quarta-feira, 3 de abril de 2024

O assassino nem sempre foi o assassino


[…]
***

Quando a porta se fechou, Michael olhou com mais atenção.
Circundou a caixa, ressabiado, pois havia acabado de compreender o que era — já tinha visto outras parecidas.
No primeiro ano, fora entregue em mãos, acompanhada de condolências e doces murchos.
No segundo, largaram na varanda da casa.
Naquele ano, só meteram no correio e pronto.
Caridade para crianças carbonizadas.

***

É claro que o Michael Dunbar em si não ficara nada carbonizado, mas, em tese, sua vida, sim.
Todos os anos, no início da primavera, quando começavam os arredios incêndios florestais, uma máfia filantrópica local chamada Clube da Última Ceia se incumbia da responsabilidade de amparar as vítimas do fogo, quer tivessem sido queimadas fisicamente, quer não. Adelle e Michael Dunbar se enquadravam no perfil, e aquele ano foi como os demais — era quase uma tradição a caixa transbordar, ao mesmo tempo, de boas intenções e de um monte de merda. Bichos de pelúcia sempre vinham irreparavelmente mutilados. Era certo que os quebra-cabeças teriam peças faltando. Os homens de Lego vinham sem cabeça, sem os braços ou sem as pernas.
Daquela vez, Michael foi buscar uma tesoura sem o menor entusiasmo, mas quando voltou e começou a abrir a caixa, até o sr. Franks cedeu ao impulso de espiar o que havia dentro. O menino tirou de lá uma espécie de montanha-russa de plástico com contas de ábaco em um dos lados, depois um jogo de peças de Lego — aquelas imensas, para crianças pequenas.
Nossa, que tesouro... Parece que esse povo roubou um banco — comentou Franks, que tinha limpado a geleia, finalmente.
Em seguida veio um ursinho de pelúcia caolho que tinha só metade do nariz. Veja só… Vandalizado. Surrado no beco escuro entre o quarto e a cozinha de alguma criança por aí.
Também veio uma coleção de revistas Mad (que, a bem da verdade, até que era bem legal, mesmo que a página final delas já estivesse preenchida).
Por último e mais estranho... O que era aquilo?
Que merda era aquela?
Só podiam estar de sacanagem.
Porque, lá no fundo da caixa, escorando as laterais de papelão, havia um calendário chamado Homens que mudaram o mundo. Era um catálogo para Michael Dunbar escolher uma nova figura paterna?
Por que não? Ele poderia abrir o mês de janeiro e escolher John F. Kennedy.
Ou abril: Emil Zátopek.
Maio: William Shakespeare.
Julho: Fernão de Magalhães.
Setembro: Albert Einstein.
Ou dezembro — em que, ao virar a página, ele encontrou uma breve biografia e a obra de um homenzinho de nariz quebrado que, ao longo do tempo, se tornaria a maior fonte de admiração do futuro-assassino.
É claro que era Michelangelo.
O quarto Buonarroti.

***

O mais estranho não era tanto o conteúdo do calendário, mas a data: era do ano anterior. Provavelmente só estava ali para reforçar a estrutura da caixa, e claramente tinha sido muito usado: a cada página, além da foto ou da ilustração do homem do mês, havia várias datas rabiscadas com eventos e afazeres.
4 de fevereiro: Revisão carro. Ok.
19 de março: Aniversário Maria M.
27 de maio: Jantar com Walt.
Quem quer que fosse, o dono anterior do calendário jantou com o Walt na última sexta-feira de todos os meses.

***

Agora uma pequena observação a respeito de Adelle Dunbar, a secretária dos óculos de armação vermelha.
Ela era uma mulher prática.
Quando Michael mostrou a caixa de Lego e o calendário, ela franziu a testa e abaixou os óculos.
Isso aí é um calendário usado?
Aham. — De repente, Michael tinha ficado realmente interessado. — Posso ficar com ele?
Mas é do ano passado... Dá isso aqui, deixa eu olhar.
Folheou o calendário. Não demonstrou nenhuma reação exagerada. Chegou a pensar em ter uma conversinha com a mulher responsável por enviar aquela merda de caixa de caridade, mas não fez isso. Engoliu a fagulha de raiva. Conteve tudo por baixo de sua voz devidamente afetada e, assim como o filho, prosseguiu:
E as mulheres que mudaram o mundo? Você acha que tem um calendário com elas?
O menino ficou meio perdido.
Não sei.
Mas você não acha que deveria ter?
Não sei.
Tem muita coisa que você não sabe, não é mesmo? — Contudo, ela suavizou o tom. — Vamos fazer o seguinte. Você quer essa porcaria?
Diante da possibilidade real de perdê-lo, o menino queria o calendário mais do que tudo. Com energia renovada, assentiu.
Está bem. — Lá vinham as regras e o sorrisinho da mãe. — Que tal você me listar vinte e quatro mulheres que também mudaram o mundo? Diga quem elas eram e o que fizeram. Aí você pode ficar com esse troço.
Vinte e quatro?! — O menino ficou perplexo.
Que que tem?
Aqui só tem doze!
Vinte e quatro mulheres. — Adelle estava começando a se divertir. — Já terminou de dar seu piti ou devo aumentar para trinta e seis?
Ela ajeitou os óculos e voltou ao trabalho enquanto Michael retornava à sala de espera. Afinal, havia umas contas de ábaco a empurrar de um canto para outro e as revistas Mad para defender. As mulheres teriam que esperar.
Contudo, um minuto depois, ele perambulou de volta para perto da mãe, que estava à máquina de escrever.
Mamãe.
O que foi, meu filho?
Posso botar a Elizabeth Montgomery na lista?
Elizabeth quem?
Sabe, A Feiticeira.
Era o programa preferido dele, assistia às reprises todas as tardes, e Adelle não se conteve. Soltou uma bela risada, arrematada por um potente ponto final.
Claro que pode.
Obrigado.
No meio da pequena negociação, Michael estava concentrado demais para perceber Abbey Hanley, chorosa e com o braço dolorido, saindo do terrível laboratório de experimentos do médico.
Se tivesse percebido, teria pensado:
Uma coisa é certa, você não entraria na minha lista.
O momento teve um pouco do piano, ou do estacionamento da escola, se é que você me entende — pois era curioso pensar que, um dia, eu acabaria me casando com aquela garota.

Markus Zusak, in O construtor de pontes

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