Dentro
da casa-de-fazenda, achada, ao acaso de outras várias e recomeçadas
distâncias, passaram-se e passam-se, na retentiva da gente,
irreversos grandes fatos — reflexos, relâmpagos, lampejos —
pesados em obscuridade. A mansão, estranha, fugindo, atrás de
serras e serras, sempre, e à beira da mata de algum rio, que proíbe
o imaginar. Ou talvez não tenha sido numa fazenda, nem do
indescoberto rumo, nem tão longe? Não é possível saber-se, nunca
mais.
Mas
um menino penetrara no quarto, no extremo da varanda, onde se achava
um homem sem aparência, se bem que, por certo, como curiosamente se
diz, já “entrado em anos”; ele devia de ser o dono de lá. E
naquele quarto — que, de acordo com o que se verifica, em geral, na
região, nos casarões-de-fazenda com alta e comprida varanda, seria
o “escritório”, — há era uma data. O menino não sabia ler,
mas é como se a estivesse relendo, numa revista, no colorido de suas
figuras; no cheiro delas, igualmente. Porque, o mais vivaz,
persistente, e que fixa na evocação da gente o restante, é o da
mesa, da escrivaninha, vermelha, da gaveta, sua madeira, matéria
rica de qualidade: o cheiro, do qual nunca mais houve. O homem
sem aspecto tenta agora parecer-se com outro — um desses velhos
tios ou conhecidos nossos, deles o mais silencioso. Mas, segundo se
apurou, não era. Alguém, apenas, chamara-o, na ocasião, de nome
com aproximada assonância; e os dois, o ignorado e o sabido, se
perturbam. Alguém mais, pois, ali entrara? A Moça, imaginem. A Moça
é então que reaparece, linda e recôndita. A lembrança em torno
dessa Moça raia uma tão extraordinária, maravilhosa luz, que,
se algum dia eu encontrar, aqui, o que está por trás da palavra
“paz”, ter-me-á sido dado também através dela. Na verdade,
a data não poderia ser aquela. Se diversa, entretanto, impôs-se,
por trocamento, no jogo da memória, por maior causa. Foi a Moça
quem enunciou, com a voz que assim nascia sem pretexto, que a data
era a de 1914? E para sempre a voz da Moça retificava-a.
Tudo
não demorou calado, tão fundamente, não existindo, enquanto viviam
as pessoas capazes, quem sabe, de esclarecer onde estava e por onde
andou o Menino, naqueles remotos, já peremptos anos? Só agora é
que assoma, muito lento, o difícil clarão reminiscente, ao termo
talvez de longuíssima viagem, vindo ferir-lhe a consciência. Só
não chegam até nós, de outro modo, as estrelas.
Ultramuito,
porém, houve o que há, por aquela parte, até aonde o luar do meu
mais-longe, o que certifico e sei. A casa — rústica ou
solarenga — sem história visível, só por sombras, tintas surdas:
a janela parapeitada, o patamar da escadaria, as vazias tarimbas dos
escravos, o tumulto do gado? Se eu conseguir recordar, ganharei
calma, se conseguisse religar-me: adivinhar o verdadeiro e real, já
havido. Infância é coisa, coisa?
A
Moça e o Moço, quando entre si, passavam-se um embebido olhar,
diferente do dos outros; e radiava em ambos um modo igual, parecido.
Eles olhavam um para o outro como os passarinhos ouvidos de repente a
cantar, as árvores pé-ante-pé, as nuvens desconcertadas: como do
assoprado das cinzas a esplendição das brasas. Eles se olhavam para
não-distância, estiadamente, sem saberes, sem caso. Mas a Moça
estava devagar. Mas o Moço estava ansioso. O Menino, sempre lá
perto, tinha de procurar-lhes os olhos. Na própria precisão com
que outras passagens lembradas se oferecem, de entre impressões
confusas, talvez se agite a maligna astúcia da porção escura de
nós mesmos, que tenta incompreensivelmente enganar-nos, ou, pelo
menos, retardar que perscrutemos qualquer verdade. Mas o menino
queria que os dois nunca deixassem de assim se olhar. Nenhuns olhos
têm fundo; a vida, também, não.
Àquela
casa, como e por que viera ter o Menino? Talvez, em desviada viagem,
sem pessoas da família. Sua estada esperara-se para mais curta, do
que foi? Porque, primeiro, todos pensavam esconder-lhe o que havia
num determinado quarto, e mesmo o passo do corredor para onde dava
aquele quarto. A dúvida que isso marcou, no Menino, ajuda-o agora
a muito se lembrar. A Moça, porém, era a mais formosa criatura
que jamais foi vista, e não há fim de sua beleza. Ela poderia ser a
princesa no castelo, na torre. Em redor da altura da torre do
castelo, não deviam de revoar as negras águias? O Homem, velho,
quieto e sem falar, seria, na realidade, o pai da Moça. O Homem
concordava com todos, sem tristezas se calava? As nuvens são para
não serem vistas. Mesmo um menino sabe, às vezes, desconfiar do
estreito caminhozinho por onde a gente tem de ir — beirando entre a
paz e a angústia.
Depois,
porém, porque mudassem de ideia, ou porque o Menino tivesse de
sojornar lá por mais tempo, deixaram-no saber o que dentro daquele
dito quarto se guardava. Deixaram-no ver. E, o que havia ali, era uma
mulher. Era uma velha, uma velhinha — de história, de estória —
velhíssima, a inacreditável. Tanto, tanto, que ela se encolhera,
encurtara-se, pequenina como uma criança, toda enrugadinha,
desbotada: não caminharia, nem ficava em pé, e quase não dava
acordo de coisa nenhuma, perdida a claridade do juízo. Não sabiam
mais quem ela era, tresbisavó de quem, nem de que idade,
incomputada, incalculável, vinda através de gerações, sem
ninguém, só ainda da mesma nossa espécie e figura. Caso imemorial,
apenas com a incerta noção de que fosse parenta deles. Ela não
poderia mais ser comparada. A Moça, com amor, tratava dela.
Tênue,
tênue, tem de insistir-se o esforço para algo remembrar, da
chuva que caía, da planta que crescia, retrocedidamente, por
espaço, os castiçais, os baús, arcas, canastras, na
tenebrosidade, a gris pantalha, o oratório, registros de santos,
como se um pedaço de renda antiga, que se desfaz ao se desdobrar,
os cheiros nunca mais respirados, suspensas florestas, o
porta-retratos de cristal, floresta e olhos, ilhas que se brancas,
as vozes das pessoas, extrair e reter, revolver em mim, trazer a
foco as altas camas de torneado, um catre com cabeceira dourada;
talvez as coisas mais ajudando, as coisas, que mais perduram:
o comprido espeto de ferro, na mão da preta, o batedor de chocolate,
de jacarandá, na prateleira com alguidares, pichorras, canecos de
estanho. O Menino, assustando-se, correra a refugiar-se na cozinha,
escura e imensa, onde mulheres de grossos pés e pernas riam e
falavam.
A
Moça e o Moço vieram buscá-lo? O Moço causava-lhe antipatia e
rancor, dele já tinha ciúmes. A Moça, de formosura tão extremada,
vestida de preto, e ela era alta, alva, alva; parecia estar de
madrinha num casamento, ou num teatro? Ela carregou o Menino,
cheirava a vem de verde e a rosa, mais meigo que as rosas cheiram,
mais grave. O Moço ria, exato. Tranquilizavam-no, diziam: que a
velhinha não era a Morte, não. Nem estava morta. Antes, era a
vida. Ali, num só ser, a vida vibrava em silêncio, dentro de si,
intrínseca, só o coração, o espírito da vida, que esperava.
Aquela mulher ainda existir, parecia um desatino de que ela mesma nem
tivesse culpa. Mas o Moço não ria mais. Lá estava também o
Homem calado, de costas, mesmo de pé ele rezava o terço, num
rosário de pretas camáldulas.
Diziam
ao Menino, demonstravam-lhe: que a Velhinha não era sombração, mas
sim pessoa. Sem que lhe soubessem o verdadeiro nome, chamavam-na a
“Nenha”. Ela ficava tão quieta, no meio da alta cama de
torneados, o catre com cabeceira dourada, que ali quase se sumia, nos
panos, algo inviolável em sua exiguidade, e respirava. Era cor de
cidra, em todas as rugazinhas — e os olhos abertos, garços. O que
ela não tinha era pálpebras? Todavia, um trêmito, uma babinha, no
murcho, a boca, e era o docemente incompreensível. O Menino sorriu.
Perguntou: — “Ela beladormeceu?” A Moça beijou-o. A
vida era o vento querendo apagar uma lamparina. O caminhar das
sombras de uma pessoa imóvel.
A
Moça não queria que coisa alguma acontecesse. A Moça tinha um
leque? O Moço conjurava-a, suspensos olhos. A Moça disse ao Moço:
— “Você ainda não sabe sofrer...” — e ela tremia
como os ares azuis. Tenho de me lembrar. O passado é que veio a
mim, como uma nuvem, vem para ser reconhecido: apenas, não estou
sabendo decifrá-lo. Estava-se no grande jardim. Para lá, tinham
trazido também a Nenha, velhinha.
Traziam-na,
para tomar sol, acomodadinha num cesto, que parecia um berço. Tão
galante, tudo, que o Menino de repente se esqueceu e precipitou-se:
queria brincar com ela! A Moça impediu-o apenas com brandura, sem o
repreender, ela lá se sentava, entre madressilvas e rosmaninhos,
insubstituível. Olhava para a Nenha, extremosamente, de delonga,
pelo curso dos anos, pelos diferentes tempos, ela também menina
ancianíssima. Recobrira-a com um xale antigo, da Velhinha não se
viam as mãos. Só o engraçadinho, pueril acondicionamento, o sorno
impalpar-se, amável ridicularia. Davam-lhe à boca comidinha mole.
Tornavam-lhe às vezes, uns sorrisinhos, um tanger de tosse, chegava
a falar — e escassamente podia ser entendida — no semi-sussurro
mais discreto que o bater da borboletinha branca. A Moça
adivinhava-a? Pedia água. A Moça trazia a água, vinha com nas duas
mãos o copo cheio às beiras, sorrindo igual, sem deixar cair fora
uma única gota — a gente pensava que ela devia de ter nascido
assim, com aquele copo de água pela borda, e conservá-lo até à
hora de desnacer: dele nada se derramasse.
Não,
a Nenha não reconhecia ninguém, alheada de fim, só um pensar sem
inteligência, imensa omissão, e já condenados segredos — coração
imperceptível. No que vagueia os olhos, contudo,
surpreende-se-lhe o imanecer da bem-aventura, transordinária
benignidade, o bom fantástico. O Menino perguntou: — “Ela
agora está cheia de juízo?” A Moça firmou o olhar, como o
luar desassombra. O rumor da tesoura grande podava as roseiras. Era o
Homem velho, de pé, de contraluz, homem muito alto. O Moço pegou na
mão da Moça, ele estava apaixonado. O Menino se recolheu, olhando
para o chão, numa tristeza de amuo.
O
Homem velho só queria ver as flores, ficar entre elas, cuidá-las. O
Homem velho brincava com as flores. Cerra-se a névoa, o
escurecido, há uma muralha de fadiga. Orientar-me! — como um
riachinho, às voltas, que tentasse subir a montanha. Havia um
fio de barbante, que a gente enrolava num pauzinho. A Moça repetia
coisas tantas, muito mansas, ao Moço. Tenho de me recuperar,
desdeslembrar-me, excogitar — que sei? — das camadas angustiosas
do olvido. Como vivi e mudei, o passado mudou também. Se eu
conseguir retomá-lo. Do que falavam o Moço e a Moça. Do velho
Homem, pai dela, desenganadamente doente, para qualquer momento,
mortal.
— “E
ele já sabe?” — o Moço perguntou. A Moça, com um lenço
branco, muito fino, limpava a sumida boca da Nenha, velhinha. —
“Ele sabe. Mas não sabe por quê!” — ela falou, tinha
fechado os olhos, tesa, parada. O Moço se mordeu, um curto. — “E
quem é que sabe? E para que saber por que temos de morrer?” —
disse, disse. A Moça, agora, era que pegava na mão dele.
Venho
a me lembrar. Quando amadorno. De como fora possível que tão de
todo se perdesse a tradição do nome e pessoa daquela Nenha,
velhíssima, antepassada, conservada contudo ali, por seu povo de
parentes. Alguém, antes de morrer, ainda se lembrava de que não se
lembrava: ela seria apenas a mãe de uma outra, de uma outra, de uma
outra, para trás. Antes de vir para a fazenda, ela ter-se-ia
residido em cidade ou vila, numa certa casa, num Largo, cuidada por
umas irmãs solteironas. Mesmo essas, mal contavam. Dera-se que, em
tempos, quase todas as antecedentes mulheres da família, de roca e
fuso, sucessivamente teriam morrido, quase de uma vez, do
mal-de-semana, febre de parto; daí, rompido o conhecimento, os
homens se mudando, andara confiada a estranhos a Nenha, velhinha, que
durava, visual, além de todas as raias do viver comum e da velhez,
mas na perpetuidade. Então, o fato se dissolve. As lembranças
são outras distâncias. Eram coisas que paravam já à beira de um
grande sono. A gente cresce sempre, sem saber para onde.
Trasvisto,
sem se sofrear, fechando os dentes, o Moço arguia com a Moça, ela
firme e doçura. Ela tinha dito: — “... esperar, até à hora
da morte...” Soturno, nervoso, o Moço não podia entender,
considerar no impeditivo. Porque a Moça explicava: que não a morte
do pai, nem da velhinha Nenha, de quem era a tratadeira. Falou: —
“Mas a nossa morte...” Sobre este ponto, ela sorria —
muito — flor, limite de transformação. Obrigara-se por um voto?
Não. Mais disse: — “Se eu, se você gostar de mim... E como
saber se é o amor certo, o único? Tanto é o poder errar, nos
enganos da vida... Será que você seria capaz de se esquecer de mim,
e, assim mesmo, depois e depois, sem saber, sem querer, continuar
gostando? Como é que a gente sabe?” Ouvida a resposta da Moça,
o Menino estremeceu, queria que ela não tivesse falado. Reperdida
a remembrança, a representação de tudo se desordena: é uma ponte,
ponte, — mas que, a certa hora, se acabou, parece’que. Luta-se
com a memória. Atordoado, o Menino, tornado quase incônscio,
como se não fosse ninguém, ou se todos uma pessoa só, uma só vida
fossem: ele, a Moça, o Moço, o Homem velho e a Nenha, velhinha —
em quem trouxe os olhos.
Vê-se
— fechando um pouco os olhos, como a memória pede: o
reconhecimento, a lembrança do quadro, se esclarece, se desembaça.
Desesperado, o Moço, lívido, ríspido, falava com a Moça,
agarrava-se aos varões da grade do jardim. Dissesse: que era um
simples homem, são em juízo, para não tentar a Deus, mas para
seguir o viver comum, por seus meios, pelos planos caminhos! Que
será, agora, se a Moça não o quiser reter, se ela não concordar?
A Moça, lágrimas em olhos, mas mediante o sorriso, linda já de
outra espécie. Ela não concordou. Ela só olhava com enorme amor
para o Moço. Então, ele deu-lhe as costas. E a Moça se ajoelhou,
curvada para o berço da Nenha, velhinha, e chorava, abraçando-a —
ela se abraçava com o incomutável, o imutável. Tanto, de uma vez,
ela se separava da gente, que mesmo o Menino não podia querer ficar
com ela, consolá-la. O Menino, contra tudo o que sentisse,
acompanhou o Moço. O Moço o aceitou, pegou-lhe da mão, juntos
caminharam.
O
Moço viera com tropeço, apalpando as paredes, como os cegos. E
entraram no quarto, ao extremo da varanda, no escritório. Aquela
mesa escrivaninha cheirava tão bom, a madeira vermelha, a gaveta, o
Menino gostaria de guardar para si a revista, com as figuras
coloridas; mas não teve ânimo de pedir. O Moço escreveu o bilhete,
era para a Moça, ali o depositou. O que estava nele, não se sabe,
nunca mais. Não se viu mais a Moça. O Moço partia, para sempre,
torna-viajor, com ele ia também o Menino, de volta a casa. O Moço,
com a capa de baeta azul, trazia-o, à frente da sela. Voltaram os
olhos, já a distância: do limiar, à porta, só o Homem alto, sem
se poder ver-lhe o rosto, desconhecidamente, fazia-lhes ainda sinais
de adeus.
A
viagem devia de ser longa, com aquele Moço, que falava com o Menino,
com ele tratava mão por mão, carecia de selar palavras. Ele, o
Moço, disse: — “Será que posso viver sem dela me esquecer,
até à grande hora? Será que em meu coração ela tenha razão?...”
O Menino não respondeu, só pensou, forte: — “Eu, também!”
Ah, ele tinha ira desse moço, ira de rivalidades. Do Moço, que
outras coisas repetia, que ele não queria perceber. Pediu: se podia
vir à garupa, em vez de no arção? Ele queria não ficar perto da
voz e do coração desse Moço, que ele detestava. Tem horas em
que, de repente, o mundo vira pequenininho, mas noutro de-repente ele
já torna a ser demais de grande, outra vez. A gente deve de esperar
o terceiro pensamento. O Moço não falava, agora. Falido, ido,
noutro confusamento, ele rompeu a chorar. Pouco a pouco, o Menino,
devagarinho, chorava, também, o cavalo soprava. O Menino sentia:
que, se, de um jeito, fosse ele poder gostar, por querer, desse moço,
então, de algum modo, era como se ele ficasse mais perto da Moça,
tão linda, tão longe, para sempre, na soledade. Daí, viu-se em
casa. Chegara.
Nunca
mais soube nada do Moço, nem quem era, vindo junto comigo. Reparei
em meu pai, que tinha bigodes. Meu pai, estava dando ordens a dois
homens, que era para levantarem o muro novo, no quintal. Minha Mãe
me beijou, queria saber notícias de muita gente, olhava se eu não
rasgara minha roupa, se tinha ainda no pescoço, sem perder nenhum,
os santos de todas as medalhinhas.
E
eu precisei de fazer alguma coisa, de mim, chorei e gritei, a eles
dois: — “Vocês não sabem de nada, de nada, ouviram?! Vocês
já se esqueceram de tudo o que, algum dia, sabiam!...”
E
eles abaixaram as cabeças, figuro que estremeceram.
Porque
eu desconheci meus Pais — eram-me tão estranhos; jamais poderia
verdadeiramente conhecê-los, eu; eu?
Guimarães Rosa, in Primeiras estórias
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