Tive
um dia desses um almoço alegre e melancólico. Tratava-se do
reencontro de três ex-colegas da Faculdade Nacional de Direito. A
atmosfera lembra a do livro e do filme O grupo, menos as
confidências que não fizemos. Reencontro alegre porque gostávamos
umas das outras, porque a comida estava boa e tínhamos fome.
Melancólico porque a vida trabalhara muito em nós, e ali estávamos
sorridentes, firmes. E melancólico também porque nenhuma de nós
terminara sendo advogada. Advogada, meu Deus. Era só o que me
faltava, eu que me atrapalho em lidar burocraticamente com o mais
simples papel.
Melancólico
porque havíamos perdido tantos anos de estudo à toa. Estudo? Só
uma de nós estudara mesmo, filha de famoso jurista que era. Quanto a
mim, a escolha do curso superior não passou de um erro. Eu não
tinha orientação, havia lido um livro sobre penitenciárias, e
pretendia apenas isto: reformar um dia as penitenciárias do Brasil.
San Tiago Dantas uma vez disse que não resistia à curiosidade e
perguntou-me o que afinal eu fora fazer num curso de Direito.
Respondi-lhe que Direito Penal me interessava. Retrucou: “Ah bem,
logo adivinhei. Você se interessou pela parte literária do Direito.
Quem é jurista mesmo gosta é de Direito Civil.” A saudade que
tenho de San Tiago.
Voltando
ao grupo: nós nos despedimos alegres ou tristes? Não sei. Em mim
havia um certo estoicismo, em relação a ter tido uma parte de meu
passado tão inútil. Ora, mas quantas outras coisas inúteis eu já
havia vivido. Uma vida é curta: mas, se cortarmos os seus pedaços
mortos, curtíssima fica ela. Transforma-se numa vida feita de alguns
dias apenas? Bem, mas é preciso não esquecer que a parte inútil
fora, na hora, vivida com tanto ardor (por Direito Penal). O que de
algum modo paga a pena.
Saí
da casa de minha amiga para um sol de três horas da tarde, e num
bairro que raramente frequento, Urca. O que mais acresceu a minha
perdição. Estranhei tudo. E, por me estranhar, vi-me por um
instante como sou. Gostei ou não? Simplesmente aceitei. Tomei um
táxi que me deixaria em casa, e refleti sem amargura: muita coisa
inútil na vida da gente serve como esse táxi: para nos transportar
de um ponto útil a outro. E eu nem quis conversar com o chofer.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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