhos salientes são faróis. Apenas voam com as patas pendentes, sem recolher o trem de aterrissagem. Não têm deslocação silenciosa e sim atritam como simulando o pequeno motor. Nada têm de decorativas e sim figuram como aviões de caça aos insetos, colhendo-os no ar e indo devorá-los num galho, como fazia um gavião astuto. Mas é um encanto quando descem num voo picado à superfície do tanque e tocam-na, de passagem, como provando a estabilidade incomparável do aparelho. Não foram beber água. Aquele salto vertical foi uma manobra de caça. Agarram com as mandíbulas de aço fino um besourinho que corria e que nenhum olho humano jamais há de ver sem um cristal aumentador. Mesmo no tanque há uma ou outra mancha lívida, lembrando longinquamente umas gotas de óleo, tornando mais densa e visível a superfície. São apenas os planctos. Ali estão microanimais e vegetais responsáveis pela fauna aquática. Com eles a ictiofauna está garantidamente normal. São quase imperceptíveis mas representam mundos de vidas diversas, diferenciadas morfologicamente, com uma variedade de aspectos que passam do imponente ao ridículo. Este plancto serve para provar a previdente Natureza. No tanque não há peixe algum. Se houver, quando houver, não desaparecerá por falta de almoço. Creio que Dica, a aranha-d’água, não é freguesa destes planctos. Aí tomam banhos as aves, especialmente o bem-te-vi que chega às vezes a molhar-se inteiramente, não podendo voar e ficando, meio desconfiado, a enxugar-se, andando para lá e para cá, à sombra dos tinhorões.
A impressão de que o quintal está vazio é uma mentira dos sentidos. Piolhos, pulgas, cupins, mosquitos, moscas derramam-se por todos os recantos. Na casca das árvores, como se tivessem atirado punhados de farinha parda ou esverdeada, sugam a seiva os afídeos que se dão ao luxo de procriar com vinte dias de nascidos. Exsudam um líquido adocicado que as formigas vêm lamber, pressurosas. Estes pulgões são as vacas leiteiras das formigas, Aphis formicarum vacca, dizia Lineu.
Há besouros pequeníssimos, coloridos deliciosamente, com um ritmo vistoso e sugestivo que espera dar exemplo às fazendas destinadas às mulheres. Dificilmente posso vê-los. Estão sempre apressados em missões que devem ser importantes. Cabem dez deles na polpa do meu dedo. Miniaturas incomparáveis, de acabamento miraculoso, só aos técnicos oferecem as alegrias visuais de sua contemplação.
Na mancha úmida ao redor do tanque, perto da casa do mandarim Fu, a luz ocídua clareia um bailado torvelinhante de mosquitos de platina. Vão até uns três metros de altura na mesma intensidade de inacabável arabesco do Alhambra e descem, impecáveis, certos, infalíveis, até o chão. Horas dura a exibição desta movimentação febril e lúdica. Lembram as efeméridas múltiplas e radiosas, epi, durante, himera, dia, vivendo num dia a existência mutante e obscura de larva e ninfa.
É também uma ostentação amorosa, um baile de núpcias, uma conquista sexual pelo irrequieto dinamismo do volteio ascendente e descendente, convite que envolve o conúbio e termina na morte delirante, no ar, à luz, ao impulso espiralado da festa de todos os sentidos.
Mas, como qualquer festa, é júbilo passageiro, alegria rápida, fulgor veloz, sonho fugaz. Mais algumas horas e todos os bailarinos estarão mortos. Mas o quintal não se despovoará. Outra multidão retomará o ritmo do baile instantâneo, vivendo o momento álacre e sonoro das núpcias entre lampejos de sol e cantigas de vento.
Todos os anos, olhados pelas folhas e pelas flores, banhados na luz do crepúsculo, mirados pelas primeiras estrelas, os insetos, vestidos de seda e prata, bailarão para amar, perpetuar-se e desaparecer…
À flor da terra, debaixo dela, quantidades desmesuradas de vidas lutam e passam com tarefas miríficas de fecundação. Cada espécie visível corresponderá aos centos das que jamais veremos normalmente, colônias de bactérias em guerras contra outras, multidões de parasitas, surpresas de simbioses, animais misteriosos, formas indecisas, funções confusas mas possuindo destino, caminho, finalidade.
Milhares de minhocas, vermes, larvas procuram sobreviver e resistir. Todo um universo estuante, impetuoso, com a impiedade, violência, tempestade da defesa vital, debate-se nos limites deste canto de muro, humilde, pobre, silencioso, deserto.
E todas estas vidas escoam rápidas, num minuto de tempo, mas deixaram continuidade, sequência, perpetuidade.
Não somente as rosas sabem viver, em beleza, o espaço de uma manhã…

Luís da Câmara Cascudo, in Canto de Muro

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