sábado, 11 de maio de 2024

O grupo

Tive um dia desses um almoço alegre e melancólico. Tratava-se do reencontro de três ex-colegas da Faculdade Nacional de Direito. A atmosfera lembra a do livro e do filme O grupo, menos as confidências que não fizemos. Reencontro alegre porque gostávamos umas das outras, porque a comida estava boa e tínhamos fome. Melancólico porque a vida trabalhara muito em nós, e ali estávamos sorridentes, firmes. E melancólico também porque nenhuma de nós terminara sendo advogada. Advogada, meu Deus. Era só o que me faltava, eu que me atrapalho em lidar burocraticamente com o mais simples papel.
Melancólico porque havíamos perdido tantos anos de estudo à toa. Estudo? Só uma de nós estudara mesmo, filha de famoso jurista que era. Quanto a mim, a escolha do curso superior não passou de um erro. Eu não tinha orientação, havia lido um livro sobre penitenciárias, e pretendia apenas isto: reformar um dia as penitenciárias do Brasil. San Tiago Dantas uma vez disse que não resistia à curiosidade e perguntou-me o que afinal eu fora fazer num curso de Direito. Respondi-lhe que Direito Penal me interessava. Retrucou: “Ah bem, logo adivinhei. Você se interessou pela parte literária do Direito. Quem é jurista mesmo gosta é de Direito Civil.” A saudade que tenho de San Tiago.
Voltando ao grupo: nós nos despedimos alegres ou tristes? Não sei. Em mim havia um certo estoicismo, em relação a ter tido uma parte de meu passado tão inútil. Ora, mas quantas outras coisas inúteis eu já havia vivido. Uma vida é curta: mas, se cortarmos os seus pedaços mortos, curtíssima fica ela. Transforma-se numa vida feita de alguns dias apenas? Bem, mas é preciso não esquecer que a parte inútil fora, na hora, vivida com tanto ardor (por Direito Penal). O que de algum modo paga a pena.
Saí da casa de minha amiga para um sol de três horas da tarde, e num bairro que raramente frequento, Urca. O que mais acresceu a minha perdição. Estranhei tudo. E, por me estranhar, vi-me por um instante como sou. Gostei ou não? Simplesmente aceitei. Tomei um táxi que me deixaria em casa, e refleti sem amargura: muita coisa inútil na vida da gente serve como esse táxi: para nos transportar de um ponto útil a outro. E eu nem quis conversar com o chofer.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

Nenhum comentário:

Postar um comentário