...
cousas do mundo, humas que vão, outras que vem, outras que
atravessão, e todas passão.
Padre
Antonio Vieira: Sermão da Sexagésima, 1655
Ao
pôr do sol, na hora doce da luz tépida, o quintal se cobriu de
neve. Uma neve branca, perolada, com longes de azul e nácar,
descendo em ondas sucessivas e frementes, numa agitação que enchia
de sussurrante música imperceptível os galhos oscilantes e as
coisas imóveis. Tijolos, telhas, a face do tanque humilde, a
pirâmide residencial, os tufos das samambaias, as folhas dos crótons
e dos tinhorões, o triste capim atapetador, as roseiras floridas no
abandono, recobriram-se de um manto trêmulo e sutilmente sonoro de
asas inquietas.
Eram
as efeméridas.
A
aragem lenta da tarde arrastando-as da lagoa, atirava-as como nuvens
palpitantes de confete para a melancolia dos quintais despovoados.
Tudo se transformou sob aquela grandeza feita de mínimos, oceano sem
fim onde se viam as gotas que o constituíam. Uma como cantiga
silenciosa e perceptível tremulava no ar, fazendo-o colorido e
palpável pelas miríades e miríades de efeméridas volteando,
tontas e leves, na ânsia do amor e da morte na tarde vagarosa de
verão.
Viveram
em metamorfoses, da larva aquática ao animal adulto, vinte mudanças
de pele, três de forma, em 36 meses de mutação. Agora, com dois
pares de asas reticuladas, o corpo de um centímetro prolongando-se
em três fios delicados e impalpáveis, atravessam o espaço num
bailado deslumbrado de emancipação e de sacrifício.
Todos
esses anos de preparação orgânica convergiam para o destino de
fazê-las nascer no mesmo dia para que tivessem o esplendor de uma
única iniciação coletiva.
Este
é o dia da maravilha do voo, ostentação suntuosa de cores claras,
cintilantes e luminosas, nas derradeiras claridades do crepúsculo. É
sua festa única, primeira e final, experiência e despedida da força
impulsionadora das asas e do sexo. Durante três anos foram criadas
para viver uma hora frenética, impaciente, imortal. Uma hora de
intensidade total como nenhuma outra espécie. Toda a tentação da
Natureza generosa sacode-lhes o corpo num desejo que deve ser
satisfeito em minutos. Desejo de movimento com as asas de seda
transparente. Fome de amor para a vibração do sexo ainda virgem de
contato.
Não
se alimentarão. Não têm boca nem aparelho intestinal. Não levarão
da terra senão as lembranças do voo espiralado e junção
fulminante. Sua massa impalpável e sem conta cairá sobre as águas
da lagoa num lençol de metros e metros e numa elevação de
centímetros, cevando, fartando todos os peixes. Os quintais vizinhos
estão mudados em jardins suspensos e ondulantes, naquela palpitação
que enche os telhados, escorrega pelos beirais, juncando o solo de
prata que estremece. Para qualquer direção o olhar avista somente o
turbilhão das asas minúsculas esvoaçando sua dança de alegria
mortal.
Milhões
de casais revoluteiam nas núpcias luminosas e trágicas. As fêmeas
fecundadas deporão na água o ovo brilhante e pequenino como uma
joia, para viver três anos e sonhar a participação naquele
espetáculo tempestuoso de júbilo e de dor instantâneos.
E
todos desaparecerão, esgotados, evaporada a essência vital nos
diminutos corpos de seda reluzente.
Que
mudança nos hábitos do canto de muro! Todos os animais deixaram
suas tocas. Os pássaros prolongaram o expediente das caçadas. Os
insetos e batráquios anteciparam os horários da colheita vivente.
Mandíbulas e bicos fartam-se naquele pasto inesgotável e fácil. As
efeméridas voam ao rés do chão, tentando os apetites. Na altura
dos ninhos, outras colunas densas piruetam, sedutoras.
O
ar fica cheio de asas, somente asas sem corpos, flutuando como
destroços do mundo desaparecido e veloz. E vêm descendo como
pétalas brancas, lentas, bem lentas, para enfeitar o chão.
Toda
a região teve a visita da multidão estranha. Os ventos da noite
levaram para longe os cadáveres alados que desafiavam a gravidade.
Ainda pela manhã a luz mostrará uma ou outra asa pairando,
indecisa, no alto, inacreditável, tênue, melancólico vestígio da
prodigiosa aventura…
Não
raro, nem comum é o vento nordeste sacudir uma onda interminável de
borboletas alaranjadas, com laivos de açafrão nas asas impacientes.
O grosso da expedição passa mais alto, por cima das árvores, dando
uma breve sombra fugidia de sua multidão. Miríades pousam em
descanso fortuito que a fome animal muda definitivamente a estada.
Diz-se apenas “enxame de borboletas” mas é o panapaná, a
migração em massa, miraculoso caudal, vida que alaga o quintal como
numa ruptura de porta de água. São como uma vaga de asas trêmulas,
oscilando em cadência ou ficando paradas, a prumo sobre o corpo,
expondo as cores atraentes numa amostra curta de beleza emigrante.
Árvores, telhas, recantos desaparecem sob as camadas vivas que
ficam, num frenesi, voejando rasteiras, subindo em perpendicular e
caindo nas verticais como se faltasse alento substancial para a
jornada maravilhosa.
Gabriel
Soares de Sousa viu-as (1587) cobrindo dez léguas de lonjura entre a
cidade do Salvador à outra banda a baía, num dia inteiro de
desfile. Henry Walter Bates olhou-as, de sol a sol, perto de Óbidos,
em dois dias de trânsito incessante. Detiveram, com sua massa
palpitante, o navio em que viajava Teófilo de Andrade no Rio Paraná,
em ciclo de desova que lhes custava a vida.
Vão
do norte para o sul e não deixam no recinto do quintal nem uma
relíquia de sua futura descendência. Trata-se de migração
misteriosa, para fins de acomodação vital, fugindo a algum inimigo
invencível e novo. Não são comuns nem raras. Afogam com o volume
exuberante as fomes das espécies famintas. Durante horas atravessam
os terrenos, abatendo-se aos milhares, perdendo-se no capim curto,
entre as pedras, nas barrocas lacustres, imóveis nos montões de
folhas secas que o vento amontoou. São as patrulhas exaustas, as
colunas trôpegas, extenuadas, pousando para sacrificar-se no
descanso que significa possibilidade de morte. As águas da lagoa
próxima e do pequeno tanque desaparecem sob suas asas de cores
pálidas, levemente agitadas por um sopro de vida.
Os
animais, vorazes e atrevidos nos primeiros momentos, recuam diante
daquela caça que se tornou agressiva na passividade e desprestigiada
pela esmagadora abundância. O chão parece vestido de asas de
ouro-claro e açafrão. Bruscamente retomam o voo lerdo, batendo
muito as asas, tentando acompanhar o estado-maior distanciado no céu
crepuscular. Vão ficando pelo caminho, perdendo a formação
regular, abatendo-se nas curvas, desgarradas e fracas, semeando no
percurso da viagem um raro terreno de corpos e asas despedaçadas.
Na
manhã seguinte ou no correr do dia inesperadamente reaparece uma
borboleta aturdida de sol, retardatária, em voo desesperado e último
ao rés do campo, despedindo-se da vida breve. É uma surpresa vê-la
erguer-se dos recantos ignorados e mostrar um instante, como
cavaleiro perdido em campo inimigo e cruel, as cores heroicas de sua
falange desaparecida.
Os
que habitam o canto de muro sabem destas vidas intensas e
luminosamente passageiras. Apenas homens de estudo conhecem outras
existências que a limitação do volume tornou invisíveis para os
interesses comuns da terra. Jamais figurarão nos livros de
imaginação, romance ou poemas, porque não apareceram ao alcance
dos olhos criadores de romancistas e de poetas. No comum dos volumes
estão indicados nos vagos etc. generalizadores. São quase
animálculos, revelados pelas réstias de sol, tornados sensíveis
quando próximos, passeando num rebordo de folha ou subindo,
laboriosamente, por um grão de areia. Voando, soltos, libertos, em
pleno ar, são invisíveis. Parecem grãos microscópios de uma
semente que estremece sob nossos dedos rústicos. Têm uma história,
uma fisiologia, uma vida organizada, costumes, idiossincrasias,
prazeres, vícios, paixão, lutas, amores. Têm um lar, uma fêmea,
filhos, épocas de paixão, ciúmes, zonas ecológicas em que vivem,
migrações, viagens e, quem sabe lá, heróis famosos, memórias de
façanhas, de jornadas valentes através de mundos terríveis, talvez
do tronco da mangueira ao primeiro tijolo da pirâmide. Conhecem
animais monstruosos como Licosa e Titius, numa sensação semelhante
à nossa deparando dinossauros em vez de elefantes e plesiossauros no
canto dos lagartos familiares. Devem sentir dor, sono, cansaço,
raiva, ódio, fome. Devem ter amigos, desafetos, antipatias,
companheiros, aliados, cúmplices. Nunca os podemos ver, a olhos nus,
como realmente são. Obras-primas de delicadeza organizada, de
precisão fisiológica, de exatidão funcional, têm raríssimos
amigos entre os homens e nunca mereceram, numa página exclusiva, o
registro indispensável de sua biografia sedutora.
Todo
este esplendor vive horas, dias, semanas, meses apenas. Sem ele
várias espécies pereceriam e na falta destas uma cadeia inteira de
utilidades relativas ao homem deixaria de existir. Aquela partícula
vibrante que se debate, como uma poeira que é o seu grupo, num raio
de sol, é o alimento que, de grau em grau, atinge o rei da Criação
numa dependência de necessariedade preciosa.
Há
nele substâncias químicas indispensáveis a outras vidas superiores
e escravas de sua existência. Sua presença invisível é tão
poderosa como um ácido para os mistérios da fermentação, de uma
base, de um sal. Ele representa na sua humildade um elo infalível na
seriação vital.
Estes
bandos de libélulas lembram os velhos monoplanos do meu tempo de
menino. Monoplano de Blériot que atravessou o Canal da Mancha, o
Demoiselle de Santos Dumont. As duas asas extensas garantem aos olhos
profanos uma base de sustentação absoluta. Os dois grandes olhos
salientes são faróis. Apenas voam com as patas pendentes, sem
recolher o trem de aterrissagem. Não têm deslocação silenciosa e
sim atritam como simulando o pequeno motor. Nada têm de decorativas
e sim figuram como aviões de caça aos insetos, colhendo-os no ar e
indo devorá-los num galho, como fazia um gavião astuto. Mas é um
encanto quando descem num voo picado à superfície do tanque e
tocam-na, de passagem, como provando a estabilidade incomparável do
aparelho. Não foram beber água. Aquele salto vertical foi uma
manobra de caça. Agarram com as mandíbulas de aço fino um
besourinho que corria e que nenhum olho humano jamais há de ver sem
um cristal aumentador. Mesmo no tanque há uma ou outra mancha
lívida, lembrando longinquamente umas gotas de óleo, tornando mais
densa e visível a superfície. São apenas os planctos. Ali estão
microanimais e vegetais responsáveis pela fauna aquática. Com eles
a ictiofauna está garantidamente normal. São quase imperceptíveis
mas representam mundos de vidas diversas, diferenciadas
morfologicamente, com uma variedade de aspectos que passam do
imponente ao ridículo. Este plancto serve para provar a previdente
Natureza. No tanque não há peixe algum. Se houver, quando houver,
não desaparecerá por falta de almoço. Creio que Dica, a
aranha-d’água, não é freguesa destes planctos. Aí tomam banhos
as aves, especialmente o bem-te-vi que chega às vezes a molhar-se
inteiramente, não podendo voar e ficando, meio desconfiado, a
enxugar-se, andando para lá e para cá, à sombra dos tinhorões.
A
impressão de que o quintal está vazio é uma mentira dos sentidos.
Piolhos, pulgas, cupins, mosquitos, moscas derramam-se por todos os
recantos. Na casca das árvores, como se tivessem atirado punhados de
farinha parda ou esverdeada, sugam a seiva os afídeos que se dão ao
luxo de procriar com vinte dias de nascidos. Exsudam um líquido
adocicado que as formigas vêm lamber, pressurosas. Estes pulgões
são as vacas leiteiras das formigas, Aphis formicarum vacca, dizia
Lineu.
Há
besouros pequeníssimos, coloridos deliciosamente, com um ritmo
vistoso e sugestivo que espera dar exemplo às fazendas destinadas às
mulheres. Dificilmente posso vê-los. Estão sempre apressados em
missões que devem ser importantes. Cabem dez deles na polpa do meu
dedo. Miniaturas incomparáveis, de acabamento miraculoso, só aos
técnicos oferecem as alegrias visuais de sua contemplação.
Na
mancha úmida ao redor do tanque, perto da casa do mandarim Fu, a luz
ocídua clareia um bailado torvelinhante de mosquitos de platina. Vão
até uns três metros de altura na mesma intensidade de inacabável
arabesco do Alhambra e descem, impecáveis, certos, infalíveis, até
o chão. Horas dura a exibição desta movimentação febril e
lúdica. Lembram as efeméridas múltiplas e radiosas, epi, durante,
himera, dia, vivendo num dia a existência mutante e obscura de larva
e ninfa.
É
também uma ostentação amorosa, um baile de núpcias, uma conquista
sexual pelo irrequieto dinamismo do volteio ascendente e descendente,
convite que envolve o conúbio e termina na morte delirante, no ar, à
luz, ao impulso espiralado da festa de todos os sentidos.
Mas,
como qualquer festa, é júbilo passageiro, alegria rápida, fulgor
veloz, sonho fugaz. Mais algumas horas e todos os bailarinos estarão
mortos. Mas o quintal não se despovoará. Outra multidão retomará
o ritmo do baile instantâneo, vivendo o momento álacre e sonoro das
núpcias entre lampejos de sol e cantigas de vento.
Todos
os anos, olhados pelas folhas e pelas flores, banhados na luz do
crepúsculo, mirados pelas primeiras estrelas, os insetos, vestidos
de seda e prata, bailarão para amar, perpetuar-se e desaparecer…
À
flor da terra, debaixo dela, quantidades desmesuradas de vidas lutam
e passam com tarefas miríficas de fecundação. Cada espécie
visível corresponderá aos centos das que jamais veremos
normalmente, colônias de bactérias em guerras contra outras,
multidões de parasitas, surpresas de simbioses, animais misteriosos,
formas indecisas, funções confusas mas possuindo destino, caminho,
finalidade.
Milhares
de minhocas, vermes, larvas procuram sobreviver e resistir. Todo um
universo estuante, impetuoso, com a impiedade, violência, tempestade
da defesa vital, debate-se nos limites deste canto de muro, humilde,
pobre, silencioso, deserto.
E
todas estas vidas escoam rápidas, num minuto de tempo, mas deixaram
continuidade, sequência, perpetuidade.
Não
somente as rosas sabem viver, em beleza, o espaço de uma manhã…
Luís da Câmara Cascudo, in Canto de Muro
Nenhum comentário:
Postar um comentário