sábado, 11 de maio de 2024

Atualidade de Pedro Pedreiro


Chico Buarque desenvolve, em suas composições, temáticas que tratam do homem comum na multidão, do guri delinquente, do malandro, da moça solitária, da separação dos amantes, do carnaval e até dá voz à mulher que faz o doce predileto de seu homem que voltará da labuta diária, visitando pelo caminho estações do universo masculino.
O conjunto da obra de Chico Buarque permite que se diga que se trata de um poeta da vida urbana, seja quando reconstitui a alegria da banda em um cenário com marcas de cidadezinha interiorana, seja na contemplação da vida da gente humilde da periferia da metrópole.
Apesar de só ter estreado mais tarde na ficção e na dramaturgia, sua poesia vai além da contemplação pontual de uma cena interiorizada poeticamente e instaura personagens, às quais atribui ações, angústias, perspectiva de vida (ou não). Essa característica é muito bem observada por Affonso Romano de Sant’Anna: “O poeta tem uma certa preferência por textos narrativos onde se conta uma história ou uma parábola”.
Assim, contemplando a multidão anônima da(s) metrópole(s), Chico Buarque volta-se para criaturas destituídas de traços nobres ou de heroísmo diante dos olhos comuns, e que só merecem destaque graças ao olhar poético do compositor, como, por exemplo, o trabalhador da construção civil, em “Pedro pedreiro” e em “Construção”. Sua poética compromete-se com o reflexo da realidade.
Esse olhar poético, Júlio Cesar Valladão Diniz chama “lirismo prosaico”. O mesmo crítico ressalta que o fenômeno é notável desde o início da carreira de Chico Buarque, apontando para

uma poética da música como abertura para os temas prosaicos do cotidiano, literalmente ocupado por personagens que vivem o peso de suas próprias tragédias (Juca, Madalena, Pedro Pedreiro, Rita, Carolina, Januária).

A essas personagens, Diniz acrescenta, como traços da poesia buarqueana, a

observação das manifestações sociais e culturais como celebração (o desfile da banda, a festa do carnaval); e [...] forte sentimento de nostalgia diante de um mundo que perdia a sua inocência, ligado à ideia de que a música reafirma a possibilidade utópica de transformação política e social, um certo retorno ao paraíso e suas visões, atitude de afirmação de uma ideia de identidade nacional a ser construída.

Tais características levaram muitas de suas criações à classificação de canção de protesto. Todavia, Anazildo Vasconcelos da Silva, um dos primeiros a estudar essas composições, reafirmando a visão crítica de seu trabalho pioneiro, lembra que

Na introdução do livro, eu afirmava que a poesia de Chico Buarque, como toda poesia autêntica, rompia com os possíveis condicionamentos externos e integrava a problemática humano-existencial na universalidade das formas artísticas. Meu objetivo era, então, combater as interpretações que, de uma forma generalizada, prendiam a poesia de Chico Buarque ao contexto circunstancial da Canção de Protesto, advertindo que enquadrá-la a uma circunstância efêmera, qualquer que fosse sua natureza, seria negar-lhe a validade poética e reduzi-la a coisa nenhuma.

Explica o mesmo crítico:

Canção de Protesto foi um rótulo utilizado, nas décadas de 60 e 70 do século XX, para designar um tipo de produção poética no setor da MPB que denunciava a opressão instaurada com o regime militar. Definida apenas pelo aspecto contestatório dos textos, que a vinculavam a uma suposta militância política, a Canção de Protesto não constituiu, de fato, uma categoria crítica, por isso caiu em desuso com o desaparecimento da situação política a que aludia.

Evitando o rótulo do passado, Leonardo Boff, muito provavelmente inspirado na Teologia da Libertação, prefere dizer:

Os valores recorrentes em sua vasta obra são aqueles ligados à tradição da solidariedade, da igualdade e da fraternidade. Apóia, sempre que solicitado, os destituídos e pobres, os sem-terra. Jamais negocia com a liberdade e, mesmo dentro da escuridão, convoca a alegria de viver e preserva a utopia contra todo o cinismo e pragmatismo. Com razão canta no “Pedro pedreiro” (1965): “Pedro não sabe mas talvez no fundo / Espera alguma coisa mais linda que o mundo”.

1. “PEDRO PEDREIRO”: LEVEZA, RAPIDEZ E MULTIPLICIDADE NA ECONOMIA DO TEXTO

A canção citada por Boff integra o primeiro compacto do artista, lançado em 1965; foi incluída no álbum Chico Buarque de Hollanda, lançado em 1966(7). Considerando que essa composição pode ter sido responsável pela inclusão de Chico Buarque na série da chamada canção de protesto ou na temática da solidariedade, da igualdade e da fraternidade, salientada por Boff, façamos, então, uma breve leitura de seus versos.
A composição, lançada no ano seguinte ao início do regime militar, é considerada por Toninho Spessoto como “emblemática”.
Wagner Homem transcreve trecho da entrevista de Chico Buarque à Rádio do Centro Cultural São Paulo, em 1985, no qual assim o autor explica sua criação:

[...] ainda era resquício do movimento que havia da chamada resistência, que foi logo depois de 64, quando veio aquela onda toda do Opinião, da oposição que se fazia dentro dos teatros, na música popular – já que noutros campos a oposição foi abortada, calada, e então se transferiu das fábricas, da praça pública e do Congresso para as artes: o teatro, o cinema e a música.

Gostaríamos de ressaltar que os sessenta versos de “Pedro pedreiro”205 não apresentam grande variedade vocabular. Sem contar conjunções, artigos, pronomes e advérbios, apenas considerando-se as formas nominais (substantivos e adjetivos), são usadas 34 palavras e mais o neologismo “penseiro” (total: 35), que, repetidas, alcançam 93 nomes. Chico Buarque usou onze verbos em variadas flexões, somando 33 expressões verbais, algumas locuções verbais e mais o verbo “esperar” no gerúndio 35 vezes e em outras flexões nove vezes, em um total de 44 ocorrências.
Com tal economia lexical, o poema oferece um tipo urbano, o pedreiro, no início de seu dia de trabalho, em uma estação de trem. O segundo verso esclarece o instante em que o olhar poético toma a figura desse trabalhador: madrugada (“Manhã, parece, carece de esperar também”).
Nomeado Pedro, o personagem remete a pedra, firmeza, peso. Dita sua profissão, confirmam-se os sentidos de seu nome, acrescentando-se construção, possível construção de solidez, de estabilidade. O adjetivo que lhe é conferido, penseiro, contribui para imprimir movimento, fluidez. Ora, além de ter como profissão ser pedreiro, essa criatura também exerce o ofício de penseiro: constrói pensamentos, que podem ser interpretados como planos, sonhos. Graças a ser também penseiro, o pedreiro Pedro ganha leveza, movimento. O personagem que, a princípio, parece ser contemplado pontualmente, sem movimento, em um ponto de passagem e de seguimento do trem, mostra-se dinâmico em sua espera de penseiro. A leveza da situação acentua-se com “Manhã”, “sol”, “festa”, “mar”, “carnaval” e na utopia de “alguma coisa mais linda que o mundo” e até nos parcos recursos “de quem não tem vintém”.
Evidentemente, nada há de idílico ou bucólico na história de Pedro, e nem é esse o interesse da composição. Em um gesto de empatia e de comunhão, o poeta apreende as contradições da experiência do personagem. Dessa análise da situação, resulta a atitude crítica que o texto procura alcançar, na perspectiva do reflexo da realidade. Por isso, à leveza do penseiro, contrapõem-se o peso de seu nome Pedro, o peso da desesperança do aumento salarial nunca recebido, o da sorte do bilhete nunca premiado, o do desejo “de voltar pro Norte”, e o da morte e mais o do “desespero de esperar demais”. Aliás, muito do peso da composição deve-se também à máquina tão presente em todo o poema, que, apesar de sugerir leveza na rapidez de seu deslocamento, traz a ideia de ferro, de destino fixo no traçado da linha pela qual deve sempre seguir, do vai e volta interminável, da impossibilidade de mudança. Italo Calvino lembra o peso como valor oposto à leveza, salientando que tal característica não significa menor valor estético, mas que nos leva a apreciar a leveza.
Em qualquer madrugada/manhã, em algum subúrbio metropolitano, há várias pessoas aguardando transporte, a caminho do trabalho. Pode até ser possível reconhecer suas profissões a partir da vestimenta, de instrumentos de trabalho que carregam (pastas, sacolas, ferramentas presas ao macacão, por exemplo). Mas dificilmente pode-se ver algum traço material que informe que tal pessoa tem o ofício de penseiro ou que se ocupe de construir ou elaborar pensamentos. O gesto autoral na criação desse adjetivo traduz o que Calvino entende como “a narração de um raciocínio ou de um processo psicológico no qual interferem elementos sutis e imperceptíveis, ou qualquer descrição que comporte um alto grau de abstração”. Adiante, penseiro é traduzido analiticamente em uma locução verbal: “Pedro pedreiro fica assim pensando”. Logo, pensar é característica atribuída a Pedro pedreiro e, ao mesmo tempo, seu modo de ser, de viver. Outro traço do perfil do personagem decorre de esperar: “Pedro pedreiro penseiro esperando o trem”.
Na verdade, antes de informar ação do personagem, “esperando” remete a sua condição, qualificando-a. O primeiro verso, sendo uma oração subordinada adjetiva reduzida de gerúndio,209 não se tendo notícia da oração principal (portanto, não há predicado a ser modificado), soma mais um adjetivo a pedreiro e penseiro: esperando. Não seria leviano traduzir assim a apresentação do personagem: Pedro pedreiro penseiro esperador.
Assim, o olhar poético interioriza a figura do trabalhador, interpretando-o e conferindo leveza a sua imagem.
A abstração realizada pelo poeta desparticulariza a criatura objetiva, que passa a ser qualquer trabalhador ou todos aqueles que, começando a jornada, sonham, fazem planos, fazem um rápido balanço da vida e de suas perspectivas: “Assim pensando o tempo passa / E a gente vai ficando pra trás / Esperando, esperando, esperando / Esperando o sol / Esperando o trem”. Pedro é o nome de todos os pedros, que vivem a mesma história contada na repetida oração subordinada reduzida de gerúndio, agora de natureza adverbial, na medida que modifica “a gente vai ficando pra trás”. O fado coletivo está indicado na rapidez da síntese: “E a mulher de Pedro / Está esperando um filho / Pra esperar também”.
O gerúndio de esperar não reduz a contemplação poética a um instante, a um presente. A ação de esperar não se esgota nem no aspecto pontual e nem no conclusivo, como, por exemplo: Pedro esperou o trem. A repetição de esperar em variadas flexões, mas principalmente no gerúndio, instaura o aspecto cursivo ou durativo da ação, que, no recurso da repetição, também se realiza no aspecto frequentativo. Esperar expande-se como marca da coletividade e, no processo, como certeza da continuidade.
Esse emprego do verbo esperar atribui ao poema um tom narrativo: Pedro, ontem, hoje, amanhã, esperou, espera, esperará. A mulher de Pedro está esperando um filho. O filho de Pedro esperará. O poeta conta a vida de Pedro, da mulher de Pedro como uma constante e repetida espera. “A gente”, outros pedros, também espera. O movimento contido nessa espera permanente está na certeza do futuro: o filho de Pedro esperará. A presença do trem imprime movimento à espera e abre a perspectiva para adiante: continuar a esperar.
Fugindo do manifesto, mas em conformidade com os valores declinados por Boff, Chico Buarque trabalha com um ritmo marcante, que imprime rapidez ao que se narra, usando a consoante oclusiva surda [p]:

1. nas aliterações “Pedro pedreiro penseiro”, “Pedro pedreiro”, “passado para”, “pedreiro pobre”, por exemplo, além da que se espalha pelo poema, conferindo-lhe a marcação melódica definitiva “Esperando, esperando, esperando”;
2. no insistente ruído que pontua os versos graças a “Para”, “pensando”, “passa”, “passado”, “pra” etc.;
3. na alternância com sua opositiva sonora [b], como em “bem”, “também”, “[não] sabe”.

Outro recurso para cadenciar o poema é o eco, como “bem de quem tem bem / De quem não tem vintém”, que se repete (ecoa) ao longo da composição, pontuando-a com a nasalização. A vogal nasal “e” compõe a rima trem/também/vintém/vem e bem na rima interna, alternando-se com sorte/morte/Norte .
Essas sonoridades podem sugerir tanto a lembrança do barulho resultante do trabalho de pedreiro ([p], [b]) como podem imitar o ruído do trem e seu movimento; essa impressão culmina na mimese do apito da máquina em “aflita, bendita, infinita / Do apito do trem”, em rimas internas consoante (ita) e soante (ita/ito), que nem mesmo evita a presença do que sugere: “apito [do trem]”.
Por outro lado, o recurso de tal jogo fônico insinua a monotonia da repetição da interminável espera, que, por nunca terminar, contamina Pedro, a mulher e o filho que virá, e a gente, tal como o barulho da máquina sempre na mesma cadência: “Que já vem / Que já vem / Que já vem / Que já vem / Que já vem / Que já vem”, ao se aproximar da estação, para logo recomeçar a seguir seu caminho.
Na economia do discurso, Chico Buarque narra a aventura de Pedro, sua mulher e anuncia a de seu filho, valendo-se, principalmente, do verbo esperar e de recursos sonoros da língua portuguesa: “um despojamento da linguagem por meio do qual os significados são canalizados por um tecido verbal quase imponderável até assumirem essa mesma rarefeita consistência”. Como diria Calvino, sua narrativa “é um cavalo, um meio de transporte cujo tipo de andadura, trote ou galope, depende do percurso a ser executado, embora a velocidade de que se fala aqui seja uma velocidade mental”. Assim, na leveza e na rapidez do poema buarqueano, podemos entrever outros Pedros pedreiros penseiros esperadores e outras mulheres grávidas de outros Pedros pedreiros penseiros esperadores: multiplicidade.

2. “PEDRO PEDREIRO”: VISIBILIDADE E EXATIDÃO EM UMA HISTÓRIA EXEMPLAR

O primeiro verso oferece o personagem em um cenário claramente definido: trabalhador na estação de trem. A construção da cena contribui para anunciar o que vai ser falado (narrado): o tempo da aventura é o início da jornada. A caracterização do personagem Pedro pedreiro penseiro esperador permite a visualização do quadro nas primeiras horas do dia, ainda na madrugada (“Manhã, parece, carece de esperar também”), e fixa definitivamente o interesse do que será contado/cantado.
Chico Buarque permite que o leitor ou o ouvinte do poema apreenda a cena e antecipe a aventura de Pedro. Anos depois, Calvino explicou seu interesse por textos capazes de permitir tal experiência ao receptor:

Se incluí a visibilidade em minha lista de valores a preservar foi para advertir que estamos correndo o perigo de perder uma faculdade humana fundamental: a capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados, de fazer brotar cores e formas de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros sobre uma página branca, de pensar por imagens.

Se o discurso de “Pedro pedreiro” permite a visibilidade da cena inicial, também persegue a exatidão do tempo do evento. Sabe-se que o personagem se encontra na estação ainda de madrugada, quando o poeta diz “Esperando o sol”; tanto o protagonista como os demais na mesma estação: “Assim pensando o tempo passa / E a gente vai ficando pra trás / Esperando, esperando, esperando / Esperando o sol / Esperando o trem”.
Para melhor estabelecer os principais traços da aventura, o texto enumera o aumento salarial, o carnaval, a sorte grande do bilhete de loteria, a festa, o dia de voltar para a terra natal, algum acontecimento bom em sua vida, na indeterminação “coisa mais linda que o mundo / Maior do que o mar”. Isolada, a enumeração dos desejos do personagem pode remeter à utopia, dispensando a atitude crítica da narrativa. Por isso, os valores positivos são perpassados pela negatividade da morte, pelo “desespero de esperar demais”. Mas a radical desconstrução do sonho está na espera do filho, uma vez que, para ele, nada mudará na certeza de que seu descendente viverá espera e desencanto iguais aos seus, de “pedreiro pobre”. Com o apontamento das contradições dos sonhos e planos do personagem, face às condições sociais de seu mundo, o poema traduz a dimensão da angústia, da monotonia, do desencanto da aventura de Pedro.
Segundo lição de Calvino,

exatidão quer dizer principalmente três coisas:
1. um projeto de obra bem definido e calculado;
2. a evocação de imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis; [...]
3. uma linguagem que seja a mais precisa possível como léxico e em sua capacidade de traduzir as nuanças do pensamento e da imaginação.

3. “PEDRO PEDREIRO”: CONCISÃO COMO PROJETO POÉTICO

A leitura ou a audição desse poema chama atenção tanto para a economia lexical como para a repetição de palavras e sons, conforme já foi salientado. Porém, esses recursos não bastam para apontar a concisão como valor literário da composição.
O projeto poético de “Pedro pedreiro” pretende mais do que falar de um trabalhador, esperando transporte, na madrugada. Quando o eu poético se aproxima e se confunde com seu personagem (“Assim pensando o tempo passa / E a gente vai ficando pra trás / Esperando, esperando, esperando / Esperando o sol / Esperando o trem”), revela que não fala apenas do personagem singular. A forma pronominal “a gente” significa “nós”; Pedro e mais o eu que fala: nós. Todavia, esse “nós” tem uma carga de indefinição que contribui para uma pluralidade mais ampla: nós todos, nós outros.
Assim, na concisão de “a gente”, o poeta inclui muitos outros ou todos os outros trabalhadores na aventura de Pedro.
Na enumeração dos desejos e sonhos do personagem, merecem destaque dois itens: o carnaval e o bilhete de loteria.
Ambas as manifestações culturais não se fazem com sujeito singular. O carnaval é festa coletiva e seu sentido implica inversão de valores, como o pobre travestir-se de rico, de rei; subversão da ordem do trabalho, da disciplina do horário, na libertação da folia, do canto, da dança; eliminação temporária da figura do patrão no feriado de festa, de festa de fantasia, de irreverência. No carnaval esperado pelo personagem estão contidas a mesma espera e a mesma inversão de valores de uma coletividade; portanto, aí estão muitos e muitos outros trabalhadores que sonham com a libertação da monotonia repetitiva do cotidiano.
Interpretação semelhante merece o bilhete de loteria. Sabe-se que a existência de loteria depende do interesse de muitos jogadores, uma vez que esse tipo de empresa se sustenta com o dinheiro dos apostadores. O bilhete de Pedro não sai premiado, pois outro trabalhador tirou a sorte grande. Logo, o sonho do prêmio é sonho de muitos.
Juntamente com o carnaval, o bilhete premiado é recurso para a inversão de valores. Contudo, o sonho do prêmio é para uma mudança de estatuto definitiva: tornar-se rico, rei; enquanto o carnaval permanece na condição de mudança provisória, ilusória. Carnaval e bilhete de loteria situam-se no plano da utopia de Pedro e de nós outros: a gente.
Pedro pedreiro” fala da aventura de muitos outros trabalhadores reunidos em Pedro e remete a elementos culturais, tecendo no espaço hipertextual a utopia da libertação, ao incluir comportamentos brasileiros, notáveis entre trabalhadores.
A concisão do texto assegura-se no projeto de “voltar pro Norte”, alimentado pelos trabalhadores migrantes, em demanda de oportunidades no Sudeste e no Sul. A longa história dos trabalhadores desenraizados, que servem à lenta marcha do progresso nas regiões mais desenvolvidas; um extenso rol de planos, de decepções dos migrantes. Alguns têm sucesso (graças ao bilhete de loteria?). Mais do que uma aspiração individual do personagem, o sonho de “voltar pro Norte”, como hipertexto, é parte da história do trabalho no Brasil.
Recorrendo a alguns expedientes de linguagem e mencionando certos traços culturais, Chico Buarque, no exercício da concisão, conduz seu poema a significações que ampliam a aventura de Pedro.

4. “PEDRO PEDREIRO”: DISCURSO POLÍTICO

Uma melhor leitura do poema mostra que sua construção obedece à rigorosa unidade temporal e espacial: madrugada; estação de trem. Sem quebrar essas duas unidades, o texto perscruta o passado e prevê o futuro da rotina, da desesperança.
Chico Buarque toma a história de Pedro como situação sensível e exemplar da vida cotidiana, com a qual o eu lírico se identifica e se amplia na pluradidade de “a gente”. O uso do gerúndio repetido de esperar traduz o desconforto, o mal-estar, a insatisfação permanente. A reação do personagem consiste em buscar refúgio na festa, no carnaval, no sonho do bilhete de loteria e no de voltar para a terra natal.
A lição de Alfredo Bosi, em sua hipótese de trabalho sobre o romance, pode ser aplicada ao texto buarqueano: “o herói procura ultrapassar o conflito que o constitui existencialmente pela transmutação mítica ou metafísica da realidade”. Não se expondo ao enfrentamento das contradições da realidade em uma proposta de luta transformadora, o personagem não mantém em relação a seu mundo uma tensão crítica, mas sim uma tensão transfigurada. Instaurando-se semelhante ao herói, o eu poético (“a gente”) socializa a tensão do protagonista, em conformidade com o projeto de reflexo da realidade. O conflito é gerado na tensão entre a espera e as contradições da estrutura social (“Esperando o aumento / Desde o ano passado / Para o mês que vem”), que impedem a mudança da ordem estabelecida:

Mas pra que sonhar
Se dá o desespero de esperar demais
Pedro pedreiro quer voltar atrás
Quer ser pedreiro pobre e nada mais
Sem ficar esperando, esperando, esperando
Esperando o sol
Esperando o trem
Esperando o aumento para o mês que vem
Esperando um filho pra esperar também
[...]
Esperando o dia de esperar ninguém
Esperando enfim nada mais além
Da esperança aflita, bendita, infinita
Do apito do trem

Permitindo o escapismo para o plano mítico do sonho, Chico Buarque afasta-se do épico e confere à sua narrativa a condição de poesia e, ao mesmo tempo, empresta-lhe a natureza da tragédia, uma vez que a estrutura social na qual Pedro está inserido (tanto quanto “a gente”) antecede e excede seu sonho de mudança.
Pedro pedreiro”, de fato, não se contém na classificação de canção de protesto, pois sua temática não se esgota na denúncia de uma circunstância histórica, possível de ser superada a partir de alguma forma de proposta de mudança decorrente de militância política. Na dinâmica da reconstituição das angústias do personagem, resultante do mergulho do eu lírico na tensão do herói e da atitude crítica advinda da desparticularização dessa mesma tensão, que passa a ser de uma classe social, Chico Buarque concede a “Pedro pedreiro” um estatuto universalizante, donde a atualidade da denúncia em pleno século XXI.
A tradição da solidariedade, da igualdade e da fraternidade, de que fala Boff, alimenta o discurso político, na contundência da denúncia da espera de mudanças, derrotada pelas contradições da realidade.
Não se organizando como manifesto, o poema deixa que a rotina esmagadora de nova perspectiva de vida se traduza no bem traçado caminho do trem.

Sônia Maria van Dijck Lima, in Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos

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